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Ação civil pública contra doação de bem de uso comum do povo a entidade civil

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Agenda 01/08/2000 às 00:00

DA ILEGAL TRANSFORMAÇÃO DA ÁREA
DE BEM DE USO COMUM DO POVO EM BEM DOMINIAL

Além de tais inconstitucionalidade, deve-se considerar que a área, objeto desta lide, é originalmente uma praça municipal, de uso comum do povo, que tem sua utilização reconhecida à coletividade, sem discriminação de seus usuários ou ordem especial para sua fruição. Estes bens são inalienáveis e não estão disponíveis para autorização, permissão ou concessão de uso. Para tanto, é preciso que a área seja convertida para bem dominial, como foi feito posteriormente por outra lei municipal de número 12.267 datada do dia 16 de dezembro de 1996. Mesmo assim, apesar do "remendo" legal utilizado pela Prefeitura para que o instrumento de "doação" tivesse ares de legalidade, tal artifício não pode persistir. Demonstra-se

Possui aplicação "in casu" a Lei Federal 6.766/79 que também impede a alteração ou modificação da área objeto da doação. De fato. O Decreto-Lei 58, de 10.12.1937 (anterior lei do loteamento, cujos dispositivos regeram o loteamento em questão) dispõe taxativamente:

"Art. 3º. A inscrição torna inalienáveis, por qualquer título, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta"

O art. 22 da Lei Federal 6.766/79, que atualmente rege os loteamentos urbanos, por sua vez assim deixa estatuído:

"art. 22. Desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo"

Assim, se o loteador não podia modificar essa destinação, já que no momento em que o loteamento é registrado tais bens passa a ser bem público de uso comum do povo, a Municipalidade, por igual, também não pode fazê-lo, já que a população tem direito à sua fruição. Aliás, o titular dos direitos de uso do bem público de uso comum do povo é a comunidade, cabendo ao Poder público Municipal apenas sua guarda, administração e fiscalização, por comezinho. Para que se comprove tal assertiva, socorremo-nos novamente do magistério do saudoso Professo Hely Lopes Meirelles(3):

"Enfim, todos os locais abertos à utilização pública adquirem esse caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do povo. Sob esse aspecto – acentua Rui Cenre Lima – pode o domínio público definir-se como a forma mais completa de participação de um bem na atividade de administração pública. São os bens de uso comum, ou do domínio público, o serviço mesmo prestado ao público pela administração, assim como as estradas, ruas e praças"

O eminente Paulo Affonso Leme Machado, um dos juristas brasileiros que mais se debruçou sobre o Direito Ambiental, assim deixou estatuído(4):

"Retirou-se de modo expresso o poder dispositivo do loteador sobre as praças, as vias e outros espaços livres de uso comum (art. 17 da Lei 6.766/79) mas, de modo implícito, vedou-se a livre disposição desses bens pelo município. Este só teria a liberdade de escolha, isto é, só poderia agir discricionariamente nas áreas do loteamento que desapropriasse e naquelas que recebeu a título gratuito. Do contrário, estaria o município se transformando em município-loteador através de verdadeiro confisco de áreas, pois receberia as áreas para uma finalidade e, depois, a seu talente as destinaria para outros fins."

Nem mesmo através da desafetação legal (o que não ocorre no caso vertente) poderia um empreendimento privado ser erigido em praça pública, como ensina o jurista Toshio Mukai(5):

"enquanto tal destinação de fato se mantiver, não pode a lei efetivar a desafetação sob pena de cometer lesão ao patrimônio público da comunidade (...) se a simples desafetação legal fosse suficiente para a alienação dos bens de uso comum do povo, seria possível, em tese, a transformação em bens dominicais de todas as ruas, praças, vielas, áreas verdes, etc. de um município e, portanto, de seu território público todo, com a consequente alienação (possível) do mesmo, o que, evidentemente, seria contra toda a lógica jurídica, sendo mesmo um disparate que ninguém, em sã consciência, poderia admitir".

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A eminente Profa. Lúcia Valle Figueiredo também possui contundente magistério no mesmo sentido(6):

"Assim sendo, é dever do Município o respeito a essa destinação, não lhe cabendo dar às áreas que, por força da inscrição do loteamento no Registro de Imóveis, passaram a integrar o patrimônio municipal qualquer outra utilidade. Não se insere, pois, na competência discricionária da Administração resolver qual a melhor finalidade a ser dada a estas ruas, praças, etc. A destinação já foi previamente determinada"

Finalmente, vale citar o magistério do eminente Prof. José Afonso da Silva, pioneiro no estudo de direito urbanístico em nosso país(7):

