2. A COLONIALIDADE MANIFESTA NA ADI 3239: O CONCEITO COLONIALIZADO DE QUILOMBO E O EMBRANQUECIMENTO DE TERRAS PÚBLICAS E PARTICULARES
O sistema escravocrata racializado teve início como colonialismo com hierarquia superior europeia e inferior dos povos colonizados em um mecanismo que permaneceu, como já referido, após a declaração de emancipação das nações como colonialidade que atua na manutenção das inferiorizações como par oculto da modernidade (QUIJANO, 2005). Neste capítulo, trilha-se pela colonialidade como forma de manter o laço de inferiorização pela negação de direitos aos remanescentes dos quilombos garantidos na CF/88 .
De acordo com Quijano (2005), a colonialidade possui como eixo de dominação e de exploração a classificação racial/étnica da população do mundo em que a raça branca se encontra em posição hierárquica superior às outras, operando nas dimensões materiais e subjetivas da existência social quotidiana e da escala societal.
Andando por este caminho, percebe-se que o direito se apresenta como instrumento de intimidação das revoltas escravas e de punição exemplar dos rebelados ou aquilombados. Na verdade, o direito pode ser considerado partícipe do processo de colonialidade que mantém a desumanização de negros e de negras.
Não se limita às penas cruéis que previam a pena de morte a negros rebelados ou que cometessem homicídio contra quem possuía a chave da senzala, mas também ao impedimento de pessoas negras terem seus direitos territoriais, como a Lei das Terras. É possível identificar uma nítida relação entre a Lei das Terras e a Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3239 proposta pelo DEM, pois ambas possuem o mesmo objetivo: impedir que os negros e as negras tenham acesso à terra que ocupam com suas moradias rurais e urbanas e suas roças rurais.
A ADI 3239 emerge da colonialidade que inferioriza a pessoa negra na hierarquização eurocêntrica, e que se legitima pela naturalização da suposta supremacia branca com a consequente subalternização, exploração e desumanização dos não brancos. Na referida ação judicial, sobressai um entendimento de que a colonialidade do poder se utiliza da hermenêutica jurídica para mitigar os aspectos que são favoráveis aos subalternos.
A discussão no presente capítulo segue o seguinte itinerário: a pessoa escravizada e o direito; a inferiorização pela raça; a mundialidade do projeto europeu; a diferença entre colonialismo e colonialidade; a colonialidade do poder, do saber e do ser; o sujeito de direito e o ser negro; as terras quilombolas na CF/88 ; a contestação do direito às terras quilombolas e a colonialidade na ADI 3239.
2.1. A pessoa escravizada e o direito
A escravidão praticada nas colônias europeias na América Latina, entre o final do século XV e o século XIX, ataca, inicialmente, os habitantes das terras colonizadas, denominados pelos europeus de índios. Por diversas razões, entre elas, o próprio extermínio destes povos (DORIGNY; GAINOT, 2017) para eliminar o vínculo territorial de pertencentes à terra dominada, a utilização da mão de obra dos negros da terra (FERREIRA; FRANÇA, 2012), posteriormente, é substituída por negros africanos.
“Legalizado, estruturado, até mesmo, incentivado, o tráfico negreiro foi, portanto, uma prática legal desde o final do século XV para as potências ibéricas e, mais tardiamente, para os recém-chegados ao Novo Mundo” (DORIGNY; GAINOT, 2017, p. 27). Foram milhões de pessoas sequestradas da África e trazidas para as colônias instaladas na América, sendo que o cativeiro da maioria delas foi erguido no Brasil, recebendo cerca de um terço do total do tráfico (DORIGNY; GANOIT, 2017).
Apenas em 1850, o tráfico negreiro entre a África e o Brasil passou a ser considerado ilegal, embora a Lei de 7 de novembro de 1831 já declarasse livre os escravos vindos de fora do Império. O tráfico estava proibido; a escravidão, porém, perdurava, pois havia determinação legal que a autorizava. O direito escravizou crianças, jovens, mulheres, homens, ou seja, escravizou pessoas de todas as idades, incluindo aquelas que conseguiam envelhecer, que eram poucas, considerando que a expectativa de vida desse universo era muito baixa.
Em função do domínio espanhol sobre Portugal, que durou de 1581 a 1640, as Ordenações Filipinas regeram juridicamente o sistema escravocrata em terras brasileiras. Esta codificação vigeu por um longo tempo por aqui. Definiu, por exemplo, as relações civis até a entrada em vigor do Código Civil de 1916 e as criminais até o ano de 1830, quando houve a promulgação do Código Criminal do Império (SOUSA; SILVA, 2017).
Nas Ordenações Filipinas, o escravo recebe o tratamento legal destinado à coisa (SOUSA; SILVA, 2017). A Constituição brasileira de 1824 não reservou ao escravo outro destino, mantendo-o com o status de coisa. Conforme seu art. 6°, para ser cidadão brasileiro, deveria ser ingênuo ou liberto. Ingênuo era o homem que era livre desde a sua nascença, e liberto aquele que havia nascido escravo e logrou adquirir posteriormente a sua liberdade.
Portanto, a norma constitucional não lhe reconhecia como pessoa humana, como sujeito de direito. Os escravos não eram sequer admitidos a se alistarem como soldados no exército nem na marinha. A Igreja Católica, do mesmo modo, não os queria nas suas fileiras, proibindo-os de exercer cargos eclesiásticos (MALHEIROS, 1976).
O direito havia reduzido o ser humano africano à condição de coisa, extraindo-lhe a dignidade, desumanizando-o. Por ser coisa, o escravo estava sujeito ao poder e ao domínio de outro ser humano, denominado de senhor. Este podia vendê-lo, cedê-lo a título gratuito ou oneroso (MALHEIROS, 1976). O escravo possuía valor tal qual uma mercadoria.
O preço do escravo era determinado por variáveis dependentes de sua própria pessoa, tais como: idade, sexo, saúde e qualificação profissional. Outras, totalmente externas a ele, também participavam na formação do preço: a concorrência, a distância entre o porto de desembarque e o ponto de venda, a especulação e a conjuntura econômica. A concorrência entre as grandes potências econômicas nos mercados escravos representava um papel considerável na formação do preço do escravo. (MATTOSO, 2016, p. 101).
Vendiam-se e compravam-se seres humanos, ficando o preço submetido à lei do mercado. O valor era definido pelas características que trazia no seu corpo e no seu intelecto. Carne humana de boa, média ou de péssima qualidade. Havido por morto como pessoa (MALHEIRO, 1976), a força humana que o escravo possuía, no entanto, era explorada à exaustão. O corpo negro gozava, pois, de valor e não de dignidade humana.
Se a lei civil definia a pessoa escrava como coisa, a lei penal não lhe permitia esquecer de sua situação jurídica, impingindo-lhe penas cruéis e degradantes. O artigo 179, XIX, da Constituição de 1824, que abolia os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e quaisquer outras penas perversas não era dirigido aos escravos. A lei era igual para todos, dispunha o inciso XIII, do mesmo artigo. Todavia, o escravo não era ser humano, não podendo integrar o pacto que originaria a nação brasileira.
Malheiros pontua (1976, p. 35) que:
Desde que o homem é reduzido à condição de cousa, sujeito ao poder e domínio ou propriedade de um outro, é havido por morto, privado de todos os direitos, e não tem representação alguma, como já havia decidido o Direito Romano. Não pode, portanto, pretender direitos políticos, direitos da cidade, na frase do Povo Rei; nem exercer cargos públicos. (Grifo no original).
O direito constitucional imperial, recheado de garantias e direitos individuais (BASTOS, 1996), retirou do ser humano em situação de escravo o valor que possuía em si mesmo (SANTOS, 1999), destituindo-lhe de direitos fundamentais, negando-lhe dignidade, como já ocorria no direito romano, com a diferença da racialização da escravidão do projeto de domínio europeu, que lhe impingia a marca de naturalização. Por isso, as leis, as portarias, recomendando que os castigos guardassem proporção às irregularidades cometidas pelos escravos, eram contumazmente descumpridas (PINSKY, 2015).
O fato é que para o proprietário os escravos eram vistos antes como propriedade do que como seres humanos. Dessa forma, achavam-se no direito de descumprir leis que considerassem atentatórias à sua condição de donos; não reconheciam na Coroa portuguesa autoridade para limitar aquilo que consideravam seus direitos: propriedade absoluta sobre o escravo, condições de vendê-lo, trocá-lo ou até libertá-lo e, principalmente, de puni-lo até a morte, se não estivesse rendendo tudo aquilo que dele ela esperado. (PINSKY, 2015, p. 68).
A observação de Pinsk refere-se à época do Brasil Colônia, mas vale para o Brasil Império. Na verdade, os escravos, no cotidiano das fazendas, recebiam o tratamento de coisa, desnudados de qualquer valor como ser humano. A lei que permitia a comercialização destes seres, dando legítima posse e propriedade àqueles que os adquirissem, preponderava sobre qualquer outra.
Àqueles que resistem à opressão do sistema escravocrata, a lei garantia tratamento diferenciado. Assim, o código criminal do Império, de 1830, lançava um olhar particularizado sobre os negros escravizados rebeldes. Era preciso combatê-los nem que fosse necessário matá-los e, por conseguinte, perder mercadoria tão valiosa.
Contudo, o código criminal vinha repleto de normas que procuravam garantir o devido processo legal aos homens brancos europeus e a seus descendentes.
Saudado como símbolo de modernidade e portador das novas idéias liberais então em voga na Europa, o Código criminal editado em 16 de dezembro de 1830, exibia, entre seus 312 artigos, um significativo leque de normas diretamente destinados à contenção da rebeldia negra, seja entre escravos, seja entre livres e libertos [...]. (SILVA JR., 1998, p. 73).
A modernidade do código criminal não disfarçava que a cadeia, o presídio, era destinado aos negros. A lei criminal é negra ao punir e branca para absolver por sentença ou pela prescrição. O corpo negro é ultrajado pela Constituição, pela lei civil e pela lei criminal.
De acordo com Pinsky (2015, p. 80), “[...] não havia formalidade quando se tratava de matar um negro”. A Lei 4, de 10 de junho de 1835, demonstra como esta afirmação do autor guarda sintonia com a realidade.
No dia 7 de abril de 1831, após um processo que contou com a participação de diferentes atores e com a efetiva participação popular, Dom Pedro I abdicou do trono (BASILE, 2017). Durante a vacância, 1831 a 1840, em função da menoridade de Dom Pedro II, sucessor legítimo, o Brasil foi governado por regentes.
Basile (2017) pontua que o período regencial é marcado por forte tensão social e acirrada disputa política entre as elites locais, culminando em diversos movimentos de protesto e revolta em praticamente todo o Brasil. Nesse período, encontram-se rebeliões construídas basicamente por escravos, tais como: Carrancas, no ano de 1833, em Minas Gerais; Malês, em 1835, na Bahia; e Rebelião de Manuel do Congo, em 1838, no Rio de Janeiro. Há, ainda, aquelas que tiveram intensa participação da comunidade escrava: Cabanada, nos anos de 1832 a 1835, em Pernambuco e Alagoas; e a Balaiada, nos anos de 1838 a 1841, no Maranhão e Piauí (BASILE, 2017).
A resposta do sistema escravocrata a essas manifestações dos escravos foi a aprovação da Lei nº 4, de 10 de junho de 1835. Esta Lei estabelece em seu art. 1º que:
Serão punidos com a pena de morte os escravos ou as escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seus senhores, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem.
Se o ferimento, ou a ofensa física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.
Percebe-se que a Lei procura proteger, por meio de uma pena capital, aqueles que efetivamente exerciam o controle sobre os corpos escravizados. Era preciso cercar de cuidados aqueles que eram os responsáveis por manter o sistema escravocrata funcionando perfeitamente.
Diante da considerada insuficiência das punições tipificadas na lei penal que não foram capazes de conter a rebeldia negra, o Código Criminal punia com a pena de morte apenas os casos de insurreição de escravos, de homicídio qualificado e de homicídio com roubo (RIBEIRO, 2013), o sistema escravocrata demandou a necessidade de aprovar uma lei que trouxesse outras condutas passíveis de imposição da pena de morte aos escravos e que deixasse aos magistrados a forte discricionariedade no momento de aplicá-la: a grave ofensa física. A referida Lei não descreve as lesões que caracterizariam a grave ofensa física. Dessa incerteza semântica, surgia a convicção da punição aos escravos rebeldes.
Destaca-se que, de acordo com o art. 4º dessa Lei, em caso de sentença condenatória, não caberia qualquer recurso. Para Malheiros (1976, p. 48):
Quanto aos recursos, é exorbitante de todos os princípios de justiça que contra o escravo condenado, nos casos especiais da Lei de 10 de junho e outros, subsista a primeira e única decisão, sem lhe ser facultada a revisão do processo, quando tal condenação pode ser injusta, como infelizmente se tem verificado em muitos casos.
Desse modo, a sentença era executada sem que o escravo detivesse o direito de recorrer ao imperador, que poderia modificar a pena que lhe foi aplicada, inclusive perdoando-o (PINSKY, 2015). Sem direito a recurso, o escravo seria punido exemplarmente, protegendo, pelo possível efeito pedagógico da pena, aqueles que moravam na Casa Grande.
