II. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL E DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
A apreciação da presente demanda pela Justiça Federal se fundamenta justamente no fato da UNIÃO, via Ministério das Cidades, estar financiando, por intermédio do agente financeiro CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, o empreendimento guerreado e as intervenções estarem em desacordo com as normas que autorizam o repasse de verbas federais, maculando as obrigações assumidas pela municipalidade frente aos entes federais.
O descumprimento das diretrizes impostas pelo órgão que fornece as verbas reflete diretamente no objeto do ajuste, o que justifica a suspensão da transferência de recursos pelo Ministério das Cidades e pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, entes que possuem atribuição para fiscalizar a regular execução dos convênios em apreço.
Já a legitimidade do Ministério Público Federal na Bahia, por seu turno, para a propositura da presente ação civil pública, decorre da violação ao patrimônio público federal, encontrando fundamento no art. 129, III, da CF/1988, em conjunto com o art. 6º, inciso VII, b, e inciso XIV, f, da Lei Complementar nº 75/93.
Com efeito, de acordo com a Lei Complementar nº 75 de 1993, a qual institui o regime aplicável ao Ministério Público da União, tem-se que:
Art. 37. O Ministério Público Federal exercerá as suas funções:
I - nas causas de competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Juízes Federais, e dos Tribunais e Juízes Eleitorais;
II - nas causas de competência de quaisquer juízes e tribunais, para defesa de direitos e interesses dos índios e das populações indígenas, do meio ambiente, de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, integrantes do patrimônio nacional;
(...)
Em jurisprudência consolidada, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo pela competência da Justiça Federal, em razão da presença do Ministério Público Federal no polo ativo da demanda, demonstrando reconhecer, destarte, o atrelamento da atuação do Parquet Federal à definição da competência, conforme se mostra na decisão abaixo que inaugurou o entendimento reiterado:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 40.534 - RJ (2003/0185926-2)
RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
RÉU: LOTERIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - LOTERJ E OUTROS
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RÉU: UNIÃO E OUTROS
SUSCITANTE: SORTEIO EMPREENDIMENTOS LTDA E OUTROS
ADVOGADO: CAMILO FERNANDES DA GRAÇA E OUTROS
SUSCITADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
SUSCITADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2A REGIÃO
EMENTA
CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA ESTADUAL. AÇÕES CIVIS PÚBLICAS. EXPLORAÇÃO DE BINGO. CONTINÊNCIA. COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DA JUSTIÇA FEDERAL.
(...)
2. A competência da Justiça Federal, prevista no art. 109, I, da Constituição, tem por base um critério subjetivo, levando em conta, não a natureza da relação jurídica litigiosa, e sim a identidade dos figurantes da relação processual. Presente, no processo, um dos entes ali relacionados, a competência será da Justiça Federal, a quem caberá decidir, se for o caso, a legitimidade para a causa.
(...)
4. Em ação proposta pelo Ministério Público Federal, órgão da União, somente a Justiça Federal está constitucionalmente habilitada a proferir sentença que vincule tal órgão, ainda que seja sentença negando a sua legitimação ativa. E enquanto a União figurar no pólo passivo, ainda que seja do seu interesse ver-se excluída, a causa é da competência da Justiça Federal, a quem cabe, se for o caso, decidir a respeito do interesse da demandada (súmula 150/STJ).
5. Conflito conhecido e declarada a competência do Juízo Federal.
Confiram-se ainda, na mesma linha, os seguintes julgados: STJ, CC 112.137/SP, Segunda Seção, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 1o.12.2010; STJ, CC 86.632/PI, Primeira Seção, Min. Luiz Fux, DJe 10.11.2008; STJ, CC 90.722/BA, Primeira Seção, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ acórdão Teori Albino Zavascki, DJe 12.8.2008.
Ademais, o processamento de ações civis públicas em relação à implantação de BRTs, com recursos repassados pela União por intermédio da Caixa Econômica Federal como agente financeiro, já ocorreu em outras unidades da Federação, a exemplo do Tocantins, no município de Palmas, colhendo-se o entendimento nos autos da ação cautelar de n. 8316-13.2015, que:
22. A CAIXA ECONÔMICA FEDERAL deve figurar como litisconsorte passiva necessária porque é figura central na execução do contrato, tendo a incumbência, inclusive, de efetuar o desembolso dos recursos e receber a prestação de contas. Ademais, a pretensão de invalidar a avença atinge diretamente os interesses da empresa pública federal porque remunerada pelos serviços que presta à UNIÃO.