"O que é certo é que a via urbana pública, assim como as praças, como tal, será inalienável, impenhorável e imprescritível. Tornar-se-á alienável se deixar de ser via urbana ou praça, pela desqualificação jurídica ou desafetação, com o que a área respectiva passará à qualificação de bem patrimonial e sujeitar-se-á ao seu regime jurídico, tornando-se alienável nos termos da legislação que regula a alienação de bens públicos, que, no mínimo, exige autorização legislativa, prévia avaliação e concorrência, salvo as exceções quanto a esta. É claro que, assim mesmo, há que levar-se em consideração o interesse dos usuários moradores ou não da rua. Vale dizer, a rua só pode ser desafetada de sua qualificação de bem de uso comum do povo mediante lei municipal, que somente será legítima se a rua perder, de fato, sua utilização pública, por ter-se tornado desabitada e perdido seu sentido de via de circulação pública. Sem esses pressupostos de fato, qualquer pessoa do povo pode impugnar a desafetação, porque lhe ocorre o direito subjetivo de transitar pela via e, consequentemente, o direito de exigir da Municipalidade que se abstenha de perturbar-lhe ou impedir-lhe o livre trânsito por via que venha sendo usada regularmente pelo povo, pois a livre circulação em via existente é manifestação do direito fundamental de ir, vir e ficar, em situação mais rigorosa ainda do que aquela que já referimos antes em relação à estrada pública, dada a vocação urbanística da via urbana, sempre predisposta ao interesse do povo e, particularmente, de seus moradores, tema que examinaremos depois"

Não é diferente a orientação jurisprudencial, consignada em diversos V. Acórdãos. Já em 1961 o Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo firmou a seguinte tese (RT 318/285):

"Aprovada a planta do loteamento, e inscrito este, tornam-se inalienáveis por qualquer título as vias de comunicação, praças e espaços livres. Não pode, portanto, a Municipalidade transformar uma praça, destinada ao uso comum do povo, em propriedade sua para doá-la a uma entidade particular"

O nunca assaz citado Prof. José Afonso da Silva comenta esse V. Acórdão(8):

"A forma, como a situação se apresentara, realmente tornava ilegítima a conduta da Municipalidade, pois, mal o loteamento fora inscrito, já pretendeu transformar a área em bem patrimonial para, em seguida, doá-la a uma entidade desportiva particular. Parece que, no caso, muito sinteticamente apresentado no acórdão, ocorrera verdadeiro desvia de finalidade, além da falta de motivo de interesse público que justificasse a medida, e não está indicado se a medida fora feita por prescrição de lei."

Ora, no caso dos autos, igualmente, que interesse público pode justificar a medida? Qual a motivação para a transformação da área em bem patrimonial público e posterior entrega a um particular? Evidente que no caso dos autos, assim como no caso comentado pelo Prof. José Afonso, está configurada hipótese clássica, acadêmica, de desvio de poder.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já teve oportunidade de assim deixar consignado em demanda semelhante à presente (JTJ 161/130):

"MINISTÉRIO PÚBLICO – Legitimidade de parte ativa – Ação Civil Pública – Preservação do patrimônio público – artigo 129, inciso III da Constituição da República – Preliminar Rejeitada

BENS PÚBLICOS – Desafetação de área – Doação para posterior loteamento – Inadmissibilidade – Destinação prevista em lei – Ofensa à Lei Federal nº 6.766 de 1979 – Ação procedente – Recurso não provido

MUNICÍPIO – Obrigação de não fazer – Pena de preceito – Imposição – Desnecessidade – Fixação que só penalizaria os contribuintes – Recurso provido para esse fim

(Apelação Cível nº 205.577-1 – Presidente Venceslau – Recorrente: Juízo Ex Officio – Apelante: Municipalidade – Apelado: Ministério Público.

No corpo desse V. Acórdão, notamos que a hipótese versada é muito semelhante à dos presentes autos. Transcreve-se:

"A exordial dirige-se contra a pretensão da apelante no sentido de desafetar três áreas devidamente descritas na inicial, com base em lei municipal, para promover o loteamento das áreas doando-as para famílias reconhecidamente pobres. Sustenta o Ministério Público que tratando-se de áreas destinadas à implantação de equipamentos comunitários, destinado ao sistema de lazer, de modo algum podem ser objeto de alienação, nem tampouco serem dadas em comodato, resultando, portanto, ser irregular sua desafetação"

Note-se que o caso dos autos é mais grave ainda do que a hipótese enfocada na decisão supra mencionada, pois nesta a área destinava-se a uma finalidade nobre, ou seja, prover a moradia de famílias carentes, e mesmo assim a desafetação das áreas para esse fim foi considerada ilegal pelo Egrégio TJSP. No caso dos autos, doou-se a área pública para uma associação privada instalar no local uma "sede cultural".

