Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
2ª Promotoria de Justiça de Execução Criminal
Processo nº 27023-92
Sentenciado: Divino Antônio da Silva
MM. Juiz(a),
Trata-se de agente submetido a medida de segurança, sob tratamento ambulatorial, que, a teor do laudo de fls. 85/89, "necessita de internação psiquiátrica, para que se submeta a tratamento adequado, e posterior retorno ao ambulatório com acompanhamento de assistente social".
O pedido encontra amparo no art. 97, § 4º, do Código Penal, que estabelece a possibilidade de internamento por ordem judicial, em qualquer fase do tratamento ambulatorial, se essa providência for necessária para fins curativos.
Se admitida a necessidade de internação, cumpre examinar, preliminarmente, quanto ao local da internação que não vem indicado nos autos.
É que, normalmente, à ausência de estabelecimento adequado no Distrito Federal, as internações vêm sendo feitas na ATP - Ala de Tratamento Psiquiátrico do CIR.
Em face de relatório do Conselho Penitenciário, dando conta de irregularidades observadas na ATP em dezembro/96, o signatário e o Promotor de Justiça João Luiz Nogueira da Costa visitamos o local, em 26.08.97, e constatamos que 39 (trinta e nove) internos acham-se ali recolhidos em completa desobediência à Constituição Federal e aos comandos do Código Penal e Lei de Execuções Penais, no que se refere a cumprimento de medida de segurança detentiva.
Diante do apurado, os Promotores de Justiça em exercício na Promotoria de Justiça de Execução Penal apresentaram, em 29.08.97, petição a Vossa Excelência de que aguardam decisão (v. anexo), requerendo:
"a) a fixação do prazo de 60 (sessenta) dias à administração penitenciária do Distrito Federal para que regularize a situação, de acordo com a lei, instalando no próprio CIR, ou de preferência, em local distinto, unidade própria para tratamento dos internos ou, ainda, que os distribua em unidades de saúde, que possuam condições de custódia;
b) que se determine, com o objetivo de que seja decretada a interdição das atuais instalações, a imediata realização de perícia pelo Instituto de Criminalística, com intuito de examinar o local (CIR) em confronto com as exigências legais pertinentes, devendo o respectivo laudo ser apresentado em 30 (trinta) dias;
c) que se determine ao Instituto Médico Legal, com o objetivo de análise das situações individuais, a imediata realização de exames de todos os internos, visando à desinternação ou liberação condicional (Código Penal, art. 97, § 3º), devendo os laudos respectivos serem apresentados no prazo máximo de 60 (sessenta dias), exceto nos casos em que tais exames tenham sido concluídos nos últimos 90 (noventa) dias.".
Pelo que se vê, após adotado esse posicionamento, não pode mais o Ministério Público examinar qualquer pedido de medida de segurança detentiva, sob o pressuposto de que eventual internação se dará na ATP, que não oferece as mínimas condições para o tratamento de doentes mentais.
Antes de qualquer definição a respeito, cumpre, doravante, indagar, dentre outros questionamentos pertinentes: a) em face dos atuais conhecimentos da psiquiatria, se há elementos seguros para prognosticar a periculosidade do agente para fins de internação penal, segundo as exigências legais; b) havendo definição segura de que o sentenciado deve ser mantido em medida de segurança detentiva, onde será internado e se esse local oferece condições adequadas de tratamento, na forma do disposto no art. 99 do Código Penal, aferidas mediante certificado médico especializado; c) se não é possível atender o agente na rede hospitalar pública, segundo padrões modernos de saúde mental, sem internação e, portanto, sem custódia, com assistência social; d) se houver internação necessária, qual o tempo e o tipo de tratamento que devem ser impostos ao paciente.
Afora isso, Excelência, ao que tudo indica, os doentes mentais não vêm recebendo de nós, Ministério Público, Judiciário e autoridades da administração penitenciária, a atenção e o respeito que merecem, quando submetidos a medida de segurança, seja na condição genérica de cidadãos, seja, especialmente, por sua hipossuficiência ou mesmo total deficiência de vontade, condição que os fazem merecedores de tratamento mais particularizado ainda.
Sob essa ótica, examinei o Processo nº 31313-96. Tratava-se de Romildo Paulino dos Santos, condenado a dois anos de reclusão, a serem cumpridos em regime integralmente fechado, ficando a critério desse juízo da execução o exame da substituição da reprimenda por medida de segurança.
Aludido sentenciado cumpriu pena em regime fechado de 04.02.95 até 09.04.97, ocasião em que foi encaminhado ao CIR sob medida de segurança detentiva, onde se encontrava até agosto deste ano.
Ocorre que a decisão de conversão só foi tomada em 07.02.97, quando, na realidade, já se encontrava extinta a execução da pena, pois seu cumprimento expirou-se a 03.02.97.