23. De consequência, mantenho a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL como litisconsorte passiva.
Portanto, consoante se infere do disposto na Súmula 150 do Superior Tribunal de Justiça, sabe-se que compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas, restando incontroversa a competência desse Juízo para exame e julgamento da presente ação civil pública proposta.
Ademais, urgem ser consideradas as seguintes irregularidades detectadas no Parecer Técnico nº. 159/2018, da lavra do CEAT/MEIO AMBIENTE, subscrito por arquiteto, urbanista e engenheiro civil do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA (datado de 25 de maio de 2018), relacionadas ao orçamento estimativo e à demanda inicialmente prevista para o modal de transporte escolhido:
(…) Embora não tenha sido realizada análise quanto ao eventual sobrepreço do orçamento base estimado, foi observada falta de clareza quanto à metodologia e os referenciais utilizados pela Prefeitura Municipal de Salvador para a adoção do valor de R$ 377.257.180,83 (trezentos e setenta e sete milhões, duzentos e cinquenta e sete mil, cento e oitenta reais e oitenta e três centavos). O edital, no item 3.2.1, página 16, “do orçamento e preço de referência”, limita-se tão somente na adoção de texto semelhante ao disposto no Art. 9º, §2º, inciso II da Lei nº 12.462, já citado anteriormente, com a apresentação de diferentes metodologias aplicáveis. Caso tenha sido utilizado o método de estimativa com base nos valores pagos pela administração pública em serviços e obras similares é importante que seja esclarecido quais obras foram utilizadas como parâmetro para a justificativa do valor adotado(…). Existe consolidação na literatura acadêmica, reforçada em diversos estudos nacionais e internacionais, inclusive consta no Manual BRT 2008, que a definição do modal BRT tem como característica geral, o baixo custo de implantação aliado ao baixo impacto ambiental para intervenção viária/implantação e o baixo impacto visual das intervenções. No BRT em questão, a Prefeitura de Salvador não tem comprovado essas características/vantagens (página 10). Outra situação, também não apresentada, é o peso da viabilidade técnica e econômica na escolha da concepção de projeto para minimizar os custos com os ‘9 elevados’, inclusive na adoção de outras soluções técnicas, efetivando a economicidade, princípio obrigatório nas licitações públicas. A viabilidade técnica e econômica não pode estar dissociada do partido urbanístico a ser adotado. No caso em questão, a concepção dos elevados efetiva o alto custo das obras do BRT em Salvador (página 11). A prefeitura de Salvador não tem comprovado nos autos ministeriais ou mesmo disponibilizado no site do BRT, por meio de estudo específico de impacto de vizinhança (EIV), possíveis impactos negativos apresentados, e ações mitigadoras, a serem tomadas. O EIV é matéria técnica relevante pela intervenção proposta, e não é substituído pela elaboração e a aprovação do estudo prévio de impacto ambiental (EIA), conforme artigo 38 do Estatuto da Cidade. Lei federal 10.257 de 2001(….).
Além disso, o laudo técnico concluiu não ter sido possível avaliar as projeções futuras nos estudos de demanda para os cenários de 2019 até 2044, haja vista o fato de os estudos terem sido confeccionados em 2013. Isto porque, nesta época em que foram realizados tais estudos de demanda (2013), o Metrô de Salvador não estava em funcionamento, metrô este, que, ressalte-se, liga os mesmos destinos dos trechos iniciais do BRT/Salvador (LIP/LAPA), o que evidencia que a demanda existente à época para justificar o projeto, muito provavelmente, foi diminuída com o modal já existente e em pleno funcionamento. Deveriam ser elaborados novos estudos levando em consideração este novo cenário de mobilidade.
