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Dissolução de cooperativa fraudulenta

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A LEI 5.889/73 E A CLT

           Além disso, só o prestador de serviço urbano pode se organizar em cooperativa, vendendo o resultado do seu trabalho (jamais sua força de trabalho).

           As relações de trabalho rural são reguladas pela Lei 5.889/73 e, no que não a contrariar, pela Consolidação das Leis do Trabalho. Daí resulta que apenas subsidiariamente a CLT se aplica a essas relações, e condicionadas à sua compatibilidade com o Estatuto do Trabalho Rural.

           O artigo 2º da Lei 5889/73 conceitua empregado rural como sendo toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário.

           O artigo 4º equipara ao empregador rural toda pessoa física ou jurídica que, habitualmente, em caráter profissional e por conta de terceiros execute serviços de natureza agrária mediante utilização do trabalho de outrem.

           Por força do artigo 17, as normas do estatuto são aplicáveis, no que couber, inclusive aos trabalhadores rurais não compreendidos na definição do artigo 2º.

           Conseqüentemente, a lei do trabalho rural afastou a nociva figura do intermediário de mão de obra, pois equiparou a empregador mesmo aquele profissional cuja atividade habitual se realize por conta de terceiros. Ao mesmo tempo, os trabalhadores rurais, ainda que não qualificados como empregados, gozam de situação jurídica idêntica a estes, não lhes podendo ser arrancado nenhum dos direitos previstos no artigo 7º da Constituição Federal, na Lei 5889/73 e na CLT.

           Por força disso, é incompatível com o trabalho rural o sistema de cooperativas, pois retira do trabalhador direitos que lhes são típicos e inerentes à condição de rural. É incompatível com as relações jurídicas de trabalho no campo, portanto, todo o disposto na Lei 5.641/71 e, assim, o parágrafo único do artigo 442 da CLT.



COOPERATIVA FRAUDULENTA

           As cooperativa reclamada é, na verdade, fraude organizada para frustrar o direito do trabalho. Não tem existência senão para esse fim, ilícito e imoral.

           A análise de sua atividade, à luz da legislação obreira, permite constatar, sem a menor sombra de dúvida, que são gatos supostamente legalizados fornecendo mão-de-obra subordinada para a realização da atividade-fim de produtores agrícolas.

           A análise dos depoimentos juntados com a inicial revelam que a cooperativa-ré viola todos os princípios norteadores do cooperativismo. Estão ausentes a affectio societatis, a igualdade societária, a participação democrática, a relação fundada na dupla qualidade.

           O quadro é de verdadeira e perversa simulação, uma vez que foi organizada com o único objetivo de se interpor entre empregado e empregador, como uma cunha inserida na relação de emprego, fracionando-a, de forma a frustrar os direitos do obreiro e proporcionar ao capital a evasão de suas responsabilidades patronais.

           Pratica, pois, verdadeiro merchandage, estranho aos objetivos cooperativistas; organiza-se e é dirigida em afronta total aos princípios de autogestão democrática que informam as cooperativas. Em sua estrutura social impera a desigualdade, a subordinação a interesses de terceiros.

           É, pois, criatura de existência meramente formal, porquanto a verdadeira e única relação contratual dá-se entre os trabalhadores rurais e os tomadores, aqueles capatazeados pelos que se auto-intitulam "dirigentes", "turmeiros", "empreiteiros", "fiscais de campo" e quejandos.

           Aliás, a fraude é tão disseminada e ampla que as chamadas cooperativas de mão de obra rural não se envergonham nem mesmo de tentar camuflar seus objetivos mediante idênticos artifícios.

           Analisando os estatutos da Cootram - Cooperativa dos Trabalhadores Rurais e Afins de Matão e Região do Estado de São Paulo, em sentença prolatada nos autos da reclamatória trabalhista nº 867/96, a corte da JCJ de Matão, então presidida pelo MM Juiz do Trabalho Wellington Cesar Paterlini, assim analisou as letras a e b do artigo 2º dos Estatutos Sociais daquela cooperativa (Documento nº 2, fls. 110/123):

           "(...) Como justificativa da constituição da cooperativa, para, como observado na alínea precedente, simplesmente prestar labor, exibe-se o intento de obtenção de melhores condições de trabalho e remunerações superiores àquelas que obteriam os associados isoladamente. É falaciosa a idéia de que os trabalhadores isoladamente se tenham de postar diante de seus empregadores para negociar salários. Porque olvida o disposto no artigo 8º da Constituição Federal e em todo o Título V da CLT.

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           (...) Todavia, semanticamente positivo, o mesmo intento revela, já de pronto, que os cooperados, ainda com tal condição, em nada terão alterado o seu destino precedente de empregados: permanecerão apenas a poder vender força de trabalho em troca de remuneração (...)"