Diante disso, deixei de manifestar-me sobre pedido de continuidade do internamento, por falta de objeto, e requeri, em 20.06.97, a decretação da extinção da execução da pena a que foi condenado Romildo Paulino dos Santos, estabelecendo-se meios para que se submeta a tratamento, na condição de egresso (LEP, arts. 10, parágrafo único, 14, 25, 26 e 27), o que foi deferido por esse juízo em 02.09.97.
Não parece escapar a destino semelhante o presente caso.
Divino Antônio da Silva, nascido em 30.09.66, trabalhando como porteiro à época do fato que gerou a presente medida de segurança, no dia 08.02.91, por volta de 19 horas, "subtraiu para si um ônibus Mercedes Benz, de propriedade da empresa VIPLAN Ltda, que se encontrava estacionado em um box da Estação Rodoviária desta Satélite".
Em função disso foi preso em flagrante, quando dirigia o ônibus em via pública, e denunciado por furto simples (art. 155, caput, do Código Penal).
Antes do julgamento foi submetido, em 04.10.91, a exame psiquiátrico (fls. 19/23), que concluiu ser o agente inimputável, à vista de ser portador de doença mental, diagnosticada como esquizofrenia paranóide. Já vinha fazendo tratamento ambulatorial, regular, no Hospital Regional de Planaltina, sendo que, "no momento do exame encontrava-se em fase de intercrise, isto é não estava em surto psicótico agudo. Porém, não podemos esquecer, que um psicótico, mesmo estando em fase de remissão, não deixa de ser um psicótico e já apresenta os defeitos próprios de sua patologia".
Ao julgá-lo em 17.09.92 (fls. 46/48), o juiz sentenciante observou que o agente recebia cuidados dos pais, presentes ao julgamento, e não tratava "de um louco enfurecido e sim, ao que parece, um maníaco para dirigir um ônibus, desejo este frustrado quando tinha suas condições normais, pois somente chegou a ser cobrador". E rematou: "se houvesse uma melhor fiscalização dos ônibus, certamente, o acusado não teria o apanhado na rodoviária".
Acrescentou que "para a hipótese dos autos, se pena fosse aplicada, poder-se-ia até beneficiar o réu com sanção de somenos multa, sanção esta de menor graduação do que a própria detenção".
Em razão disso, entendeu que "a internação em manicômio não lhe é aconselhável" e determinou que Divino fosse submetido a medida de segurança, na modalidade de tratamento ambulatorial" pelo período mínimo de dois anos.
Em 17.12.92, foi oficialmente iniciado o cumprimento da medida de segurança por intermédio desse juízo (fl. 18).
Mas, na realidade, já vinha se submetendo a tratamento ambulatorial, em razão de doença mental desde a época do fato, 08.02.91, aliás, desde 1988, conforme se constatou posteriormente (fl. 42).
Assim, fazia jús à detração, na forma do art. 42 do Código Penal, e deveria ter sido submetido a exame psiquiátrico em fevereiro de 1993, ao final do período mínimo de dois anos (art. 93, § 2º, do Código Penal), o que não ocorreu. Apenas consta informe, datado de março de 1993, do Serviço Psicossocial, de que Divino vinha se apresentando normalmente à VEC, com significativas melhoras (fl. 26).
Como o agente, no decurso de um ano subsequente, não praticou qualquer fato indicativo de persistência de periculosidade, deveria, a teor do disposto no art. 97, § 3º do Código Penal, ter sido decretada a extinção da medida de segurança em março de 1994.
Tal igualmente não aconteceu, apesar de que, em setembro de 1994, o mesmo serviço Psicossocial tenha deixado claro que Divino vinha recebendo tratamento ambulatorial, estava bem e vinha procurando "estar com o seu tempo ocupado, exercendo uma atividade remunerada", o que "demonstra que Divino mantém a responsabilidade sobre as finanças do lar, conseguindo estabelecer satisfatórias relações sócio-familiares" (fls. 30/31).
Só nessa época, foram solicitadas informações ao Hospital Regional de Planaltina - HRP sobre o tratamento ambulatorial e determinada a realização de exame psiquiátrico no sentenciado (fl. 31-v).
O Diretor do HRP informou, em 10.11.94, que Divino estava sob tratamento desde 1988 e tomava regularmente a medicamentação prescrita. Aduziu que o tratamento em curso era o mais indicado e que na opinião médica não mais se fazia necessária a vinculação de Divino à Justiça do Distrito Federal.
Só no dia 15.05.95 o sentenciado foi submetido a exame psiquiátrico e os peritos atestaram (fls. 35/36), que o periciando estava "lúcido, coerente, bem orientado, humor preservado e discurso expontâneo, com conteúdo de pensamento normal. Juízo e nível de crítica preservado no momento do exame".