A proposta de 1833 elegia, nesse sentido, a família senhorial e os agentes mais diretamente ligados ao controle da produção como um grupo privilegiado, que passaria a ter uma barreira legal de proteção contra possíveis ações rebeldes dos cativos. Os ataques escravos contra esse grupo seriam severamente reprimidos. (PIROLA, 2012, p. 36).
Ao fugir, ao rebelar-se, o escravo deveria, em primeiro lugar, livrar-se das correntes que o prendiam e daqueles que o mantinham em cativeiro. Por isso, a necessidade de proteger aqueles que possuíam as chaves das senzalas. O caso de Ambrósio evidencia o afirmado.
Tudo indica que o escravo Ambrósio estava decidido a viver em liberdade, a todo custo. Ao fugir da casa de seus proprietários, negociantes da cidade de Campinas, matou o empregado que experimentou impedi-lo. Sendo alcançado em Sorocaba, novamente deu cabo de um dos que tentavam reconduzi-lo ao estado de cativeiro. Condenado e preso, logo escapou, colocando em alerta aqueles que o temiam circulando, pois ele jurava várias pessoas de morte. Apanhado em Botucatu, foi reconduzido à cadeia de Campinas. (ODA; OLIVEIRA, 2008, p. 372).
Tais fatos aconteceram no ano de 1873. O negro Ambrósio só não foi sentenciado à pena de morte porque, em 12 de outubro de 1874, suicidou-se com um golpe de faca em seu pescoço (ODA; OLIVEIRA, 2008). Os autores afirmam que as ocorrências criminais de Ambrósio tiveram grande repercussão entre os moradores da cidade de Campinas-SP.
Nas décadas que antecederam a extinção da escravidão em terras brasileiras, havia um medo crescente de insurreição de escravos, levando a sociedade escravocrata a criar normas que impediam ou que puniam exemplarmente quem dela participasse (COSTA, 2010).
Uma delas proibia que os escravos adquirissem e portassem armas. Outra que compensava pecuniariamente o escravizado que denunciasse algum plano insurrecional. Havia, quase sempre, alguém pronto a trair seus companheiros de senzala. Entre esses, havia aqueles que se tornariam capitão do mato, o que minava internamente a resistência.
Durante toda a existência do Estado brasileiro, no regime escravista, ele se destinava, fundamentalmente, a manter e defender os interesses dos donos de escravos. Isto quer dizer que o negro que aqui chegava coercitivamente na qualidade de semovente tinha contra si todo o peso da ordenação jurídica e militar do sistema, e, com isso, todo o peso da estrutura de dominação e operatividade do Estado. (MOURA, 1988, p. 22).
A figura do capitão do mato compõe essa estrutura de dominação e operatividade do Estado escravocrata. Sua origem encontra-se relacionada aos quadrilheiros, que possuíam o encargo de controlar os moradores das vilas e das cidades portuguesas. Tinham como atribuição o policiamento dos costumes e de repressão a ilícitos penais. Em 1730, a Câmara do Rio de Janeiro institui os quadrilheiros em terras brasileiras, modificando a designação para capitão do mato, com a função exclusiva de captura de escravos fugidos (FIABANI, 2005).
Se alguns escravos desafiavam o regime escravocrata individualmente, o capitão do mato, um negro que capturava os escravos fugidos, fazia dessa empreita seu projeto de ascensão social. Segundo Pinsk (2015), o serviço desempenhado pelo capitão do mato ,além de ser bem renumerado, era legitimado socialmente: “Ser capitão do mato, trair suas origens, era uma das poucas formas de o negro romper a barreira etnossocial e usufruir – carregando embora a maldição de traidor – o sistema que o havia oprimido” (PINSK, 2015, p. 88).
Freire (2016) acentua que, em um processo de desumanização, o oprimido compreende que “ser é parecer e parecer é parecer com o opressor”. Uma humanização que não se completa por inteiro, pois não permite a consciência de si. Uma humanização por aparência.
A estrutura de seu pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de humanidade. (FREIRE, 2016, p. 44).
É imerso nessas contradições que o capitão do mato procura desempenhar com robustez a sua profissão: caçar negros fugidos. Desse modo, ele representa uma peça em uma engrenagem que o sistema escravocrata construiu para combater as fugas individuais e principalmente os quilombos. Criaram-se uma estrutura administrativa e um arcabouço jurídico que cuidavam da repressão aos quilombos, criminalizando, inclusive, o auxílio aos escravos fugidos. “A fuga não era crime, mas auxiliar e esconder fugitivos – acoutar – se constituía em crime grave” (FIABANI, 2005, p. 295). Os escravistas sabiam que não havia como se manter em fuga se não houvesse ajuda de cativos, libertos ou livres.
Pequeno ou grande, os quilombos foram enfrentados tenazmente, geralmente por tropas organizadas pelas autoridades locais. Esse aparelho repressor aos quilombos é desarticulado com a extinção da escravidão, em 1888.
Não havia mais necessidade de controlar a fuga dos cativos e de destruir quilombos. Agora era necessário desarticular os que permaneciam fincados em algum lugar e os que estavam em processo de formação, e construir o discurso de que os quilombos pertenciam ao passado escravista. O direito continuava sendo um forte aliado. Agora, com uma tática sui generis: o silêncio, e, com isso, o apagamento das experiências, evitando o acionamento de demandas jurídicas por pessoas marcadas pela herança escravocrata.
Nenhuma das constituições republicanas, até a promulgação da Constituição em vigor, no ano de 1988, faz qualquer menção aos quilombos, inclusive a primeira Constituição da República, datada do ano de 1891, portanto, apenas três anos após a edição da Lei 3.353/1888, que declarou extinta a escravidão no Brasil.
Após um longo período de invisibilidade, os quilombos voltam a integrar o direito pátrio. Como a maioria dos quilombos que se ergueram em local de difícil acesso, escondidos em serras, pântanos e florestas, a comunidade quilombola edificou suas cercas no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988. Um local com aparência de puxadinho em relação ao texto constitucional, considerando a natureza e a localização do ADCT no final do texto constitucional, provocando discursividades sobre a natureza constitucional e o prazo de validade deste.
Para o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffloli10, as disposições contidas no ADCT não possuem a mesma natureza jurídica que as outras regras constitucionais que se localizam, propriamente, no texto constitucional, insinuando que tratam de preceitos de caráter transitório e excepcional. No entanto, há quem entenda que “As normas do ADCT são normas constitucionais e têm o mesmo status jurídico das demais normas do Texto principal” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 88).
Independentemente da natureza jurídica do art. 68 do ADCT da CF/88, o aparelho repressor aos quilombos, que não havia se desmantelado por inteiro, cuidou de destruir as cercas, as paliçadas e silenciar os sons dos tambores das comunidades quilombolas. Para isso, utilizou-se de antigas e de novas estratégias, mas ambas com apoio do direito.
De fato, o direito não apenas respalda essas ações, como representa o próprio mecanismo de enfrentamento aos quilombos. Assim, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), em junho de 2004, protocolou, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação judicial, a ADI 3239, em que questiona a constitucionalidade do Decreto 4.887/200311.
Este Decreto regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de l988 (CF/88).
Na ação, entre outras coisas, o DEM, ainda que de forma indireta, objetiva que o STF fixe o conceito de quilombo como “[...] comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país” 12.
Adstringir o movimento quilombola a um passado remoto, significa dizer que não existem mais os motivos pelos quais os negros se aquilombaram. A partir da leitura do seu pedido de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, pode-se afirmar de forma incisiva que o DEM deseja destruir os quilombos permanentemente.
Nina Rodrigues entendia que os quilombos, referindo-se principalmente a Palmares, representavam uma ameaça ao processo civilizatório brasileiro e que, por isso, aqueles que os destruíram mereciam todos os louvores.
A todos os respeitos menos discutível é o serviço relevante prestado pelas armas portuguesas e coloniais, destruindo de uma vez maior das ameaças à civilização do futuro povo brasileiro, nesse novo Haiti, refratário ao progresso e inacessível à civilização, que Palmares vitorioso teria plantado no coração do Brasil. E esse sucesso não foi produto de uma ação fácil e sem perigo. Custou, ao contrário, à tenacidade e previdência do governo colonial, grandes sacrifícios de homens e de dinheiro. (RODRIGUES, 1982, p. 78).
Embora, aparentemente, uma revolução negra tenha se dissipado nos horizontes históricos do Brasil, o projeto da colonialidade permanece e, com ele, a perspectiva de apagar da história qualquer referência positiva que se faça aos quilombos com a política de enaltecer os responsáveis pela destruição das comunidades quilombolas, erguendo bustos em praças públicas, nomeando escolas, ruas, avenidas, cidades com seus nomes para enterrar na história para sempre a rebeldia negra.
Para tanto, o DEM almeja aprisionar o conceito de quilombo a uma experiência que se esgotou com o fim da escravidão. Mais do que isso, quer deslegitimar o discurso dos quilombolas. É preciso esvaziar por completo o significado que o art. 68 do ADCT da CF/88 pode representar para as comunidades negras. O direito é o instrumento escolhido para tal empreita.
Acontece que é a partir da norma constitucional que as comunidades quilombolas acionam processos que lhes dão visibilidade, principalmente jurídica, e que serve ao mesmo tempo como ponto de partida para que negros e negras se aquilombem na luta por terra, moradia e pela preservação dos seus modos de criar, de fazer e viver.
No caso, há uma disputa, expressa na ADI 3239, pelo conceito de quilombo em que o DEM pretende relegar a experiência quilombola ao passado de um Brasil escravocrata. Nega, por meio desse discurso, que ainda perduram os motivos pelos quais os negros e as negras se aquilombavam, invisibilizando os quilombos que se formaram e se levantam hodiernamente nas periferias das cidades brasileiras.
Esse processo de desvalorização da resistência negra constitui um dos elementos da colonialidade, assim como, a demonização das religiões de matriz africana, a folclorização de suas culturas e, principalmente, na desumanização de seus corpos negros. Tudo isso com um objetivo bastante nítido: embranquecer a religião, o saber, os corpos. Santos (2002, p. 101) afirma que no Brasil há “um desejo do branqueamento”. No caso, o DEM pretende evitar o enegrecimento do solo brasileiro com o reconhecimento do devido pertencimento das pessoas negras pela titulação das terras em que vivem e trabalham. Sem terra para cultivar seus modos de criar, de fazer e de viver, não há como negros e negras viverem de forma digna, plena. É privar o negro de sua beleza estética, moral e material (SANTOS, 2002).
Quijano (2005) demonstra que os negros africanos e afrodescendentes, a partir da ideia de raça, foram colocados em uma situação natural de inferioridade pelos povos europeus. Esta construção mental ainda permeia, mesmo com o fim da dominação colonial, as relações sociais nos países da América Latina, incluindo, logicamente, o Brasil.
2.2A ideia de raça como inferiorização do colonialismo e da colonialidade
Segundo Godeiro e Soares (2016), o mercado mundial capitalista se formou entre 1500 e 1750, apoiado em capital comercial que financiou um sistema que dominou e escravizou indígenas e africanos, e se apropriou das riquezas existentes, em sua maior parte, na América. A prosperidade da Holanda, da Inglaterra, da Espanha, e em menor escala, de Portugal, só foi possível graças ao sistema colonial.
A exploração das colônias permitiu uma acumulação inicial de riqueza que deu vida ao capitalismo industrial nascido na Inglaterra por volta de 1750 e, posteriormente, possibilitou a nova época do capitalismo mundial, o imperialismo, que surgiu entre 1875 e 1900. (GODEIRO; SOARES, 2016, p. 26).
A acumulação destas riquezas na Europa significou o empobrecimento das colônias e uma matança generalizada e desmedida dos povos originários da América e de negros africanos que serviram de mão de obra escrava nas áreas colonizadas. “Quanto mais as metrópoles se enriqueciam, mais as colônias se empobreciam” (GODEIRO; SOARES, 2016,p. 27). Para estes autores,
Com o surgimento do mercado mundial, a história só pode ser apreendida numa totalidade. Sem entender o fenômeno do capitalismo nascente e seu domínio do mundo não é possível analisar, seriamente, a economia e a política mundial e local, de 1500 em diante. Desde então, o capitalismo assumiu três fases (mercantil, industrial e monopolista) e se consolidou como um sistema econômico e político mundial. (GODEIRO; SOARES, 2016, p. 27).
De fato, a compreensão desse evento histórico, o surgimento do capitalismo/moderno e eurocentrado (QUIJANO, 2005), serve como ponto de partida para analisar a economia, a política e, principalmente, as relações sociais travadas nos países colonizados. No entanto, chama-se a atenção para incluir nos elementos dessa reflexão a ideia de raça.
De acordo com Quijano (2005), a América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial: o capitalismo/moderno e eurocentrado. O espaço, o continente americano; o tempo, os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.
Para isso, segundo esse autor, os colonizadores europeus construíram a ideia de raça, em que uma delas, apenas uma, se sobressai sobre as outras por ser naturalmente superior. Essa superioridade outorgaria legitimidade às relações de dominação que surgem a partir da colonização de territórios e da escravização de seres humanos.
Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importante do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. (QUIJANO, 2005, p. 227).