           "(...) A primeira reclamada, como seu intento segundo, propõe-se conduzir os associados, observadas as normas de segurança, aos locais de trabalho, a partir de suas residências ou de um local prefixado. Traveste-se aqui de nobre intento aquilo que constitui elemento notório de quaisquer contratos de trabalho de empregados rurais. Com efeito, sem embargo de discussões que se possam tecer acerca do teor do Enunciado 90 do C. TST, certo é que é condição corriqueira nas relações de emprego rurais da região o transporte dos trabalhadores até as lavouras em que as ´tarefas´ se executem. E não parece razoável que os próprios trabalhadores queiram assumir o ônus de tal operação, normalmente suportado pelos empregadores. O indício de falta de razoabilidade é notável."

           Em brilhante sentença, proferida nos autos da Reclamatória Trabalhista nº 3.469/96 (Documento nº 2, fls. 124/140), a MM JCJ de Bebedouro, sob a presidência do MM Juiz do Trabalho Substituto dr. Édson Silva Trindade, elucidou de forma definitiva a questão:

           "A simulação representa ´declaração da vontade, visando produzir efeito diverso do ostensivamente indicado´ . (10) Caracteriza-se ´pelo intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada, no sentido de criar, aparentemente, um ato jurídico, que, de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o ato realmente querido´ . (11) Enfim, é ´a declaração de um conteúdo de vontade não real, emitida conscientemente e por acordo entre as partes, para produzir, com o fim de enganar, a aprência de um negócio jurídico que não existe ou é diferente daquele que se realizou´ ." (12)

           " (...) No particular, ressalta Pontes de Miranda (13) que ´a violação da lei cogente ainda pode ter importância nulificante quando se trate de fraude à lei, que se dá quando, pelo uso de outra categoria jurídica, ou de outro disfarce, se tenta alcançar o mesmo resultado jurídico que seria excluído pela regra jurídica proibitiva. O ´agere contra legem´ não se confunde com o ´agere in fraudem legis´: um infringe a lei, fere-a, viola-a diretamente; o outro, respeitando-a, usa de maquinação, para que ela não incida; transgride a lei, com a própria lei. A interpretação há de mostrar que só se quis obter o que, pelo caminho proibido, não se obteria. O que importa é o conteúdo do negócio jurídico, não a forma´.

           "(...) Todavia, não se pode esquecer - como esclarece Serpa Lopes (ob. cit., pág. 450 (14) ) o ponto comum suscetível de existir entre fraude à lei e simulação:

           ´é quando esta se expressa como um meio de fraudar a lei. Inquestionável que a simulação pode constituir um meio fraudatório da lei, quando é preordenada com o objetivo de ilidir uma norma cogente, caso em que simulação e fraude à lei se confundem, a despeito da regra: plus valet quod agitur quam quod simulatae conciptur.´

           A análise da prova trazida com a inicial leva a conclusão de que a criação e existência formal da cooperativa reclamada é mera simulação, assim como a relação pretensamente civil que mantém com os dois primeiros reclamados, porque o fim colimado não é o que se encontra no escorço do cooperativismo, mas sim o de desvestir os empregados rurais de seus direitos, afastando da verdadeira relação jurídica existente, de emprego, a proteção que lhe confere a lei especial e o diploma consolidado.

           Simulando a existência de sociedade de pessoas, perpetra-se a fraude, alcançando a supressão de direitos que, de outro modo, seria coibida pela ordem jurídica.



VIOLAÇÃO À ORDEM JURÍDICA

           A fraude perpetrada pelas cooperativa reclamada viola a ordem jurídica, pois nega vigência a todo o artigo 7º da Constituição Federal, à Lei 5.889/73 e à Consolidação das Leis do Trabalho.

           Ao fazer desaparecer, pela via da simulação e da fraude, as figuras de empregado e empregador, torna letra morta, ainda, os preceitos previdenciários contidos nas Leis 8.212/91 e 8.213;91, além dos relativos ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, contidos na Lei 8036/90, e todo o elenco de direitos decorrente das relações de trabalho, que interessam a toda a sociedade.

           Ou, nas palavras do Juiz do Trabalho dr. Manoel Carlos Toledo Filho, na retromencionada decisão, e que se aplicam à perfeição ao presente caso:

           "De todo o acima exposto, se dessume que exuberam razões para a concessão da medida liminar requerida. Com efeito: a lesão à ordem jurídica trabalhista propiciada pelas cooperativas reclamadas é ponderosa, e mais do que patente.E desta lesão se aproveitam as tomadoras de seus serviços, em especial a indústria de suco que, por seu intermédio, logra obter farta maão de obra a baixo custo. É imperativo que se coloque pois um freio a este estado de coisas, restabelecendo-se o império da Constituição e da Lei."