Concluíram os médicos legistas:
"Trata-se de um periciando jovem que apresentou, num determinado momento de sua vida, distúrbios do comportamento, ficando agitado, com discurso delirante místico e de grandeza. Nível de crítica alterado e com distúrbios da senso-percepção. Devido sua psicopatologia o periciando começou a apresentar atitudes bizarras e sem sentido, história de internação em hospitais particulares, com uso de medicações psicotrópicas, continuando o tratamento em regime ambulatorial. Trata-se portanto de um indivíduo portador de Psicose Esquizofrênica Paranóide. No momento encontra-se em período intercrítico ou com um quadro de Esquizofrenia Residual, onde seus sintomas estão atenuados, podendo o mesmo realizar suas atividades profissionais habituais e ser novamente inserido em seu meio social. Permanece, no entanto, com núcleo patológico em sua personalidade que poderá futuramente dar margem para novas crises onde terá abolidas sua capacidade de entendimento e autodeterminação. CID 295.6" (grifamos).
O fato é que, em 1994, por todos os indicativos pertinentes, o sentenciado já se achava em condições de ser definitivamente liberado da medida de segurança, por cessação de periculosidade. E essa conclusão acabou sendo confirmada, apesar de tardiamente, pelo retromencionado laudo.
Em razão dos vários percalços processuais, Divino que deveria ter saído do controle da justiça penal em março de 1994, permaneceu merecendo seus cuidados como se criminalmente perigoso fosse.
Chegou a ser preso em 17.04.95, na ausência dos autos em cartório - encontravam-se no IML para exame psiquiátrico - e internado no Hospital São Vicente, sob o argumento de "crise" sem que conste exame de comprovação do surto ou de qualquer distúrbio dele conseqüente (fl. 45).
Em 22.05.95, o Centro de Assistência Judiciária requereu a desinternação de Divino, em face do laudo psiquiátrico de 15.05.95 (fls. 48/49), pedido deferido, em 16.06.95 (fl. 52-v), após manifestação favorável do Ministério Público, em 07.06.95 (fls. 51/52).
Em 30.05.95, o interno retornou ao Núcleo de Custódia, procedente do Hospital São Vicente de Paula (fl. 54).
Em 20.06.95, foi decretada a desinternação condicional, pelo prazo de um ano e novamente submetido a tratamento ambulatorial (fls. 58 a 62).
Mantido em regular tratamento ambulatorial, constatou-se em atestado médico de fls. 79 e 80, datados de 26 e 27.03.97, que Divino é soropositivo p/ HIV DESDE set/96 (SIDA grupo II) e suspeita de hepatite.
Em 05.06.97, por determinação desse juízo, os autos foram encaminhados ao IML para a realização de exame psiquiátrico para determinar sobre a eventual "cessação de periculosidade" (fls. 82/83).
Em 27.06.97, acompanhado por familiares, foi examinado, apresentando o laudo de fls. 86/89 impressões tais como: "consciência psíquica lúcida", "bem orientado com relação a si e ao espaço, e desorientado com relação ao tempo", "juízo crítico e ético comprometidos" e "apragmático com relação ao futuro, não tem planos de vida, a curto ou longo prazo". Diagnóstico: psicose crônica associada ao uso de drogas. Conclusão:
"Trata-se de indivíduo portador de doença mental crônica, sem controle dos sintomas no momento, embora encontre-se em acompanhamento ambulatorial. Necessita de internação psiquiátrica, para que se submeta a tratamento adequado, e posterior retorno ao ambulatório com acompanhamento da assistente social. Somos de parecer de que não seja cessada sua periculosidade".
Percebe-se que, a partir de fevereiro de 1994, todos os cuidados relacionados com Divino eram de fato e de direito inteiramente dispensáveis do ponto de vista penal.
Só tardiamente é que se pugna por sua periculosidade. Que Divino necessita de tratamento não há qualquer dúvida, mas daí a afirmar que aludido tratamento deva se dar, em caráter de eternidade, pela via penal, é um despropósito que atenta contra os mais comezinhos princípios do direito criminal.
Por outro lado, o sistema penal já tutelou Divino durante mais de seis anos e não conseguiu nem conseguirá curá-lo. Que mais se pretende com ele, senão tornar sua desgraçada vida, e as de seus familiares, ainda mais tormentosas?
Há o Judiciário de reagir contra a mesmice, pois, "dada a profunda distância entre o normativo e a realidade fática, no tocante à execução da pena, em cuja extensão, colocam-se também as medidas de segurança, o juiz precisa auscultar a teleologia da norma, a fim de alcançar o melhor resultado. Individual e socialmente considerado. Em verdade, os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, quando muito, forma uma ala no estabelecimento prisional de segurança máxima." (RE nº 111.167 - DF, STJ, Sexta Turma, Relator o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ, seção, pág. 39414, de 25.08.97).
Diante disso, entendendo este órgão que não mais subsiste razão para o exame do pedido de internamento, por perda de objeto, requer a decretação da extinção da medida de segurança imposta, determinando-se ao poder público a prestação de assistência à saúde do liberado, não apenas em razão do problema mental mas também por ser soropositivo p/HIV, na condição de egresso (LEP, arts. 10, parágrafo único, 14, 25, 26 e 27).