Portanto, a dominação colonial dos europeus sobre os povos latino-americanos, incluindo aqueles trazidos da África para estas terras, baseou-se na ideia de que há uma raça superior à outra. Essa classificação social obedece a um padrão estabelecido pelo colonizador no qual preponderam seus interesses e seus objetivos.
Escobar (2005, p. 136) afirma que os lugares são uma criação histórica que devem ser explicados, considerando-se as maneiras pelas quais “[...] a circulação global do capital, o conhecimento, e os meios configuraram a experiência da localidade”. A América Latina seria, então, um lugar forjado em processos de dominação e escravização de indígenas e de negros africanos, da exploração dos recursos naturais e de suas riquezas pelos colonizadores, permitindo o acúmulo de capitais que possibilitou a concretização do projeto de modernidade na Europa.
Uma história movida pela vontade de apropriação de riquezas e territórios, de extrema ganância, de banalização do ser humano, de violência insana, de genocídio de povos indígenas e da escravização de milhões de pessoas por europeus brancos. Uma experiência que deixou um gosto amargo na vida dos não brancos e que, ainda, costura relações sociais assimétricas em seu cotidiano. Há um pós-colonial, mas não existe uma pós-colonialidade.
La colonialidad va más allá del colonialismo, el cual es apenas una parte de ella. Ni siquiera es simplemente una jerarquía política sino también una jerarquía sociocultural. Por esta razón, prevalece sin tropiezos aún después de que las colonias obtuvieron su independencia formal. La colonialidad ha existido como parte del sistema mundial moderno hasta hoy es el producto y la justificación de las desigualdades entre las zonas centrales y las zonas periféricas de la economía -mundo capitalista. Se manifiesta política, económica y culturalmente, en nuestra forma de pensar, hablar y proceder. La colonialidad se reproduce así mismo, pese a que las personas que se encuentran en los niveles más bajos de la jerarquía tratan, obviamente, de luchar contra ella.13 (WALLERSTEIN, 1992, p. 3).
Colonialidade, logo, não possui o mesmo significado de colonialismo. Este se manifesta pela relação política e econômica entre duas nações ou dois povos em que um deles tem seu território ocupado, ficando submetido à autoridade e ao controle desmedido do outro. Por sua vez, colonialidade expressa um padrão de poder, moldado juntamente com o colonialismo e refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si, por meio do sistema capitalista e da ideia de raça (MALDONADO-TORRES, 2007).
A atuação da colonialidade como padrão se deve ao fato de possuir uma gênese única que determina um modelo que serve de paradigma para processos e procedimentos. A origem é eurocentrada e o modelo fundamentado na ideia de que a raça branca é superior a qualquer outra.
A relação colonizador-colonizado se manifestava pela tonalidade da pele em que o primeiro se arvora do direito de classificar o outro e de escravizá-lo. Com o fim do colonialismo, essa relação resumiu-se a branco-negro, branco-mestiço, em que o segundo continua desempenhando papéis similares àqueles imputados aos escravizados.
O colonialismo precede, pois, à colonialidade e esta não findou com o término do regime colonial, encontrando-se entranhada, ainda hoje, no modo como se vive e como se sente no continente latino-americano, na África e na Europa na relação com migrantes não brancos. Nada escapa à colonialidade. Maldonado-Torres (2007) afirma que, cotidianamente, respira-se a colonialidade. Poder-se-ia usar a crase que o sentido não se modificaria: respira- se à colonialidade.
La misma se mantiene viva em manuales de aprendizaje, em el critério para el buen trabajo acadêmico, en la cultura, en sentido común, em la auto- imagem de los pueblos, en las aspiraciones e de los sujetos, y en tantos otros aspectos de nuestra experiência moderna.14 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).
O colonialismo se apossa de riquezas e desumaniza seres humanos pela escravização. A colonialidade também trilha por esses mesmos caminhos, porém o faz sutilmente, embora se utilize da mesma carga de violência: é preciso se embranquecer para ser um ser humano.
A colonialidade designa, pois, um sistema de dominação, estruturado na ideia de raça, na qual as relações entre os sujeitos são verticalizadas, baseada na suposição de que há uma identidade superior a outra. Os destinos dos seres humanos foram traçados, por conseguinte, em função da raça: ao branco, o mando, a pureza, a luz, a honestidade, a racionalidade; ao negro, a obediência, as trevas, a ignorância, a desonestidade, a insensatez, a irracionalidade e tudo qualificado como ruim, mal.
Maldonado-Torres (2007) alerta que não se pode considerar a colonialidade como resultado ou o resíduo de qualquer relação colonial. A colonialidade possui uma lógica de funcionamento específica que se estrutura e se movimenta sobre dois eixos: a codificação das diferenças biológicas na ideia de uma raça na qual os brancos são superiores a todas as outras e a constituição de uma nova estrutura de controle do trabalho e dos recursos naturais. A colonialidade sobrevive e se constrói independentemente da existência de uma relação colonial.
Como já se assinalou em outros momentos, é a partir da ideia de raça, isto é, da classificação da população mundial de acordo com o critério racial estabelecido pelos europeus que se gestou um sistema de dominação sobre o qual se forjou a identidade na modernidade.
Desde o início da primeira modernidade, sob hegemonia ibérica, que a colonialidade lhe é constitutiva. A América teve um papel protagônico, subalternizado é certo, sem o qual a Europa não teria acumulado toda riqueza e poder que concentrou. Sublinhemos que a teoria da moderno- colonialidade ao ressaltar o papel protagônico subalternizado indica um lugar menor da América e maior da Europa, como se poderia pensar nos marcos dicotomizantes do pensamento hegemônico. (PORTO- GONÇALVES, 2005, p. 11).
Por isso, pode-se dizer que a colonização da América não possui apenas um significado local, tem alcance planetário, que implica resultados positivos para a Europa e negativo para a América: a melhoria no nível de vida, a participação maior da população na gestão do Estado, o avanço tecnológico na área da saúde e no saneamento básico europeu, por exemplo, relacionam-se diretamente à poluição de rios e mares, à derrubada de florestas, ao genocídio dos povos indígenas e à escravização de negros e de negras na América. A democracia europeia está assentada em regimes de opressão na América Latina e na África.
A modernidade racional, secular dorme tranquilamente com as mãos sujas de sangue de seres humanos e deleita-se à sombra de riquezas roubadas. O genocídio dos indígenas, o estupro de mulheres negras, a mutilação de corpos negros, a banalização da vida de pessoas negras, tudo isto faz parte da modernidade como seu lado não visível, a colonialidade.
Este modelo de poder está en el corazón mismo da la experiência moderna. La modernidade, usualmente considerada como el producto, ya sea del Renascimento europeo o de la Ilustración, tiene um lado oscuro que le es constitutivo. La modernidade como discurso y prática no seria possible sin la colonialidade, y la colonialidad constituye una dimensión inescapable de discursos modernos.15 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132).
A modernidade ensaiou um discurso de que seria resultado de fenômenos sociais que tem como espaço a Europa e como tempo o século XVIII, alijando os povos dos outros continentes desse processo, no qual o ser humano havia superado as trevas da ignorância e derrotado governos despóticos.
Para tal, tornou invisível a escravização e o genocídio de seres humanos e o roubo de riquezas que haviam sido construídas ou que pertenciam a outros povos e que permitiram à Europa se modernizar. Portanto, a colonização da América é “[...] o movimento historicizante que [...] dá forma e conteúdo” (FANON, 1968, p. 26), à modernidade.
O discurso da modernidade aparece com o surgimento e a consolidação da economia capitalista, capitaneada pelo circuito comercial do Atlântico e, consequentemente, com a exploração das minas, do solo, das florestas, das águas dos países colonizados. Mas não só isso. Também acumulou capital com a venda e a compra de seres humanos e estabeleceu novas relações entre raça e trabalho em que não há pagamento de salário ou uma remuneração condizente com o esforço físico ou mental desprendidos (MIGNOLO, 2005).
A partir deste momento, do momento da emergência e consolidação do circuito comercial do Atlântico, já não é possível conceber a modernidade sem a colonialidade, o lado silenciado pela imagem reflexiva que a modernidade (por ex.; os intelectuais, o discurso oficial do Estado) construiu de si mesma [...]. (MIGNOLO, 2005, p. 74-75).
Esse silêncio não deixa enxergar que a modernidade se alicerçou com fixação de colônias no continente americano e da classificação dos seres humanos a partir da ideia de raça. A colonialidade mascara que a modernidade é fruto das relações verticalizadas que se construiu entre colonizador e colonizado no qual aquele, por ter “entre más clara sea la piel” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132)16, domina, subordina os outros silenciosamente. A colonialidade é o outro lado da modernidade, como bem disse Mignolo (2005).
Assim, há uma narrativa que descreve o capitalismo, como a própria modernidade, como um fenômeno europeu e não um sistema-mundo, no qual todos os grupos humanos participaram de sua construção e consolidação, ocupando, logicamente, posições distintas de poder. Os europeus colonizaram, exploravam, pilharam; os povos autóctones, negros e afrodescendentes trabalharam compulsoriamente.
Ávidos por obter lucros, reduzem os custos da produção com a desumanização de seres humanos e a objetivação da natureza. Wallerstein observa que a motivação dos proprietários dos meios de produção consiste basicamente em acumular capital.
La esencia de este sistema[capitalista] consistió en reunir todo tipo de procesos de producción en una área muy amplia (la “economía – mundo”) en la cual la principal motivación de los propietarios era acumular capital. La búsqueda incesante de esta acumulación es la característica concreta que define al capitalismo.
El afianzamiento de este sistema económico requirió de varios cambios: Una creciente mercantilización de todas las actividades productivas y una acentuada división geográfica del trabajo en la cual las actividades más rentables y monopolizadas se concentrarían en un centro y las menos rentables y más competitivas quedarían en la periferia. Como las actividades eran menos rentables en la periferia, era necesario un mayor esfuerzo para reducir los costos de mano de obra, utilizando un alto grado de coacción sobre los trabajadores.17 (WALLERSTEIN, 1992, p. 3-4).
Nessa divisão geográfica do trabalho, a uma América-Latina colonizada coube fornecer recursos para a Europa, principalmente, por meio da exploração predatória do meio ambiente e por meio da utilização da mão de obra escravizada na produção de bens exportáveis para a Europa. A independência política não alteraria radicalmente a tarefa que lhes foi destinada pela modernidade. Para o sociólogo americano, o sistema capitalista representa um dos diversos fenômenos que compõe a modernidade.
Desse modo, o uso da expressão modernidade/colonialidade evidencia que a divisão social do trabalho, a partir da classificação da humanidade em raça, ainda perdura e que alimenta a fome do capitalismo por lucro, e que não pode haver modernidade sem colonialidade. Mais do que uma simples consequência, a colonialidade é constitutiva da modernidade (MIGNOLO, 2005) que se fundamenta na ideia de raça.
Mignolo (2005) afirma que a colonialidade é o lado mais escuro da modernidade. No entanto, é a colonialidade que permite aos europeus iluminar suas consciências com a racionalidade e preencher de novas ideias e de novas formas de percepção do mundo suas mentes.
A colonialidade em suas múltiplas formas de manifestação, do poder, do saber, e do ser, inviabiliza o ser negro de ser, de concretizar suas mais banais aspirações, como moradia, lazer, alfabetização, e de ser humano por inteiro.
2.2.1A Colonialidade do Poder
A partir de suposta diferença biológica, estabeleceu-se, então, a inferioridade natural do outro (QUIJANO, 2005), que tal como um animal irracional deveria ser domesticado para alimentar ou proteger o seu dono. Ao mesmo tempo, legitima o apossamento das terras e das riquezas desses seres humanos inferiores, incapazes intelectualmente de geri-las.
A ideia de raça, portanto, em sentido moderno, nasce com o descobrimento da América. As hipotéticas diferenças biológicas adquiriram conotação racial. As relações sociais originadas dessa forma de pensar produziram identidades sociais que podem ser historicamente datadas. É nesse momento que surgem os índios, os negros e os mestiços (QUIJANO, 2005).
Se a ideia de “negro” foi construída por supressão ou minimização das diferenças tribais, é preciso salientar que os negros africanos tampouco se viam como “africanos”. A África foi também uma construção da “Europa”. [...] Quem pela primeira vez avaliou estes povos a partir de uma identidade étnica e continental – enquadrada em um lugar único – foi o próprio homem “branco” europeu, já que esta questão não se colocava então para os “negros africanos” da época. (BARROS, 2014, p. 40).
Essa codificação foi inicialmente estabelecida, provavelmente, na área britânico-americana. Os negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raça colonizada mais importante, já que os índios não formavam parte dessa sociedade colonial. Em consequência, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos. (QUIJANO, 2005, p. 229).
Ao chamaram-se a si mesmos de brancos, os colonizadores não estavam definindo apenas um elemento que os diferenciava dos escravizados, mas uma marca de superioridade natural. Essa classificação a partir da cor da pele tornava o continente africano uma unidade cultural, sem diferença religiosa, alimentar ou mesmo política. Havia, ali, apenas um mercado fornecedor de mão de obra negra escravizada.
Os colonizadores europeus se aproveitaram dessa diferença biológica para construir uma diferença social. Por meio dessa distinção, comercializaram seres humanos, estupraram mulheres, espancaram crianças, torturaram idosos, violentaram física e psicologicamente homens negros.