           A cooperativa reclamada é, pois, organização que tem por objeto o ato ilícito, propiciando o locuplemento imoral de poucos em total violação da ordem jurídica e dos direitos sociais.

           Na feliz e concisa interpretação do E. TRT da 15 ª Região (Documento nº 2, fls. 196/209):

           "Está claro, portanto, o esquema engendrado para se fugir da aplicação trabalhista: 1º) os ´gatos´ continuaram a praticar marchandage, sendo que, a partir de março de 1995, a aparência de legalidade foi propiciada pela indigitada ´cooperativa´; 2º) os trabalhadores são fornecidos diretamente para as indústrias e, não para o produtor, que apenas repassa o respectivo pagamento à ´cooperativa´; 3º) as indústrias citricultoras continuaram a dirigir a prestação de trabalho subordinado dos colhedores de laranja, como faziam antes, só que, agora, sem o custo social."(15)

           Resta evidente, portanto, que os fatos trabalhistas foram travestidos de cooperativismo, por meio da formalização sem conteúdo de tais sociedades, tudo com o escopo de fazer letra morta a proteção do direito social.

           Via de conseqüência, a existência e atividade da cooperativa reclamada atraem a incidência da cominação do artigo 9º consolidado, sendo nulos de pleno direito todos os atos praticados com o intuito de conferir-lhe personalidade jurídica à, da mesma forma que nulos são todos os contratos ou documentos por ela firmados ou emitidos visando estabelecer a pretensa prestação de serviços de natureza civil com os tomadores.



PEDIDO

           Face a todo o exposto, pede:

  1. a declaração da ilegalidade da prática de terceirização da colheita da laranja, parte integrante da atividade-fim da primeira reclamada, com a sua conseqüente condenação a se abster, definitivamente, dessa prática, por cooperativa ou qualquer interposta pessoa física ou jurídica, realizando essa atividade, em pomares próprios, do grupo econômico ou de terceiros, onde quer que se localiem, mediante seus próprios empregados rurais, contratados sob a égide da Lei 5889/73 e CLT, garantidos a eles toda a gama direitos legais ou de normas coletivas;
  2. Sucessivamente, caso assim não entenda essa MM Corte, a declaração da ilegalidade da prática de terceirização da colheita da laranja, parte integrante da atividade-fim do segundo reclamado, com a sua conseqüente condenação a se abster, definitivamente, dessa prática, por cooperativa ou qualquer interposta pessoa física ou jurídica, realizando essa atividade, em pomares próprios, do grupo econômico ou de terceiros, onde quer que se localizem, mediante seus próprios empregados rurais, contratados sob a égide da Lei 5889/73 e CLT, garantidos a eles toda a gama direitos legais ou de normas coletivas;
  3. a condenação das reclamadas SUCOCÍTRICO CUTRALE E JOSÉ CUTRALE JÚNIOR a arcarem solidariamente com os direitos dos trabalhadores rurais que, por meio de cooperativas ou interposta pessoa, física ou jurídica, colheram frutas para qualquer deles em pomares próprios ou de terceiros;
  4. declaração da ilegalidade da existência da cooperativa reclamada, uma vez que têm por objeto atividade ilícita e imoral, e conseqüente decretação da nulidade de seus atos constitutivos e de todos os documentos por ela firmados;
  5. a decretação de sua dissolução, nomeando-se liqüidante de confiança do juízo, realizando-se a arrecadação de todos os seus bens e documentos e, bem assim, urgente realização do ativo e pagamento do passivo, seguindo-se até a partilha e a efetiva extinção;
  6. sucessivamente, caso não entenda essa MM Corte seja o caso de dissolução, a declaração da inidoneidade da cooperativa reclamda para o fornecimento de mão de obra, condenando-se-a a se abster definitivamente dessa prática;
  7. a expedição de ofícios aos órgãos federais, estaduais e municipais competentes, para que cancelem os registros das entidades dissolvidas ou, se for o caso, averbem a decisão judicial a ser proferida nestes autos, inclusive a liminar eventualmente concedida, nos documentos constitutivos e de registro da cooperativa-reclamada, bem como tomem as providências que entenderem cabíveis no seu âmbito de atuação;
  8. na forma dos artigos 11 da Lei 7.347/85 e 287 do Código de Processo Civil, não havendo cumprimento do preceito da sentença, ou seu retardamento, sejam as reclamadas condenadas ao pagamento de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) revertida em favor do FUNDO DE AMPARO AO TRABALHADOR (FAT), criado pela Lei 7.998/90;

Sobre os autores
Ricardo Wagner Garcia

Procurador do Trabalho da PRT 4ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Ricardo Wagner; DAVID, Adriene Sidnei Moura. Dissolução de cooperativa fraudulenta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 25, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16235. Acesso em: 30 abr. 2024.

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