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Parecer sobre o tombamento de imóvel com valor histórico-cultural

Agenda 26/12/2019 às 12:40

Trata-se de parecer elaborado acerca do tombamento de imóvel, por seu valor histórico-cultural, na Região Metropolitana de Porto Alegre/RS.

1. O Imóvel     

O objeto do tombamento é a edificação em alvenaria (incluído o busto de “A” localizado defronte a casa), sita à na rua “X”, Centro de Canoas, conhecida como “Y”, “Casa dos Y”, ou ainda, “Museu Y”.

A casa foi construída em 1910[1]. É composta por tijolos maciços, com cobertura em “duas águas” em telha francesa com platibanda, esquadrias originais (com bandeiras fixas) e beiral em argamassa, com detalhes em argamassa sobre as janelas, ainda, possui janelas e portas retas. O entorno original foi descaracterizado. A casa possui três cômodos, um banheiro e, nos fundos, uma área de lazer.


2. Processo de Tombamento

A preservação de bens materiais de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico faz-se por meio do tombamento e desapropriação (art. 216 da CF).

O tombamento está regulado pelo DL 25/1937 e constitui-se no “procedimento administrativo pelo qual o Poder Público sujeita a restrições parciais os bens de qualquer natureza cuja conservação seja de interesse público, por sua vinculação a fatos memoráveis da história ou por seu excepcional valor arqueológico ou etnológico, bibliográfico ou artístico”[2].

Segundo a doutrina de Hely Lopes Meirelles[3],

"Tombamento é declaração, pelo Poder Público, do valor histórico, artístico, paisagístico, turístico, cultural ou científico de coisas ou locais que, por essa razão, devem ser preservados, de acordo com a inscrição em livro próprio."

O tombamento, ainda, pode se dar de forma individualizada ou geral:

"O tombamento tanto pode acarretar uma restrição individual quanto uma limitação geral. É restrição individual quando atinge determinado bem – uma casa, por exemplo – reduzindo os direitos do proprietário ou impondo-lhe encargos; é limitação geral quando abrange uma coletividade, obrigando-a a respeitar padrões urbanísticos ou arquitetônicos, como ocorre com o tombamento de locais históricos ou paisagísticos."[4]

A intervenção na propriedade pelo tombamento é da competência da Administração Pública, não sendo possível a sua instituição por meio de lei:

"A norma nacional sobre tombamento é o Decreto-lei 25, de 30.11.1937, complementado por disposições de outros diplomas legais, mas o tombamento em si é ato administrativo da autoridade competente e não função abstrata da lei, que estabelece apenas regras para sua efetivação."[5]

Trata-se de atividade administrativa da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, IV, da CF).

No caso vertente, o tombamento foi instaurado pela Equipe do Patrimônio Histórico de Canoas, sendo oportunizado ao proprietário que se manifestasse sobre o procedimento, conforme art. 9º, item 1, da Lei Municipal 3. 875/94. Vale referir que o Plano Diretor Urbanístico e Ambiental (PDUA) estabelece que a área em questão constitui Zona Especial de Interesse Cultural (ZEIC), nos termos do artigo 145 a 149 e anexo 8.1.6 do PDUA.

O processo resultou no Decreto nº 293/10, que determinou o tombamento do imóvel em que se localiza a casa “Y”.

Cumpre salientar que o art. 9, item 3, da Lei Municipal nº 3.875/94, estabelece que, da decisão proferida pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Municipal acerca da Impugnação, não caberá recurso.

2.1 Embasamento histórico/cultural

O tombamento em embate teve como elemento central a relevância histórica da família “Y”, em especial, do Srs. “A” e “E”, tanto na colonização, quanto no desenvolvimento da cidade de Canoas. Além disso, o imóvel é um dos poucos remanescentes do período de transição da era distrital, cujo maior volume populacional era eminentemente sazonal por conta das características de veraneio da localidade, para a época atual, de grande importância econômica e urbanística para a região metropolitana.

O livro “Pequena História de Canoas”, utilizado como bibliografia de pesquisa, retrata cronologicamente inúmeros eventos relacionando os membros da família “Y”, comprovando esta importância no desenvolvimento da região.

Cumpre salientar que a fundamentação trazida pela municipalidade não se funda nas questões arquitetônicas do imóvel, mas sim, em sua relevância como um marco de um período de transição da região, bem como por ter abrigado membros da família “Y”.

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O “Histórico da Família "Y”, fls. 4 a 9 do processo, traz uma discrepância em relação a data de construção do imóvel, pois, inicialmente, noticia que a casa foi edificada em 1910 e, posteriormente, informa que teria sido construída em 1934.