A cor da pele não foi, naturalmente, uma invenção do capitalismo, nem de sistema algum – foi produto das diferentes condições ecológicas que o homem encontrou na sua dispersão pelo planeta. Mas prestou ao capitalismo um inestimável serviço, separando neste fantástico mercado em que se compra e vende mão de obra, a mercadoria de primeira da de segunda (mais ou menos como fazem os vendedores de tomate: os melhores, 80; os piores, 50). (SANTOS, 1984, p. 34).
O lema romano era dividir para conquistar; os europeus classificavam para dominar. Paralelo a isso, os colonizadores imprimiam a compreensão deles sobre a cultura, o conhecimento, a natureza e a economia. Aos europeus estava reservado o destino histórico de administrar povos e riquezas; aos de outras raças, cabia assessorá-los forçosamente nessa tarefa.
Tal como lo conocemos históricamente, el poder es un espacio y una malla de relaciones sociales de explotación / dominación / conflicto articuladas, básicamente, en función y en torno de la disputa por el control de los siguientes ámbitos de existencia social: 1) el trabajo y sus productos; 2) en dependencia del anterior, la “naturaleza” y sus recursos de producción; 3) el sexo, sus productos y la reproducción de la especie; 4) la subjetividad y sus productos materiales e intersubjetivos, incluido el conocimiento; 5) la autoridad y sus instrumentos, de coerción en particular, para asegurar la reproducción de ese patrón de relaciones sociales y regular sus câmbios.18 (QUIJANO, 2014, p. 289).
Para o sociólogo peruano (2014), portanto, nas principais esferas da existência social, as pessoas disputam o controle do que está em jogo nessa relação interpessoal ou intergrupal da qual há vitoriosos e derrotados, originando as relações de exploração/dominação/conflito que constituem o poder.
No caso da colonialidade do poder, esse padrão de poder se encontra estruturado em dois eixos fundamentais: a classificação social de acordo com a ideia de raça e a divisão racializada do trabalho. No Brasil, os povos indígenas, denominados de negros da terra, são os primeiros seres humanos a serem escravizados pelos europeus; após isso, são os filhos e as filhas do continente africano, classificados pela modernidade como negros, que são obrigados a trabalhar compulsoriamente.
De origem e caráter colonial, a dinâmica referida não se esgotou ou cessou com o fim das colônias latino-americanas, ao contrário, mostrou ser duradoura e estável, expressando-se, agora, como colonialidade do poder (QUIJANO, 2005). Os indicadores sociais brasileiros revelam que os homens negros e as mulheres negras recebem os mais baixos salários.
Conforme Quijano (2005), raça e divisão de trabalho reforçam-se mutuamente, embora um não dependa do outro para existir. No entanto, foram estruturalmente associados, configurando-se divisão racial do trabalho. Aos indígenas, nas colônias espanholas, coube, basicamente, o regime da servidão e a prática da reciprocidade19. Aos negros, o trabalho não assalariado, isto é, o trabalho escravo. Aos brancos, o salário.
Combinaram-se, pois, a distribuição racista de novas identidades sociais, amarelos, azeitonados, brancos, índios, negros e mestiços, a uma divisão racista do trabalho. A consequência disso foi que se associou exclusivamente aos brancos o recebimento de salário e a ocupação de postos de comando.
A classificação racial da população e a velha associação das novas identidades raciais dos colonizados com as formas de controle não pago, não assalariado, do trabalho, desenvolveu-se entre os europeus ou brancos a específica percepção de que o trabalho pago era privilégio dos brancos. A inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário. (QUIJANO, 2005, p. 234).
Aqueles que não eram dignos de salários deveriam trabalhar até morrer, ou morrer de trabalhar. Corpos descartáveis que trabalhavam para gerar riquezas e modernizar a Europa.
O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização não foi causado principalmente pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que os conquistadores trouxeram em seus corpos, mas porque tais índios foram usados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer. (QUIJANO, 2005, p. 234).
Desenvolveu-se, assim, no entendimento de Quijano (2005), uma tecnologia de dominação/exploração, materializada na relação raça/trabalho, em que se associou às raças não brancas a escravidão ou o trabalho a ser exercido em condições degradantes e com salários miseráveis, “[...] o que, até o momento, tem sido excepcionalmente bem-sucedido” (QUIJANO, 2005, p. 232). A garantia de salário igual por trabalho igual vale quando se compara pessoas do mesmo tom da pele e do mesmo gênero.
Esse autor (2005) lembra que qualquer explicação para o fato de as raças inferiores receberem salários menores que os brancos, desconsiderando a classificação social racista da população, é seguramente falha. Nesses casos, para uma análise que mais se aproxima da realidade, afirma Quijano, é melhor trilhar pela colonialidade do poder, estruturado com a classificação das pessoas pela raça, configurando-se como um poder sobre os corpos e todo o ser. Quase invisível, fere e mata. Embora cheire a passado, define as feridas do presente.
II
Passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca. Tem nome de ninguém.
Não faz ruído. Não fala.
Mas passa com a sua fina faca.
Fecha feridas, é unguento. Mas pode abrir a tua mágoa Com a sua fina faca.
Estanca ventura e voz Silêncio e desventura. Imóvel
Garrote Algoz.
No corpo da tua água passará Tem passado
Passa com a sua fina faca. (HILST, 2013, p. 72).
O poder sobre corpos racializados formam as identidades sociais forjadas durante o colonialismo europeu, nesse caso, corpos negros que ocupam hierarquias, lugares e exercem os mesmos papéis sociais que lhes foram outrora destinados ou designados pelos seus algozes. Agora, pela colonialidade do poder. Em silêncio, passa com a sua fina faca como uma episteme que estrutura toda a realidade.
O colonialismo em terras brasileiras findou no século XIX, a colonialidade do poder, baseada na ideia de que uma raça é superior à outra, ainda define as relações sociais em todo o universo eurocentrado. A divisão racial do trabalho ainda se impõe, abre a mágoa das feridas deixadas pela escravidão.
2.2.2A Colonialidade do Saber
A Europa havia se tornado o centro do capitalismo mundial, exercendo controle sobre praticamente todas as rotas comerciais, colonizando terras e povos. Esse domínio “[...] para tais regiões e populações, [...] implicou um processo de re-identificação histórica, pois da Europa foram-lhes atribuídas novas identidades geoculturais” (QUIJANO, 2005, p. 236).
A hegemonia ocidental impeliu que todas as experiências, as histórias, os recursos e os produtos culturais de origem tão diversas quanto heterogêneas gravitassem em torno da Europa (QUIJANO, 2005).
Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento. (QUIJANO, 2005, p. 236).
Os colonizadores tomaram para si o controle sobre a produção do conhecimento não só na Europa, mas também nos lugares que se encontravam sob o seu domínio. Essa hegemonia se materializava na determinação de quais bens as colônias produziriam e no controle desmesurado sobre a subjetividade, a cultura e o conhecimento dos colonizados.
Para tanto, os colonizadores desavergonhadamente tomaram para si as descobertas culturais dos povos indígenas e dos negros africanos que lhes seriam úteis no desenvolvimento ou no aprimoramento de novas técnicas de produção de bens e serviços. Não bastasse o roubo intelectual, reprimiram os saberes dos colonizados como se quisessem sugar o que eles tinham de humano.
[...] reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção do conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. (QUIJANO, 2005, p. 237).
Nesse tolhimento generalizado, sistematizado, os colonizadores europeus, no seu projeto de extrair tudo o que as colônias pudessem lhes oferecer, mitigaram ou turvaram a consciência de si dos colonizados. Essa modificação ou alteração nos padrões de produção de sentido, de construção do universo simbólico e das formas de produção do conhecimento (QUIJANO, 2005) os faziam estranhos em um local real e imaginário que anteriormente eles se moviam com extrema facilidade e desenvoltura. Eram agora estrangeiros em seu próprio território, sem proteção de sua língua nem dos seus deuses, que estavam todos mortos.
No processo de colonização, não há espaços para a sutileza. Quijano (2005) aponta que os europeus colonizadores violentaram física e psicologicamente os povos autóctones a tal ponto que os povos indígenas sobreviventes ao genocídio foram condenados a “[...] ser uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua herança intelectual objetivada” (QUIJANO, 2005, p. 237), permitindo a opinião de que coisa de índio é sinônimo de atraso e preguiça física e mental.
À medida que os colonizadores europeus se apropriavam do conhecimento dos colonizados, forçaram-nos a aprender aspectos da sua cultura que facilitassem ou viabilizassem o processo de dominação, “[...] seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã” (QUIJANO, 2005, p. 237).
Mas os comunicados triunfantes das missões informam, na realidade, sobre a importância dos fermentos da alienação introduzidos no seio do povo colonizado. Falo da religião cristã e ninguém tem o direito de se espantar. A Igreja nas colônias é uma Igreja de Brancos, uma igreja de estrangeiros. Não chama o homem colonizado para a vida de Deus, mas a via do Branco, a via do patrão, a vida do opressor. E como sabemos, neste negócio são muitos os chamados e poucos os escolhidos. (FANON, 1968, p. 31).
Uma igreja de brancos. Não se pode esquecer que a Igreja Católica não permitia que escravos pudessem se tornar vigários, no máximo ,eram aceitos na condição de rebanho.
As medidas acima indicadas, apropriação/repressão dos saberes dos colonizados e uma pedagogia da opressão em que se ensina aquilo que é útil ao funcionamento do sistema que desumaniza, provocaram, nos dizeres de Quijano (2005, p. 237), uma “[...] colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da sua cultura”.
Os colonizadores violentaram os corpos e as almas de indígenas e de negros africanos. Tornaram sem sabor os seus saberes; amaldiçoaram os seus santos; praguejaram contra suas línguas e riram de suas comidas. Para ser humano deveria se embranquecer na forma de falar, do vestir, do pensar, da fé, do desejo e do agir. Para ser gente, era preciso ser branco ou parecido com branco.
A construção social do mundo colonial expressa, pois, os valores, os interesses e as necessidades dos colonizadores europeus brancos. Nessa perspectiva, os seres humanos colonizados giram ao redor de uma Europa moderna como se fossem satélites que não possuem uma trajetória histórica própria, mas definida pela força gravitacional que o eurocentrismo exerce.
O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. (QUIJANO, 2005, p. 239, grifo no original).
A civilização europeia seria o ensaio de um novo mundo em que haveria liberdade, fraternidade e igualdade, superando um passado anunciados fartamente na literatura historiográfica e de outras áreas como lugares de governos despóticos que governavam um bando de miseráveis e analfabetos que acreditavam piamente em um deus ou deuses que lhes prometia vida em abundância após a morte. “De acordo com essa perspectiva, a modernidade e racionalidade foram imaginadas como experiência e produtos exclusivamente europeus” (QUIJANO, 2005, p. 238).
Na linha evolutiva da humanidade, os europeus ocupariam o topo da cadeia alimentar; os povos colonizados estariam ali, disponíveis, para saciar-lhes a fome. Dessa forma de pensar, chega-se à conclusão que “[...] os povos colonizados eram raças inferiores e – portanto – anteriores aos europeus” (QUIJANO, 2005, p. 238).
É que o padrão de poder baseado na colonialidade implica, necessariamente, um padrão cognitivo (QUIJANO, 2005) em que a percepção dos povos colonizados se encontra no passado, como se este, necessariamente, tivesse que ser desprezado ou subjugado pelo presente ou pelo futuro. “O passado era o não europeu e desse modo inferior, sempre primitivo” (QUIJANO, 2005, p. 249).
É a partir dessa forma de pensar e se de mover por becos sujos da história que os colonizadores brancos europeus saquearam os colonizados de suas singularidades históricas (QUIJANO, 2005) e, ao mesmo tempo, menosprezaram qualquer atitude que sinalizasse demonstrar a importância dos saberes dos colonizados na produção cultural da humanidade. Aos colonizados, a Europa havia estabelecido uma nova identidade racial, colonial e negativa (QUIJANO, 2005).
2.2.3A Colonialidade do Ser
Em uma situação de colonialidade (BENEVAVENTE; PIZARRO, 2014), os sujeitos racializados são despidos de faculdade cognitiva e essa desclassificação epistêmica, ainda mais em um contexto que privilegia o conhecimento, converte-se em instrumento de negação ontológica. A modernidade transmuta não pensar em não ser (MALDONADO-TORRES, 2007).
O pensamento se torna mecanismo de exclusão e invisibilidade. A partir da colonialidade, gesta-se um ser que é incapaz de pensar, de falar por si mesmo (MALDONADO-TORRES, 2007).
La formulación cartesiana privilegia a la epistemologia, que simultaneamente esconde, no sólo la pregunta sobre el ser (el “soy”) sino también la colonialidade del conocimiento (otros no piensan). El privilegio del conocimento em la modernidade y la negácion de faculdades cognitivas em los sujetos racializados ofrecen la base para la negación ontológica.20
(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 144-145).
A negação do ser colonizado encontra-se fundamentada na sua suposta incapacidade de pensar sobre a produção dos seus saberes, de refletir a respeito de sua própria vivência. Como não reflete sobre isto, tal qual uma abelha que fabrica o mel, não pode ser considerado um ser humano. Daí a coisificação do escravo e o questionamento promovido pelo DEM ao critério de a própria comunidade se autoatribuir como quilombola.