Em outra hipótese, que se encaixa como uma luva ao caso "sub examine", decidiu novamente o E. Tribunal de Justiça de São Paulo, aclarando, inclusive, a inconstitucionalidade de lei municipal semelhante à objeto dessa demanda, conforme aduzido na presente inicial no tópico anterior (JTJ 184/78):

"INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal – Declaração incidental em ação civil pública – Pedido formulado pelo Ministério Público, por seu órgão de Primeiro Grau – Legitimidade ativa – Preliminar Rejeitada.

INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal – Declaração incidental em ação civil pública – Competência do Juízo de Primeira Instância para apreciar e julgar – Preliminar rejeitada.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Ato impugnado – Doação de bem público de uso comum do povo pela Municipalidade – Interesse de agir do Ministério Público – Artigo 81, inciso I, da Lei Federal n. 8.078, de 1990 – Preliminar rejeitada.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Ato Impugnado – Imóvel destinado a praça pública doado pela Municipalidade a sindicato para construção de sua sede – Inadmissibilidade – Constitucionalidade do artigo 180, inciso VII da Constituição Estadual – Interpretação, ademais, do artigo 24, inciso I, da Constituição da República – Ação Procedente – Sentença confirmada.

LOTEAMENTO – Praça Pública – Área destinada pelo loteador para tal finalidade – Doação pela Municipalidade a sindicato – Inadmissibilidade . Bem de uso comum do povo e não apenas dos proprietários dos lotes – Artigo 180, inciso VII, da Constituição Estadual e Lei Federal nº 6.766 de 1979 – Ação Civil Pública procedente – Sentença confirmada.

Apelação Cível nº 273460-1 – Pedreira – Apelantes: Municipalidade de Jaguariúna e outro – Apelado: Ministério Público.

Mencione-se, ainda, que diversos diplomas legais impõem aos loteadores uma área mínima de bens que deverão ser destinados à finalidade institucional, e regras como essa são encontradas tanto na legislação atual quanto nas leis anteriores, válidas no momento de instituição do loteamento em questão.

A Lei 6.766/79, por exemplo, em seu artigo 4º fixa esse percentual em 35%, mesmo percentual instituído pela Lei Municipal nº 9.413/81 que versa sobre o parcelamento do solo e fixa tal percentual no art. 2º, inciso III.

No caso dos autos, é bastante provável que a supressão da área de 37.000 m2 da categoria de bem de uso comum do povo tenha atingido esse percentual, de modo que o loteamento local ficaria com áreas de uso comum do povo em quantidade menor do que o mínimo exigido por lei, seja no momento atual, seja no momento de instituição do loteamento em questão.

Ora, o objetivo evidente de tais diplomas legais de parcelamento do solo, ao instituir tais percentuais, é criar espaços para o desenvolvimento de uma aceitável qualidade de vida, bem como atingir uma boa ambiência urbana. A retirada de tais áreas atinge frontalmente esses objetivos e os direitos da comunidade daí decorrentes e protegidos por lei. Evidentemente, tal situação é anômala, ilegal, e esse é mais um dos motivos pelo qual a imoral cessão de direito real de uso efetuada não pode permanecer.

Nesse sentido, o V. Acórdão novamente do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo (JTJ 160/151):

"LOTEAMENTO – Registro – Impugnação pelo Ministério Público – Legitimidade de parte – Atuação na defesa do interesse público

LOTEAMENTO – Registro – Requerimento – Área Pública na extensão mínima de 35% - Artigo 4º, § 1º, da Lei Federal nº 6.766, de 1979 – Inclusão de área destinada à preservada ambiental – Inadmissibilidade – Registro indeferido – Recurso não provido

De qualquer forma, como já exaustivamente demonstrado, ainda que tal supressão não torne o loteamento local com áreas de uso público abaixo do mínimo legal (embora seria bastante incomum e inusitado que o loteador tivesse atingido o mínimo legal de áreas de uso comum e, além disso, tivesse criado um excedente de 37.000 m2) nem por isso os atos dos réus atacados nessa lide são menos ilegais, imorais e ilegítimos.

Em suma, não resta dúvida que a pretendida desafetação da área em questão, através de sua transformação de bem de uso comum do povo em bem dominial, viola a Lei 6.766/76, bem como a Constituição Estadual em seu art. 180, VII e a Constituição Federal em seu art. 24, I, além de ferir o próprio bom senso e a própria lógica das regras de parcelamento do solo através de loteamento.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Ação civil pública contra doação de bem de uso comum do povo a entidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16014. Acesso em: 28 dez. 2024.

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