Para melhor demonstrar o acima exposto, utiliza-se a ilustração a seguir, que demonstra os trajetos de ambos os modais:
Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/viaduto-sera-construido-em-frente-ao-shopping-iguatemi-para-passagem-de-brt/
Com efeito, não se ignora a certeza de que a “escolha de uma modalidade de transporte coletivo em descompasso com a demanda de passageiros implicará onerosidade excessiva para o município que pagará o financiamento federal, custo esse que certamente será repassado para as tarifas pagas pelos usuários.”7
Assim, tendo em vista que, mesmo cientes das irregularidades em apreço, a CEF e, especialmente, a UNIÃO, não exerceram seus poderes administrativos, no sentido de impedir a aplicação das verbas no empreendimento em desacordo com as normas vigentes, estas devem ser compelidas judicialmente a suspenderem o repasse de recursos, que estão sendo utilizados para custear obra que não atende às exigências legais e às diretrizes do próprio Ministério das Cidades para o tipo de obra civil que se ajustou no objeto do pacto.
As flagrantes ilicitudes apontadas justificam a intervenção corretiva dos referidos entes federais, que repassam os recursos ao município, pois a regularidade ambiental e urbanística do empreendimento constituem exigências do órgão conveniado, quando da transferência da verba pública para o ente municipal.
Registre-se que não se está ajuizando a presente ação em face da UNIÃO e da CEF pelo simples fato destes entes estarem custeando o empreendimento irregular, mas sim em razão das suas omissões em fiscalizar e exigir o regular cumprimento das normas previstas no convênio que firmaram com o município de Salvador/BA e a observância dos demais aspectos jurídicos levantados.
A omissão ilícita da UNIÃO e da CEF, no caso concreto, as tornam corresponsáveis pelos atos ilícitos e eventuais danos ao meio ambiente, além de legitimar o provimento jurisdicional que as obrigue a exercer a ação fiscalizadora própria de órgãos custeadores do empreendimento.
Assim, como principais entes financiadores do empreendimento irregular, a UNIÃO e a CEF devem zelar, ainda que não sejam licenciadores ou executores da obra, pelo respeito ao correto licenciamento e observância das diretrizes nacionais do Governo Federal para a efetivação de projetos de mobilidade urbana, como no caso em tela do BRT/SALVADOR, sendo patente o interesse federal.
Nesse contexto, faz-se oportuno ressaltar que, por disposição legal (art. 3º, IV, da Lei 6.938/81), o agente causador do dano ambiental não é somente aquele que age diretamente para sua ocorrência, como também aquele que tem o dever de agir para evitá-lo e não o faz, ou o faz sem eficiência, considerando-se este último como responsável indireto.
Entretanto, em que pese o afirmado, em virtude de, basicamente, a conduta da União e da CEF aperfeiçoarem-se em ato omissivo, podendo ser minoradas as consequências perpetradas com a imediata atuação daquele ente público, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA requerem, desde já, sejam a UNIÃO e a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, assim que citadas, cientificadas da possibilidade, de integrar o polo ativo da demanda, por aplicação analógica do dispositivo inserto no artigo 6º, §3º da Lei nº. 4.717/65 (Lei de Ação Popular).
Oportuno mencionar, ainda, que o Ministério Público do Estado da Bahia expediu Recomendação, em 27 de abril de 2018, dirigida ao Superintendente de Conservação e Obras Públicas de Salvador (SUCOP), Sr. Orlando Cezar da Costa Castro, para que fosse imediatamente suspensa a obra civil, que já estava suprimindo vegetação no entorno da Av. ACM e Av. Juracy Magalhães, até a conclusão do Laudo Pericial de Impacto Ambiental do CEAT do Parquet Estadual (fls. 117 do IC nº. 1.14.000.002854/2016-55), Recomendação, até então, não atendida.
Considerando os entraves orçamentários e a relevância dos aspectos ambientais da obra, que culminaram na forte repercussão social observada na cidade, como manifestações, passeatas e atos em defesa do meio ambiente e pela responsabilidade na gestão dos recursos públicos, necessária se faz a busca do provimento jurisdicional, em caráter de urgência, para proteger estes importantíssimos interesses difusos, devendo o empreendimento de mobilidade, tão importante para a capital baiana, ser executado a partir de uma efetiva e significativa participação popular e em harmonia com o atual estado da arte, resguardando-se assim o meio ambiente ameaçado de danos irreparáveis, os quais ainda podem ser evitados.
Destarte, torna-se imperioso que o empreendimento BRT/SALVADOR seja imediatamente paralisado, pelos fatos brevemente narrados e pelos fundamentos jurídicos a seguir explanados.