A colonialidade do poder descortina os laços entre este ser desumanizado e o projeto colonial europeu. Maldonado-Torres (2007) pondera que a colonialidade do ser é um conceito que pretende capturar a maneira como a colonialidade se apresenta na experiência vivida dos sujeitos subalternos. Portanto, é no cotidiano que a colonialidade do ser vasculha o ser colonizado e não em sua mente, ressaltando, pois, sua dimensão histórica.
A colonialidade do ser surge no momento em que o colonizador branco europeu questiona a humanidade dos colonizados, isto é, de negros e de indígenas. Há um ego conquiro que antecede o ego cogito. Para o europeu, há a indubitabilidade em sua tarefa de conquistar que precede a certeza de Descartes sobre o eu.
Isso porque, o ego cogito foi formulado e adquiriu relevância prática sobre as bases do ego conquiro (MALDONADO-TORRES, 2007). Para esse autor, a filosofia de Descartes, [eu] penso, logo [eu] sou, possui pelo menos duas dimensões insuspeitas: da primeira oração, sugestiona os outros não pensam; da segunda, pode-se destacar a ideia de os outros não são ou estão desprovidos de ser. Na sua releitura, tem-se: os outros não pensam, logo não são.
De esta forma descumbrimos uma complejidad no reconhecida de la formulación cartesiana: del “yo pienso, luego soy” somo llevados a la noción más compleja, pero a la vez más precisa, histórica y filosoficamente: “Yo pienso (otros não piensam o no piensam adecuadamente), luego soy (otros no son, están desprovistos de ser, no deben existir o son dispensables).21 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 144).
O bárbaro agora é um ser racializado e sobre o qual pende uma vigorosa dúvida sobre a sua humanidade. Daí que, no processo de colonização, o europeu entende que não interage com um outro ser humano, visto que o colonizado não pensa, despido, pois, de humanidade. Assim, os seres racializados são descartáveis no projeto racional europeu.
“Não pensar se converte em um sinal de não ser na modernidade” (MALDONADO- TORRES, 2007, p. 145). Dessa maneira, os europeus suspeitavam que os indígenas não fossem humanos porque não possuíam escrita alfabetizada e, principalmente, pela ausência de religiosidade. A partir de Descartes, essa dúvida se esvai com o fundamento de que os colonizados/racializados são desprovidos de razão ou do ato de pensar.
Faltam-lhe, pois, humanidade. A colonialidade do ser transforma em objeto os povos indígenas e os negros africanos. Descartáveis, seus corpos são alvos de violência e violação cotidianas. Em um mundo em situação de colonialidade do ser, a vida dos seres colonizados/racializados encontra-se constantemente ameaçada. A morte é uma realidade ininterrupta (MALDONADO-TORRES, 2007).
A vida desses seres é de tal forma banalizada que nenhum número impressiona: número de analfabetos; número de encarcerados no sistema prisional; número de crianças subnutridas; número de desempregados; número de sem teto; número de sem terra. Nenhum número é muito em se tratando de corpos negros.
A irracionalidade desses corpos colonizados/racializados os faz uma ameaça constante, uma vez que não se submetem a nenhuma autoridade. A colonialidade do ser projeta que a violência é da essência dos negros. Essa violência excessiva dos negros justifica serem seus corpos alvos de uma violência insana (MALDONADO-TORRES, 2007).
Para a modernidade, a gente negra é uma população dispensável (MALDONADO- TORRES, 2007). No entanto, essa gente é indispensável como escravizado, trabalhador inferiorizado, que produz a riqueza para os brancos.
2.3O sujeito de direito e o ser negro no Brasil: a investida do Partido Democratas contra o artigo quilombola da Constituição de 1988
Castro-Gómez (2005, p. 169) afirma que a modernidade se constitui em “[...] uma máquina geradora de alteridades que, em nome da razão e do humanismo, exclui do seu imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência das formas de vida concretas”.
Mas em que consistiria o projeto da modernidade? Para Castro-Gómez (2005), traduz- se no intento de o homem administrar o meio ambiente em todas as suas dimensões, baseado em um conhecimento científico. A partir da razão, o homem submete a vida ao seu controle.
Já não é a vontade inescrutável de Deus que decide sobre os acontecimentos da vida individual e social, e sim o próprio homem que, servindo-se da razão, é capaz de decifrar as leis inerentes à natureza para colocá-las a seu serviço. Esta reabilitação do homem caminha de mãos dadas com a ideia do domínio sobre a natureza através da ciência e da técnica [...]. (CASTRO- GÓMEZ, 2005, p. 170).
Os acontecimentos da vida individual e social que antes eram atribuídos aos desígnios de uma entidade divina, portanto, incompreensíveis, insondáveis, passam a ser objeto de investigação. Se há mistérios, é possível desvendá-los, utilizando-se da teoria e do método adequados.
Ocorre que, longe de apenas elaborar um sistema abstrato de normas, pondera Castro- Gómez (2005), as ciências sociais possuem uma matriz de ordem prática que, a princípio, justificaria seu surgimento: moldar a vida dos humanos de acordo como os interesses do modo de produção capitalista.
Todas as políticas e as instituições estatais (a escola, as constituições, o direito, os hospitais, as prisões, etc.) serão definidas pelo imperativo jurídico da ‘“modernização”’, ou seja, pela necessidade de disciplinar as paixões e orientá-las ao benefício da coletividade através do trabalho. (CASTRO- GÓMEZ, 2005, p. 172).
Conhecer o corpo, entender e explicar as leis da natureza, tudo isto se faz necessário para submetê-los aos processos de produção. Por exemplo, como tempo é dinheiro, é preciso administrá-lo eficientemente. Coube às ciências sociais decifrar e ensinar quais as normas que regulamentam empiricamente a economia, a sociedade, a política e a história.
A par disso, há a “invenção do outro”’ (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 172), isto é, criam-se perfis de subjetividade, estatalmente coordenados a partir de dispositivos de saber/poder que são significativos e imprescindíveis para a construção dessas representações. Não há neste processo uma simples ocultação da identidade cultural preexistente, mas a verdadeira invenção de uma nova identidade.
Castro-Gomez explica que os mecanismos desta invenção do outro, no contexto latino- americano, repousa essencialmente na decodificação e na capacidade de comunicação pela palavra escrita. “A palavra escrita constrói leis e identidades nacionais, planeja programas modernizadores, organiza a compreensão do mundo em termos de inclusões e exclusões” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173).
“Escreveu não leu, o pau comeu”. O ditado popular corrobora o pensamento de Castro-Gómez. Aqueles que não conseguiam decifrar o código linguístico eram justamente os que se encontravam marginalizados socialmente. A escrita atua como parâmetro para identificar os cidadãos.
A formação do cidadão como “’sujeito de direito”’ somente é possível dentro do contexto e da escrita disciplinar, e neste caso, dentro do espaço de legalidade definido pela constituição. A função jurídico-política das constituições é, precisamente, inventar a cidadania, ou seja, criar um campo de identidades homogêneas que tornem viável o projeto moderno de governabilidade. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173, grifo do autor).
A Constituição homogeneíza as identidades ao definir os valores que o Estado e os homens devem nutrir. É preciso conhecer os direitos e os deveres que estão impressos no texto constitucional. Na verdade, sabê-los é insuficiente. É preciso, lê-los.
Por isso, o estrangeiro que deseja se naturalizar brasileiro deve demonstrar conhecimento da língua portuguesa por meio da leitura de trechos da Constituição, conforme estabelece o art. 13, do Decreto-Lei nº 389/1938, que regula a concessão da nacionalidade brasileira.
A Constituição cumpre o papel de incluir ou excluir aqueles que possuem o perfil exigido pelo projeto da modernidade. De acordo com Castro-Gómez (2005), figura como viável para conduzir tal projeto quem detém as seguintes características: homem, branco, pai de família, católico, proprietário, letrado e heterossexual. A quem não se encaixa nessa descrição, cabe controle moral e legal; confinamento em hospícios e presídios.
Os indivíduos que não cumprem com estes requisitos (mulheres, empregados, loucos, analfabetos, negros, hereges, escravos, índios, homossexuais, dissidentes) ficarão de fora da “cidade letrada”, reclusos no âmbito da ilegalidade, submetidos ao castigo e à terapia por parte da mesma lei que os exclui. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173).
No caso das comunidades quilombolas, o silêncio foi o mecanismo utilizado para submetê-las reclusas no âmbito da ilegalidade ou mesmo da inexistência, fazendo-as desaparecer por completo de preceitos constitucionais ou legais. No momento em que a Constituição de 1988 assentou os quilombos em seu texto, ambiguamente, a leitura que o direito faz sobre o artigo constitucional quilombola cumpre o papel de excluí-los do projeto da modernidade.
2.3.1O artigo constitucional quilombola: o art. 68 do ADCT da CF/88.
A Constituição Federal de 1988 faz referência à palavra quilombo duas vezes: uma no art. 215, § 5º, em que determina o tombamento de todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos; a outra no art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição de 1988.
Eis a sua redação: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
O Decreto 4.887/2003 foi editado para regulamentá-lo. Cuida, portanto, do procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas, revogando o Decreto 3.912/2001.
O Decreto revogado determinava que somente fosse reconhecida a propriedade sobre as terras que eram ocupadas por quilombos em 1888 ou, então, que estivessem ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal.
Por esse Decreto, competia à Fundação Cultural Palmares (FCP) iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação das comunidades de quilombos. “A Fundação Cultural Palmares, até onde se sabe, não chegou a realizar nenhuma titulação de terras nesses dois anos, por absoluta falta de estrutura” (VITORELLI, 2015, p. 247). Talvez, por isso, o Decreto 4.887/2003, em seu art. 3º, transferiu para o INCRA este encargo.
Substancial, porém, foi a alteração promovida pelo Decreto 4.887/2003 no mecanismo de identificação da comunidade quilombola. Antes, cabia ao Estado, via Fundação Cultural Palmares, doravante, a própria comunidade irá dizer se se constitui em um quilombo. É o art. 2º, § 1° quem o diz: “Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”.
Merece, também, destacar que o Decreto determina que as terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos são aquelas que garantam sua reprodução física, social, econômica e cultural e que, no processo de medição e demarcação, devem ser considerados critérios de territorialidade indicados pela comunidade.
Little (2002) fala que a territorialidade nasce de um esforço coletivo do grupo social que se traduz em uma conduta territorial, buscando ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de determinado ambiente biofísico. A territorialidade expressaria “[...] as práticas e racionalidades culturais, ecológicas e econômicas que as acompanham” (ESCOBAR, 2005, p. 135)
É nesse território que se materializam os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas. Contudo, a Instrução Normativa n. 57/2009, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, responsável por regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento dessas terras, apresenta um grande retrocesso ao determinar a necessidade de produção de laudos por técnicos do INCRA para corroborar o território definido pela comunidade quilombola.
Art. 9º A identificação dos limites das terras das comunidades remanescentes de quilombos a que se refere o art. 4º, a ser feita a partir de indicações da própria comunidade, bem como a partir de estudos técnicos e científicos, inclusive relatórios antropológicos, consistirá na caracterização espacial, econômica, ambiental e sócio-cultural da terra ocupada pela comunidade, mediante Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID, com elaboração a cargo da Superintendência Regional do INCRA, que o remeterá, após concluído, ao Comitê de Decisão Regional, para decisão e encaminhamentos subseqüentes. (BRASIL, 2009).
Nesse caso, permite-se aos negros autodefinirem-se como quilombolas, porém, a identificação dos limites das terras deve passar pelo crivo do Estado. Dessa forma, o ponto nevrálgico para os quilombolas, a titulação das terras a partir da conduta territorial da comunidade, permanece sob a gestão estatal. O direito mantém, por conseguinte, o controle efetivo em relação à quantidade de terra que o Estado se encontra disposto a ceder. Não há como deixar de fazer uma relação entre esta norma e a Lei das Terras, editada em 1850.
Gadelha (1989) aponta que o século XIX caracteriza-se por profundas alterações de ordem política, econômica e social, reflexo do surgimento do modo de produção capitalista, modificando, por completo, as velhas estruturas europeias e, consequentemente, os espaços colonizados no continente latino-americano.
A Inglaterra, por exemplo, que havia acumulado capitais com o tráfico negreiro, passou a combatê-lo e a exigir que os outros países europeus, que ainda alimentavam suas colônias com braços negros arrancados da África, adotassem a mesma postura, publicando leis proibitivas (COSTA, 2010). Dentro desse contexto, no Brasil, aprova-se a Lei 581, de 4 de setembro de 1850, que estabelece medidas para a repressão do tráfico.
Interessante é que os representantes no Parlamento dos interesses dos latifundiários e dos escravocratas incorporaram as ideias difundidas pelo liberalismo europeu, porém, apenas no plano teórico, enclausurando com um ferrolho conservador as estruturas que alicerçavam a economia brasileira (GADELHA, 1989). O pensamento liberal domina, mas é preciso manter a escravidão e a estrutura agrária no país.