Todavia, a Secretaria Municipal da Cultura informou que a data de construção remonta ao ano de 1910, o que fora confirmado pelo Jornal Diário de Canoas, em reportagem veiculada em 2001.

2.2 Fontes de pesquisa utilizadas pela Prefeitura


3. Conclusões

3.1 Decisão Administrativa proferida em instância única

A Lei Municipal nº 3.875/94 estabelece um único grau de discussão administrativa, não sendo possibilitada a interposição de qualquer recurso da decisão que julga a impugnação. Quanto a este aspecto da legislação local, passemos a analisar a doutrina acerca da constitucionalidade desta disposição.

O art. 5º, LV, da CF assegurou, em processo administrativo ou judicial, o direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Percebe-se que a CF não divulgou expressamente o princípio do duplo grau de jurisdição, mas sim aos instrumentos inerentes ao exercício da ampla defesa[6], por tal razão, uma grande corrente doutrinária defende a tese de que o referido princípio não está erguido à categoria dos princípios constitucionais.

Dentre os principais defensores desta tese está Luiz Guilherme Marinoni, que afirma que “o aludido inciso do art. 5º garante os recursos inerentes ao contraditório, vale dizer o direito aos recursos previstos na legislação processual para um determinado caso concreto, ressalvando que, para certa hipótese, pode o legislador infraconstitucional deixar de prever a revisão do julgado por um órgão superior”[7].

Já Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier lecionam que, “sem embargo de não vir expresso no texto constitucional, o princípio do duplo grau de jurisdição é considerado de caráter constitucional em virtude de estar umbilicalmente ligado à moderna noção de Estado de Direito”[8].

Enfrentando o tema, Fredie Didier Jr. ressalta que “há casos, contudo, em que o próprio texto constitucional comete a tribunais superiores o exercício do primeiro grau de jurisdição, sem conferir a possibilidade de um segundo grau. Nessas situações, ao tribunal superior se comete o exercício de grau único de jurisdição, revelando-se, com isso, que o duplo grau de jurisdição não está referido, na estrutura constitucional, em termos absolutos[9].

Ainda, Cândido Dinamarco aduz que “a Constituição Federal prestigia o duplo grau de jurisdição como um princípio, e não como garantia[10]

Sendo o duplo grau de jurisdição um princípio, poderá ocorrer deste se confrontar com outros que se colocam como contraponto, o que deverá o operador neste momento ponderar a sua aplicação e definir limites recíprocos entre os mesmos. Quem mais elucida esta questão é Nelson Nery Jr. lecionando que “essa ponderação é feita inicialmente pelo legislador, sopesando valores através das normas principais. Ponderando assim a complexidade da matéria, a importância social da causa, as circunstâncias procedimentais e a duração razoável do processo, pode o legislador, concedendo maior peso à efetividade sem sacrificar (eliminar) os princípios do devido processo legal e ampla defesa, optar restringir o duplo grau de jurisdição em determinadas causas ou em certas circunstâncias”[11].

Em suma, percebe-se que é possível haver exceções ao princípio do duplo grau de jurisdição, podendo a legislação infraconstitucional restringir, ou até mesmo eliminar a interposição de recursos em casos específicos.

Portanto, ainda que não seja oportunizado a interposição de recurso da decisão que julga a impugnação ao tombamento, tal fato não torna nulo o processo administrativo.

3.2 Da possibilidade de revisão judicial da decisão administrativa

O tombamento é ato discricionário no que tange à oportunidade e conveniência, mas ao mesmo tempo, é vinculado quanto ao motivo, no caso, o bem deve possuir relevante valor histórico, artístico e cultural para a sociedade.

Portanto, cabe ao Judiciário apenas se manifestar quanto à legalidade do ato, ou seja, se vinculado, o exame se fará de maneira direta, observando a legislação vigente e seus requisitos formais.

Quanto ao ato discricionário (avaliação do valor histórico, artístico e cultural do bem), além do controle de legalidade objetiva, admite-se também um controle de mérito, por desvio de finalidade, vício de motivos ou desproporcionalidade. Esse último controle, embora restrinja a liberdade de opção do Administrador, apenas tende a coibir ou reparar abusos, os quais, aliás, já converteriam a discricionariedade em arbitrariedade.

O controle judicial de mérito do ato administrativo discricionário, portanto, se dá somente pela análise dos extremos, de modo a invalidar os excessos, que são mais facilmente perceptíveis e identificáveis

No caso em análise, o procedimento administrativo ocorreu sem falhas no quesito processual, sendo oportunizado o contraditório e a ampla defesa.