Há, afirma Gadelha (1989, p. 157), uma “[...] persistência de nossas estruturas agrárias [...], tanto no tempo como no espaço, estruturas estas reforçadas após os anos de 1830 pelo café”. Esta autora (1989) lembra que houve uma concentração de terra nos séculos XVII,
XVIII. No início do século XIX ocorre, porém, um gradual processo de fracionamento em função da divisão da propriedade originária em lotes, distribuídas a diversos herdeiros, já que as famílias eram bastante numerosas, bem como o abandono de outras porções por motivo de esgotamento do solo.
A decretação da Lei 601, de 18 de setembro de 1850, Lei das Terras, barra, desse modo, um processo de apossamento tardio, ao determinar a compra como a única forma de aquisição de terras devolutas (GADELHA, 1989).
A Lei das Terras sedimenta, pois, a “[...] estrutura latifundiária da terra” (GADELHA, 1989, p. 162) ao proibir a posse como instrumento legal de aquisição da propriedade do solo. Não se pode esquecer que os roçados, conforme a referida Lei, não eram bastante para caracterizar a posse.
Para Gadelha (1989), essa norma jurídica procurava contrabalançar os efeitos da extinção da escravidão, ao incentivar a colonização por meio de aquisição de terras devolutas pelos colonos imigrantes. Se os latifúndios eram brancos, os solos das pequenas propriedades seriam embranquecidos.
De 1822 a 1850, foi a posse a única via de acesso à apropriação legítima das terras públicas. [...]. À tramitação burocrática, que por si só favorecia os poderosos, acrescentou a lei das terras de 1850 dispositivos que vedaram aos pobres o acesso à propriedade fundiária e asseguravam a preservação da estrutura fundiária vigente. (GORENDER, 1988, p. 397).
A Lei das Terras procurou, antes de tudo, impedir que os negros pudessem ter acesso à terra por meio da posse, ao estabelecer, logo no seu primeiro artigo, para que não pairasse qualquer dúvida, que a única forma de aquisição de terras devolutas dar-se-ia pela compra.
Por sua vez, a norma que estabelece o procedimento de identificação das terras quilombolas subtrai-lhes a autodeterminação, ao transferir para agentes estatais a tarefa de elaborar laudos que podem confirmar ou infirmar a história narrada por aquela comunidade. Os roçados culturais dos negros continuam sem nenhum valor, necessitando de laudos antropológicos para aquilatá-los. O direito trava a formação dos quilombos.
2.3.2O monopólio do direito de dizer o que é quilombo
A produção do direito por seus operadores ocorre no campo jurídico, uma espécie de autonomização do espaço social. Para Bourdieu (2016), os indivíduos e os grupos sociais existem e subsistem na e pela diferença, ocupando posições relativas em um espaço de relações. Essa diferenciação social catalisa antagonismos individuais ou mesmo confrontos intergrupais que se encontram em posições diferentes no espaço social.
Portanto, cada um ocupa uma determinada posição neste espaço, conforme a dotação de capital que detém (JOURDAIN; NAULIN, 2017). É o capital que o indivíduo possui que o faz distanciar-se do outro. Não há, pois, uma posição absoluta, mas sempre tendo outro indivíduo ou grupo como referência.
Assim, o grau de prestígio, de riqueza ou de poder de um agente individual ou de uma instituição coletiva (uma universidade, um sindicato, uma igreja, uma família, etc.) só poderiam ser considerados em termos de distância que essas mantêm em relação ao demais agentes individuais ou coletivos. Ter uma escolarização básica numa sociedade em que a maioria não teve acesso à escola pode ser suficiente, por exemplo, para se ocupar uma posição de prestígio ou mesmo para se garantir algum poder e renda. (NOGUEIRA, 2017, p. 177).
No espaço social, portanto, desenvolve-se um “[...] sistema de relações de concorrência e conflito entre grupos situados em posições diferentes” (BOURDIEU, 2015, p. 186), sendo que a posição de cada indivíduo é definida pelo quantum de capital que traz consigo. Quanto mais capital, maior a possibilidade de ocupar uma posição dominante. Resumidamente: o espaço social estrutura-se de forma relacional tendo como referência a dotação de capital.
A noção de capital veio de Marx. Para Bourdieu, existem capitais de diferentes naturezas, incluindo, logicamente, o capital econômico. Por serem capitais, revelam recursos sociais que podem ser empregados para beneficiar quem os detém. “Cada espécie de capital é fruto de uma acumulação em vista de obter um proveito ou rendimento, material ou não” (JOURDAIN; NAULIN, 2017, p. 126).
Portanto, os indivíduos e os grupos usam esses capitais para manterem-se em posições de vantagem (GIDDENS; SUTTON, 2017). Têm-se, então, por exemplo: capital econômico, capital cultural, capital, social e o capital simbólico.
Na teoria bourdiana, a vida social se organiza por meio dos campos, uma espécie de arena social onde se operam as relações de poder baseadas nas formas de capital (GIDDENS, 2012). O espaço social é, pois, constituído por uma pluralidade de campos sociais que possuem entre eles certa similaridade de estrutura, e, por conseguinte, de funcionamento. (JOURDAIN; NAULIN, 2017). Assim como há diversos capitais, existe uma multiplicidade de campos: campo artístico, campo econômico, campo religioso, campo jurídico e outros.
Segundo Jourdain e Naulin (2017, p. 146), “Pierre Bourdieu define os campos como esferas da vida social que, graças ao processo de diferenciação progressiva do mundo social devido ao crescimento da divisão do trabalho, tornaram-se autônomas”. Desse modo, o campo é uma esfera da vida social autonomizada.
Essa autonomização do campo significa que possui suas próprias regras de funcionamento e que dispõe de um capital lhe que é específico. Além disso, o acesso ao campo é definido por uma lei que lhe é peculiar. A quantidade de capital, por sua vez, determina a posição no interior do campo (JOURDAIN; NAULIN, 2017).
Em cada campo, há um litígio específico, ou “[...] uma aposta que lhe é própria” (JOURDAIN; NAULIN, 2017, p. 146). No caso do campo jurídico, disputa-se o monopólio do direito de dizer o direito, obedecendo-se a regras pré-estabelecidas e a qualificações específicas dos litigantes.
O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou boa ordem, na qual se defronta agentes investidos de competência ao mesmo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre o autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.
Por conseguinte, a distância que há entre os agentes resulta da instância que cada um ocupa no campo jurídico. A formação universitária em Curso de Direito, no caso brasileiro, é obrigatória e considerada, portanto, o único meio de se acessar o campo. Há restrições sobre os próprios textos que devem ser interpretados e há mecanismos que extirpam do campo as interpretações que não seguiram as regras do jogo.
A interpretação dos textos jurídicos mantém a sua eficácia à custa de restrição de sua autonomia, por meio de um corpo integrado de instâncias hierarquizadas que possuem competência para a resolução dos conflitos entre os intérpretes e as interpretações.
E a concorrência entre os intérpretes está limitada pelo fato de as decisões judiciais só poderem distinguir-se de simples ato de força políticos na medida em que se apresentem como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos: como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apoiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões. (BOURDIEU, 1989, p. 214).
Portanto, no campo judicial a concorrência entre os intérpretes dos textos jurídicos encontra-se devidamente regulada, desde as normas e as fontes que lhe dão suporte, até o detalhamento de todo o processo em que uma instância hierarquicamente superior corrige a interpretação equivocada.
Diferentemente do que se pensa, o campo jurídico possui autonomia menor do que outros campos que também contribuem para a manutenção da ordem simbólica, tais como o campo artístico, literário ou científico. Bourdieu (1989) aponta que, em função do papel determinante que o campo jurídico desempenha na reprodução social, as mudanças externas se retraduzem mais diretamente e que os conflitos internos não se encontram livres da influência e do poder das forças externas.
O campo jurídico colabora, pois, para a manutenção da ordem simbólica ao imprimir um “[...] selo de universalidade” àquilo que representa apenas um determinado ponto de vista do mundo social e que, dependendo do que esteja em jogo, dificilmente contraria o ponto de vista dos dominantes (BOURDIEU, 1989, p. 245).
Por isso, destaca Bourdieu, que na análise estrutural dos sistemas de relações que definem um determinado estado do campo, deve-se atentar para o habitus. O conceito de habitus, para Bourdieu, versaria em: “[...] um sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2015, p. 191).
Desse modo, a prática dos agentes atualiza permanentemente as estruturas sociais que independem das suas vontades e das suas consciências. O habitus atua, então, como mediador entre o mundo social e natural externo e aquele em que os agentes existem e vivem (STONES, 2010).
O habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade do senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidade treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente. (WACQUANT, 2017, p. 214).
O indivíduo, ao receber da sociedade modos de pensar, de sentir e de agir, compulsoriamente, aplica-os em investimentos ou práticas que lhe sejam mais interessantes e convenientes, ou seja, ajusta-os de acordo com as suas necessidades, fazendo-os retornar para a sociedade modificados, alterados pela sua própria vivência.
As disposições a que Bourdieu se refere ao conceituar habitus consistem em uma gama de orientações, habilidades e formas duradouras de Know-how que as pessoas adquirem no processo de socialização que lhes possibilita perceber, pensar, agir e avaliar o mundo. Expressa-se, por exemplo, no comportamento corporal, na fala, nos gestos, no vestuário, nas maneiras sociais e “[...] até tipos específicos de conhecimento mútuo e memória coletiva, passando por uma ampla gama de habilidades motoras e práticas” (STONES, 2006, p. 98).
Bourdieu (1989, p. 242) aponta, ainda, que a proximidade dos interesses e, principalmente, a similitude dos habitus, “[...] ligada a formações familiares e escolares semelhantes”, propicia uma afinidade de visões de mundo entre os agentes encarregados de produzir e de aplicar o direito com aqueles que possuem o poder econômico, o político ou mesmo o poder temporal.
Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões de mundo diferentes ou antagonistas têm poucas possibilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar (sic) como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão dos mundo dos dominantes. (BOURDIEU, 1989, p. 242).
Além de os textos jurídicos reproduzirem os interesses, os valores e a visão de mundo dos dominantes, os próprios magistrados, lembra Bourdieu (1989), são oriundos daquela classe.
Bourdieu defende que há uma espécie de modo de reprodução do espaço social em que o capital atrai o capital, fazendo com que a estrutura social tenda a perpetuar-se, “[...] não sem sofrer deformações mais ou menos importantes” (BOURDIEU, 2016, p. 35).
Desse modo, o campo judicial não escapa às imposições do macrocosmo, possuindo, portanto, autonomia parcial, pouco acentuada. Essa porosidade permite que as simbologias de outros campos adentrem o campo jurídico, influenciando na hermenêutica das normas.
Não se pode olvidar que a entrada no universo judicial implica a aceitação tácita da lei fundamental do campo jurídico: os conflitos, após adentrarem o terreno do campo, só podem ser resolvidos juridicamente, isto é, devem obedecer às regras e às convenções do campo jurídico (BOURDIEU, 1989).
O campo jurídico estabelece, pois, uma fronteira entre os que estão preparados para entrar em jogo daqueles que estão excluídos. A competência jurídica controla, portanto, o acesso ao campo, ao mesmo tempo em que filtra os conflitos que merecem ser judicializados bem como os requisitos que devem preencher os pedidos para se constituírem em debates propriamente jurídicos.
Considerando os aspectos materiais acima expressos sobre a competência jurídica, Bourdieu propõe outra de caráter simbólico: “[...] só ela pode fornecer os recursos necessários para fazer o trabalho de construção que, mediante uma seleção das propriedades pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção eficaz” (BOURDIEU, 1989, p. 233).
O autor ressalta que o sentido de um texto jurídico nunca se impõe de maneira absolutamente imperativa. Qual interpretação deverá, então, se sobrepor às demais? Bourdieu lembra que os juristas se encontram localizados em instâncias hierarquizadas que são reconhecidamente aptas para resolver os conflitos entre os intérpretes. Ademais, o intérprete tem seu campo de atuação limitado pelas normas e pelas fontes.
Bourdieu, utilizando uma linguagem matemática, diz que as obras jurídicas delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, desse modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. A resposta encontrada pelo intérprete deve se adequar a uma daquelas descritas nas leituras das leis expostas nas obras jurídicas, sob pena de ser considerada falsa, inadequada para resolver o problema.
Não é, portanto, qualquer interpretação, ainda que parta de um agente com competência social e técnica, que será considerada válida. Uma vez que:
De modo diferente da hermenêutica literária ou filosófica, a prática teórica de interpretação de textos jurídicos não tem nela própria sua finalidade; diretamente orientada para fins práticos, e adequada á determinação de efeitos práticos, ela mantém a sua eficácia à custa de uma restrição da sua autonomia. (BOURDIEU, 1989, p. 213).
Então, a fim de manter a eficácia do discurso jurídico, há restrição da autonomia da interpretação do texto jurídico, que é feita basicamente de duas maneiras: quem são os intérpretes autorizados; quais as normas e as fontes em que se baseiam suas deduções. Dessa maneira, as decisões judiciais se apresentam como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos.
A Justiça organiza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apoiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões. (BOURDIEU, 1989, p. 214).
A hierarquia das instâncias judiciais é responsável pela distribuição do capital específico da autoridade jurídica. Afere-se, então, a autonomia do agente jurídico de dizer o direito pelo lugar que ocupa na pirâmide do Poder Judiciário. No caso brasileiro, cabe ao Supremo Tribunal Federal dizer qual a interpretação do texto jurídico constitucional que representa uma solução propriamente jurídica.
Na verdade, a Constituição Federal faz uma distribuição aos diversos tribunais das matérias às quais eles são competentes para dizer qual interpretação ou qual norma deve ser aplicada ao caso concreto ou mesmo abstrato. Na situação específica, a ação proposta pelo DEM só pode ser apreciada pelo STF.
2.3.2.1Aspectos gerais do campo jurídico brasileiro
Qualquer manual de direito que fale do funcionamento da justiça brasileira descreve que cabe aos órgãos do Poder Judiciário a função de compor conflitos de interesses em cada caso concreto (SILVA, 1996). A Constituição Federal detalha, em seu artigo 92 ,quais são esses órgãos jurisdicionais:
- – o Supremo Tribunal Federal;
- – o Superior Tribunal de Justiça;
- – o Tribunal Superior do Trabalho;
- – os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; V – os Tribunais e Juízes do Trabalho;
VI – os Tribunais e Juízes Eleitorais; VII – os Tribunais e Juízes Militares;
VIIII – os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.
Cada um desses órgãos é responsável por apreciar um conjunto de matérias de acordo com o que se encontra estabelecido na própria Constituição. Um órgão não pode julgar uma matéria que a Constituição não lhe atribuiu (SILVA, 1996).
Assim, em seu art. 102, I, alínea a, a Constituição diz que cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação declaratória de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.
Compete, então, ao STF julgar a ação judicial proposta pelo Partido da Frente Liberal, atual Democratas, contra o Decreto 4.887/2003 por dois motivos: a) tratar-se de uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade; b) o Decreto 4.887/2003 caracteriza-se por ser um ato normativo federal, ato de Presidente da República.
2.4.O enredo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239
No dia 25/06/2004, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Partido Democratas (DEM), protocolou um pedido, dirigido ao ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, para que fosse declarado inconstitucional o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, baseado, principalmente, no art. 102, I, a, e 103, VI, ambos da CF/88, que autorizam o partido político com representação no Congresso Nacional a propor ação declaratória de inconstitucionalidade de ato normativo federal.
Essa ação recebeu o número 3239. Por se tratar de uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI), tem-se ADI 3239. Esta espécie de medida judicial objetiva impedir que uma determinada norma, supostamente contrária às regras e aos princípios definidos na Constituição, produza qualquer eficácia jurídica (DIMOULIS; LUNARDI, 2013). A ADI pretende, pois, eliminar, em caráter definitivo, do ordenamento jurídico, a norma declarada inconstitucional.A Lei 9.868/1999 define o rito que deve seguir a Ação Direta de Inconstitucionalidade. Há, ali, dispositivo que determina que o relator22 deve, inicialmente, pedir informações aos órgãos ou às entidades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado. Em 29/06/2004, Cézar Peluso proferiu o seguinte ato judicial:
DESPACHO: O pedido comporta apreciação nos termos do art. 12 da Federal nº 9.8686, de 10 de novembro de 1999. Solicitem-se, pois, informações, no prazo de 10(dez) dias. Após vista, sucessivamente, por 5 (cinco) dias, ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República.
Quanto ao advogado-geral da União, há determinação legal23 de que, invariavelmente, ele deve apresentar a defesa do ato normativo ou da norma legal que está sendo impugnado (BASTOS, 1996).
Essa Lei prevê, ainda, em seu artigo 7°, que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, pode admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades. Porém, Cézar Peluso nada disse sobre isto. Mesmo assim, diversas entidades requereram suas admissões na ADI 3239 para atacar ou defender a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003.
Tomando partido do DEM, pediram para ser aceitos, na qualidade de amici curiae, o Estado de Santa Catarina, a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Associação Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA) e Sociedade Rural Brasileira.
Por outro lado, em uma evidente oposição às ideias levantadas pelo autor da ação, há os seguintes amici curiae: o Instituto Pro Bono, Conectas Diretos Humanos, Sociedade Brasileiro de Direito Público (SBDP), Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHERE), Centro de Justiça Global, o Instituto Socioambiental (ISA), Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (POLIS), Terra de Direitos, Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI – Pará), Estado do Pará, Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, Associação dos Quilombos Unidos do Barro Preto e Indaiá, Associação de Moradores Quilombolas de Santana – Quilombo de Santana, Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso do Sul, INCRA, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) e o Clube Palmares de Volta Redonda (CPVR).
Com a integração dos amigos da corte ao campo jurídico, a Lei da ADI pretende, aparentemente, garantir um amplo debate entre o Poder Judiciário e a sociedade sobre o assunto de que trata a lei impugnada. Nessa mesma direção, prevê, em seu artigo 9º, §1º, a realização de audiência pública para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. No entanto, Cézar Peluso não acatou os diversos pedidos para que fossem realizadas tais oitivas.
A primeira decisão foi proferida no ano de 2012, pelo relator, ministro Cézar Peluso, tendo a Corte do STF se pronunciado sobre o mérito da ação apenas no ano de 2018, catorze anos após o protocolo do DEM, com o seguinte teor:
Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, conheceu da ação direta, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. No mérito, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto da Ministra Rosa Weber, que redigirá o acórdão, julgou improcedentes os pedidos, vencidos o Ministro Cezar Peluso (Relator), e, em parte, os Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Votaram, no mérito, os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. Não votou o Ministro Alexandre de Moraes, por suceder ao Ministro Teori Zavascki, que sucedera ao Ministro Cezar Peluso. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 8.2.2018.24
Portanto, o STF julgou improcedente a ADI 3239, proposta pelo Partido Democratas, considerando, pois, constitucional o Decreto 4.887/2003, mas, até a presente data, Rosa Weber não apresentou o acórdão ao qual faz referência a decisão acima citada.
Dessa maneira, o campo jurídico da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 é composto pelos discursos textuais do Partido Democratas , que deu origem ao campo, das diversas entidades, que nele ingressaram como amigo da corte, da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da República e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que nele proferiram decisões.
2.5A manifestação da colonialidade na ADI 3239: descrição da categorização
A análise do conteúdo ensina a necessidade de se classificar os elementos constitutivos da mensagem para que se possa apreender os sentidos que dela emana (GOMES, 2016). Para tanto, utilizam-se as categorias indicadas pelo referencial teórico adotado.
Portanto, agora, não há uma análise, propriamente dita, do conteúdo do texto categorizado, expõem-se, apenas, “[...] os achados na análise” (GOMES, 2016, p. 79).
Nessa seção, as classes em que os discursos textuais da ADI 3239 foram classificados são as seguintes: colonialidade do poder, colonialidade do ser e colonialidade do saber. Na colonialidade do poder, encontram-se as mensagens em que se questiona ou se critica a própria edição do Decreto 4.887/2003. Não se pode esquecer que tal norma guarda em si falas do movimento negro quilombola.
Do mesmo modo, os discursos proibitivos sobre a destinação de verbas do orçamento público para a desapropriação de terras identificadas como integrantes do território da comunidade quilombola foram dispostos na coluna da colonialidade do poder. A colonialidade se expressa no controle, quase absoluto, dos recursos. Por isso, nesta quadra, encontram-se, também, as falas que defendem a propriedade privada.
Na colonialidade do saber, há os discursos que são contrários à utilização da autoatribuição como critério legal na identificação dos quilombos. Adentra, também, os recortes extraídos da ADI 3239, em que o conceito de quilombo está atrelado ao escravismo brasileiro. Em um, a narrativa das comunidades quilombolas é totalmente desprestigiada; no outro, a concepção sobre fenômeno quilombola é monofônica e colonizada.
Em relação à coluna destinada à colonialidade do ser, transcreveram-se os trechos em que se menciona que os negros e as negras falseiam a realidade para obter vantagens; as que desautorizam as falas da comunidade de quilombos; e as que afirmam que a luta travada pelos quilombolas causa convulsão e violência social.
Deve-se destacar que a dissecação da ADI 3239 e a posterior catalogação dessas partes em classes possui mera funcionalidade, pois os limites, caso existam, entre uma categoria e outra são muito tênues. Refutar a narrativa dos membros das comunidades de quilombos é negar o ser quilombola. A colonialidade do saber pretende deixar os negros e as negras sem o sabor de ser.
2.5.1A Colonialidade do Poder na ADI 3239
O documento que inaugura a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, a petição do DEM, carrega em seu corpo trechos ou passagens que materializam a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005). Isto é, pensa e vê a comunidade negra composta por seres inferiores que devem ocupar papéis e hierarquias correspondentes a essa situação. Por isso, uma norma jurídica que atende os anseios dos quilombos e contém no seu texto falas das comunidades quilombolas deve ser extraída do ordenamento jurídico brasileiro.
O ato normativo ora contestado refoge – e muito a matéria de que trata o mencionado dispositivo, pois disciplina direitos e deveres entre particulares e administração pública, define os titulares da propriedade das terras onde se localizam os quilombos, disciplina procedimentos de desapropriação e, consequentemente, importa aumento de despesa. (DEMOCRATAS, 2004).
O ataque ao Decreto 4.887/20003 pelo DEM resume-se basicamente a dois elementos: a proteção da propriedade privada e a destinação de dinheiro público para o erguimento de comunidades negras quilombolas. Ou seja, expressam um controle sobre recursos de produção: terra e capital (QUIJANO, 2005).
Ora, o orçamento público deveria ser pensado de forma a possibilitar atingir um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, qual seja: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (Art. 2°, II, da CF/ 1988).
Contudo, para o DEM, não se justifica nenhum gasto público com a desapropriação de imóveis de particulares para compor o território da comunidade quilombola. Nesse mesmo sentido:
Ante o enunciado constante do art. 68 do ADCT, descabe o Poder Público desapropriar a área, visto que a propriedade decorre diretamente da Constituição. Nos termos da dicção constitucional é reconhecida a propriedade definitiva. Ou seja, não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer a futuras indenizações. (DEMOCRATAS, 2004).
O Democratas discorda, insistentemente, da utilização de dinheiro público em processos desapropriatórios de terras que seriam utilizadas na formação do território quilombola para a proteção dos modos de criar, de fazer e de viver dessas comunidades. É a possibilidade do aumento das despesas públicas que faz com que o DEM peça a imediata suspensão dos efeitos jurídicos do Decreto 4.887/2003.
Pede-se também a concessão de medida cautelar inaudita altera pars, em vista da excepcional urgência e risco de dano à segurança jurídica, nos termos do artigo 10, § 3º, da Lei 9.8668, de 10 de Novembro de 1999, ainda que ad referendum do plenário (em face da proximidade do recesso), de modo a suspender a eficácia do ato normativo ora impugnado até o julgamento final desta Ação, demonstrando à exaustão, a probabilidade e a plausibilidade jurídica do pedido, bem como o perigo na demora da prestação jurisdicional, inclusive para os cofres públicos. (DEMOCRATAS, 2004).
O Estado de Santa Catarina se utiliza do mesmo argumento para atacar a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003: o aumento de despesa sem previsão legal.
O Ato Executivo, em análise, pretende regulamentar direta e imediatamente preceito constitucional, com isso, transborda os limites do art. 84, IV e VI da Constituição Federal, já que disciplina direitos e deveres entre particulares e a administração pública, define os titulares das terras onde se localizam os quilombos, além de, criar nova forma de desapropriação, o que importa em aumento de despesa, sem previsão constitucional ou legal. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007) .
Vê-se, então, que a oneração dos cofres públicos com a constituição de comunidades quilombolas encontra oposição firme por parte do DEM e do Estado de Santa Catarina.
Merece destacar a forte defesa da propriedade privada em detrimento do direito de vida ou de qualquer outro direito, conforme se vê pelo seguinte trecho: “Faz tábula rasa do direito à propriedade (CF, art. 5.o., XXII) e cria nova forma de desapropriação, alargando os limites constitucionais ao direito de propriedade, sem previsão constitucional ou legal (CF, art. 5.o.,XXIV)” (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007). Aliás, é para proteger a propriedade privada que este Estado roga para ingressar na ADI 3239.
O Estado de Santa Catarina, como ente político, se insere no rol amplo de legitimidade, notadamente por se tratar de interesse difuso, [...] ademais, possui em seu território remanescentes das comunidades de quilombos cujos direitos sobre as terras que estejam ocupando pretende ver reconhecidos dentro do disposto pela norma constitucional, como também pretende ver respeitado o direito às demais formas de propriedade constitucionalmente asseguradas. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007, grifo nosso).
A possibilidade do enegrecimento de terras urbanas e rurais encontra resistência, também, nos discursos dos ministros do STF. Por isso, a exigência de que a comunidade quilombola tenha posse centenária das terras que ocupam: “Já ficou fora de dúvida que as terras a serem tituladas são aquelas cuja posse é secular” (PELUSO, 2012).
Outro argumento utilizado para restringir o acesso da comunidade negra ao território que ocupa ou que, porventura, venha mais tarde a ocupar, é estabelecer como marco temporal a data em que foi promulgada a Constituição Federal de 1988: “Diante dessa perspectiva, no meu sentir, a partir da leitura do dispositivo constitucional, foram contemplados com a titularidade aqueles remanescentes que estavam ocupando suas terras no momento da promulgação da Constituição de 1988” (TOFFOLI, 2017, grifo no original).