Em relação ao interesse cultural do imóvel, é possível assegurar que o posicionamento da Secretaria da Cultura se calca em dados históricos, o que se comprova pela bibliografia referendada. Outrossim, compulsando alguns dos livros indicados no processo, é possível constatar que, de fato, a família “Y” teve um papel relevante para aquele Município.

Portanto, de momento, a partir dos dados históricos acessados, bem como pela inexistência de outro bem outrora pertencente àquela família que pudesse relegar ao segundo plano o tombamento do imóvel em questão, são frágeis os elementos para a rediscussão judicial do tema, principalmente no intuito de buscar uma reversão da decisão já proferida pelo Executivo.

3.3 Reflexos do tombamento

O Decreto Lei nº 25/1937, em seu capítulo III, descreve os efeitos do tombamento, no que toca ao uso e à alienação do bem tombado.

Compete ao proprietário o dever de conservar o bem tombado, fazendo obras para mantê-lo dentro de suas características culturais.

Antes de alienar o bem tombado, deve ser notificado o Município onde se situe, para que possa exercer o direito de preferência.

O tombamento não impede o proprietário de gravá-lo livremente através de penhor, hipoteca ou anticrese.

Ainda, o bem tombado pode ser alugado ou vendido, evidente, desde que o bem continue sendo preservado. Não existe qualquer impedimento para a venda, aluguel ou herança.

3.3.1 IPTU

Lei Municipal nº 1.943/79[12] assim dispõe:

Art. 86. São isentos do pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana:

(...)

VIII - imóveis tombados ou invetariados para fins de tombamento pelo patrimônio histórico, desde que preservados conforme normas estabelecidas pelos órgãos responsáveis pela gestão do patrimônio histórico de uma das três esferas da  Federação;

(...)

§ 6º A isenção prevista no inciso VIII será concedida por ato do Secretário Municipal da Fazenda, mediante parecer circunstanciado do órgão municipal responsável pelo  patrimônio histórico. 

§ 7º O benefício previsto no inciso VIII será renovado anualmente, cabendo ao órgão responsável pelo patrimônio histórico encaminhar a relação dos imóveis de que trata o parágrafo anterior até 31 de outubro do exercício anterior, excepcionado o exercício de 2010, no qual poderá ser encaminhada até 31 de dezembro de 2009. (...)                       

3.3.2 Desmembramento do imóvel

A Equipe do Patrimônio Histórico, fls. 61-62 do processo de tombamento, refere que “não existe empecilho para a realização do desmembramento”.

Importa salientar que o art. 146, § 1º e 2º da Lei Municipal nº 5.348/08 dispõe que qualquer intervenção nas Zonas de Preservação e Ambiência Cultural necessita do EVU (Estudo de Viabilidade Urbanística) e compete ao Órgão que efetuou o Tombamento estabelecer os limites e as diretrizes para as intervenções, fulcro arts. 17 e 18 da Lei Municipal nº 3.875/94.

Como já referido, apenas o prédio conhecido como “Casa Y” tem relevância histórico cultural. As demais construções existentes no imóvel, portanto, poderão ser desmembradas com o aval da Administração Pública.

Por fim, destaca-se que o desmembramento do imóvel ensejaria a perda da isenção de IPTU das áreas em que não há interesse de preservação por parte do Patrimônio Histórico Municipal.

Este é o nosso parecer.


Notas

[1] Data aproximada da construção, conforme Diário de Canoas, 12,13 de Outubro de 2001.

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. 23ª ed. Atlas. 2010. p. 146.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 485.

[4] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit. p. 486.

[5]MEIRELLES, Hely Lopes. Op Cit. p. 486.

[6] Didier Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. III. 5ª ed. Cit., p. 22

[7] Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, 2 ed. São Paulo: RT, 1998, p. 217-8.

[8]  Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil. 2 ed. Cit. p. 140.

[9] Didier Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. III. 5ª ed. Cit., p. 27.

[10] Dinamarco, Cândido Rangel. “Os efeitos dos Recursos”. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis, v. 5. Nelson Nery Jr. e Teresa arruda Alvim Wambier (coords.). São Paulo: RT, 2002.

[11]  Nery Jr., Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 3 ed. São Paulo; RT, 1996, p. 163.

[12] Redação dada a partir da Lei Municipal nº 5.446/06.

Sobre o autor
Andrea M. da Rocha

Servidora Pública Federal, graduada em Direito pela PUCRS, Especialista em Direito Processual Civil pela PUCRS e Especialista em Direito Empresarial pela UFRGS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Andrea M.. Parecer sobre o tombamento de imóvel com valor histórico-cultural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6021, 26 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/73773. Acesso em: 24 nov. 2024.

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