Em outra passagem, este ministro pontua que a inclusão no território a ser destinado aos quilombolas de terras, que a comunidade não ocupava quando da entrada em vigor da atual Constituição, representaria “[...] alagar o alcance do dispositivo constitucional” (TOFFOLI, 2017).
Restringe-se a interpretação do artigo constitucional quilombola – art. 68 do ADCT da CF/88 –, para proteger a sagrada propriedade privada. Por isso mesmo, tal ministro discorda que as terras ocupadas pelos quilombolas são aquelas utilizadas para a garantia da reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade.
Em verdade, enquanto, para as terras indígenas, a Constituição adotou os critérios da imprescindibilidade e da necessidade, para os quilombolas, pautou-se pelo critério da ocupação. Dessa forma, não se deve alargar o âmbito de proteção do dispositivo constitucional para inserir em seu alcance o reconhecimento do direito de propriedade às comunidades quilombolas das terras “suficientes e necessárias para o natural desenvolvimento e reprodução de sua cultura e valores”, independentemente do critério de “ocupação” eleito pela Carta Magna. Muito menos se deve ampliar esse direito de propriedade, reconhecido taxativamente no texto constitucional, para possibilitar a ampliação futura dos domínios territoriais. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).
A fração do solo a ser destinada à comunidade pauta-se, unicamente, pelo instituto jurídico da posse. Desconsidera, desse modo, a proteção constitucional aos modos de criar, de fazer e de viver dos homens negros e das mulheres negras quilombolas.
De igual modo, embora não faça referência específica à questão da territorialidade, a ministra Rosa Weber defende que a comunidade tenha a posse mansa e pacífica do território almejado. “Necessária a evidência da ocupação tradicional das terras reivindicadas, em caráter minimamente estável – sem o que, de resto, sequer se poderia cogitar de relação territorial específica” (WEBER, 2015, grifo no original).
A ministra Rosa Weber esquece e sedimenta as agressões históricas às áreas ocupadas pelos quilombos, perpetradas por grileiros, empreiteiras, especuladores imobiliários e, até mesmo, pelo próprio Estado. A comunidade tem que se virar com o que lhes restou. É a parte que lhes cabe nesta interpretação da Suprema Corte do que é um território quilombola.
O Estado de Santa Catarina, por seu turno, vê o Decreto 4.887/2003 como uma violação a direitos individuais ao impor obrigações e restringir direitos. Se, um dia, a fuga de escravos causou transtornos, prejuízos incomensuráveis aos seus senhores, a formação do território quilombola atormenta os proprietários das terras embranquecidas pela Lei das Terras e pelo empobrecimento da comunidade negra.
A competência para expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis não pode ser compreendida como a competência para complementar a Constituição Federal, muito menos como competência para inovar no campo legislativo, com a criação de direito novo com a imposição de ônus aos particulares, melhor dizendo, não se reveste o Decreto de meio idôneo, para restringir direitos ou criar obrigações. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).
O Decreto 4.887/2003 é percebido como uma manifestação da rebeldia negra, logo, ilegal, desmesurado, causador de transtorno em um ambiente de paz social, uma violação ao direito de propriedade e que, portanto, deve ser combatido. Esta é a tarefa a que a ADI 3239 se propõe.
2.5.2. A Colonialidade do Saber na ADI 3239
A colonialidade do saber corresponde a um legado epistemológico do eurocentrismo que tolhe a compreensão de que o pensamento humano se encontra em todos os lugares onde os diferentes povos e suas diferentes culturas se desenvolveram. Há, pois, múltiplas epistemes com seus diversos mundos de vida. Para cada mundo, há uma visão específica, isto é, há uma diversidade epistêmica, apesar do eurocentrismo (PORTO-GONÇALVES, 2005).
Assentado na colonialidade do saber, o Partido Democratas defende que a demarcação das áreas quilombolas deve ser pautada por laudos elaborados por especialistas e não pela narrativa dos negros e das negras que conhecem a história de todas as intempéries pelas quais passou a comunidade quilombola. Para o DEM (2003), “A demarcação das áreas, antes de levar em conta critérios históricos-antropológicos, será realizada mediante a indicação dos próprios interessados (art. 2º, § 3°)”.
Em outra parte da petição do DEM, esse pensamento é reiterado. O Partido Democratas entende que o Estado deve ter o controle absoluto sobre a definição do território quilombola: “A caracterização das terras a serem reconhecidas aos remanescentes das comunidades quilombolas também enfrenta problemas ante a sua excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados” (DEMOCRATAS, 2004). O Estado de Santa Catarina comunga dessa forma de pensar:
19. – Ora, dessa forma, admite a norma impugnada que os interessados se declarem remanescentes dos quilombos, por vontade própria, sem estudo antropológico que possa verificar essa situação, e, a partir desse primeiro pressuposto também declarem qual a área de terras que pretendem ver reconhecida e por outro lado, na ausência de impugnação, considera como tacitamente aceito por terceiros que possam ser proprietários dessas áreas. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).
A interpretação da Constituição que o DEM e o Estado de Santa Catarina apresentam não comporta qualquer outra experiência constitucional que não seja aquela vivenciada pelos europeus ou pelos norte-americanos. Os negros e as negras não podem falar no direito constitucional ocidental por si sós, precisam de um interlocutor, geralmente branco, para externar suas angústias e seus desejos.
Por isso, o Partido Democratas defende que “À toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional”. A lógica do direito ocidental repousa na impossibilidade de os subalternos poderem falar.
A forma coletiva do apossamento da terra (LITTLE, 2002) convulsiona a propriedade privada que tem base constitucional no direito brasileiro. Desse modo, essa experiência quilombola não pode se materializar em direito. É a vontade individual que deve ser prestigiada e protegida.
De outra parte, somente tem direito ao reconhecimento – critério que não encontra respaldo no Decreto – o remanescente que tinha e demonstrava, à época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. Tal aspecto ressalta da expressão constitucional “suas terras” constante do art. 68 do ADCT. (DEMOCRATAS, 2004).
Portanto, de acordo com o DEM, apenas quando o integrante da comunidade quilombola se comporta de maneira individualista, tomando para si as terras que pertencem à comunidade, é que seu comportamento traduz uma conduta que merece reconhecimento do direito. Quando a atitude do negro ou da negra quilombola se assemelha a do colonizador, a ciência do direito a traduz como uma prática legal.
Da mesma maneira, o aprisionamento do conceito de quilombo ao passado escravagista representa olhar esse fenômeno pelas lentes do colonizador europeu. Nessa linha, o DEM defende, em sua manifestação inicial, que “A área cuja a propriedade deve ser reconhecida constitui apenas e tão somente o território em que comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formara” (DEMOCRATAS, 2004, p.).
Para Peluso (2012), os elaboradores da Constituição Federal de 1988, a quem denomina de constituintes, priorizaram a adoção do conceito ou a visão sobre o mundo quilombola dos historiadores.
Já no que tange ao conceito de quilombos, é de se ter presente que as muitas acepções que o termo admite são condicionadas por alguns fatores, tais quais, época, ponto de vista sociopolítico e a área do conhecimento daqueles que lidam com o tema. Ora, identificados os requisitos temporais acima vistos, é seguro afirmar que, para os propósitos do art. 68 do ADCT, o constituinte optou pela acepção histórica, que é conhecida de toda a gente.
A narrativa que prepondera, neste caso, considera os quilombos como local de agrupamento de negros indolentes e boçais e não de um instrumento de resistência negra à desumanização. O quilombo é algo negativo, um ato ilícito que o Estado deve combater.
Peluso se vale, ainda, do monismo estatal para defender a tese de que quilombo é um mero agrupamento de escravos fugidos:
Reafirmo que os respeitáveis trabalhos desenvolvidos por juristas e antropólogos, que pretendem ampliar e modernizar o conceito de quilombos, guardam natureza metajurídica e por isso não têm, nem deveriam ter, compromisso com o sentido que apreendo ao texto constitucional. (PELUSO, 2012).
No processo de desprezar todos os saberes produzidos pela comunidade quilombola sobre si mesma e das narrativas que percebem os quilombos como mecanismo de resistência à coisificação de negros e de negras pela escravização, pela fome, pelo analfabetismo, pela perseguição aos seus cultos religiosos, o ministro Cézar Peluso indeferiu o pedido que diversas entidades fizeram para que se realizasse audiência pública para discutir a questão do território quilombola.
E, antes de adentrar-lhe o mérito, registro que, apesar de muitos pedidos para a realização de audiência pública, não descobri razão que a justificassem, à luz da própria legislação de regência desse instituto.
[...]
Ora, à toda evidência, a causa encerra matéria de direito. Os autos estão fartamente instruídos, e não há tema que envolva complexidade técnica.
Bem mais expressivas são, aliás, neste caso, as muitas contribuições dos amici curiae admitidos, pois que tais manifestações prescindem de reconhecido “notório saber” em qualquer área de conhecimento (PELUSO, 2012).
Para Peluso, a questão quilombola é uma questão menor. Teima em não perceber que a abolição da escravatura em terras brasileiras encontra-se incompleta. Daí derivando questões sociais que envolvem desde o analfabetismo e a situação de miséria em que se encontra a comunidade negra, o encarceramento de negros e de negras, o embranquecimento das terras urbanas e rurais, o genocídio da juventude negra, e, até mesmo, a demonização dos cultos africanos.
No caso da ministra do STF Rosa Weber, o conceito de quilombo encontra-se preso à palavra reminiscente, outorgando-lhe sentido de uma comunidade atual que tem um tronco comum, individual ou coletivo, das comunidades de escravos fugidos.
Já a data de 13 de maio de 1888 não tem serventia metodológica à definição do status dos quilombos. A uma porque o próprio conceito de remanescente de quilombo nos dias atuais exige a reprodução contínua de uma comunidade que, originada da resistência à escravidão, permaneceu coesa até o presente. (WEBER, 2015, grifo nosso).
Assim, Rosa Weber associa, também, as comunidades quilombolas à resistência da comunidade negra ao sistema escravocrata. Se a Lei 3.353/1888 extinguiu a escravidão no Brasil, a Lei das Terras marginalizou definitivamente os afrodescendentes brasileiros.
A passagem da escravidão para o trabalho livre não afetou por isto os interesses dessas oligarquias, pois, ao perderem os escravos, muitos deles já onerosos por serem membros de um estoque envelhecido, continuaram com a posse da terra, símbolo econômico e social de poder. E essa tática apelou para uma solução alternativa que permitisse a essa oligarquia continuar na posse da terra: a vinda dos imigrantes. (MOURA, 2014, p. 92).
[...]
A Lei da Terra tinha, no fundo, conteúdo político. Ela deu um cunho liberal à aquisição de terras no Brasil, mas visava a, de um lado, impossibilitar uma lei abolicionista radical que incluísse a doação pelo Estado de parcelas de gleba a libertos e, de outro, estimular o imigrante que via, a partir daí, a possibilidade de transformar em pequeno proprietário, aqui chegando. (MOURA, 2014, p. 110-111).
Portanto, as comunidades quilombolas são mecanismos de resistência à escravização, mas também à marginalização social que tem a negação do acesso à terra como um dos seus pilares. Dessa maneira, os quilombos atuais não são meros museus culturais a céu aberto, exposto a visitações de curiosos, porém, manifestações da resistência negra que surgiram antes e depois da extinção do sistema escravagista no Brasil.
Merece, pois, descrédito o seguinte discurso de Toffoli sobre o conceito de quilombo:
Nessa concepção, as comunidades remanescentes de quilombos constituem grupos étnico-raciais que compartilham certa identidade, baseada numa ancestralidade comum, em manifestações culturais com forte vínculo com o passado, em relações organizacionais próprias e em formas específicas de relacionamento com a terra. (TOFFOLI, 2017).
Tal conceito abriga apenas uma das espécies de comunidade quilombola. Há outras que foram forjadas em situações e em contextos diferentes dos mencionados por Toffoli. Esse equívoco, também, é cometido pela Procuradoria-Geral da República.
Ali se prevê o critério autoatribuição, mas também a necessidade de trajetória histórica própria, a dotação de relações territoriais específicas e a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, critérios estes que se complementarão àquele. Essa idéia é reafirmada na regulamentação dos procedimentos administrativos do INCRA, feita pela sua Instrução Normativa 16/2004. Ali se repete esta prescrição dos beneficiários da política pública (art. 3°).
Os quilombos nunca desapareceram. É lógico que existem comunidades quilombolas como as descritas pela Procuradoria-Geral da República, mas há outras que se formaram nas zonas urbanas e rurais, em que seus membros nem se conheciam. Conforme Carril (2009, p. 39):
O estudo das terras de quilombos no Vale do Ribeira conduziu-nos a refletir sobre os camponeses no Brasil que, diante das pressões socioeconômicas, refazem o processo histórico, remetendo-o à escravidão e a origem das terras. Agora, grupos localizados nas periferias de São Paulo identificam também essas partes da cidade com o quilombo.
Carril quer demonstrar que em algumas zonas periféricas da cidade de São Paulo grupos se autodenominam e se autodefinem como quilombos. Fazem-no pela semelhança da tática de resistência empregada contra as “condições opressivas” (STRECK, 2006, p. 82) do abandono social: valoração da identidade e da cultura negras.
No entanto, a resistência cultural é apenas uma das facetas dos antigos e dos atuais quilombos. Deve-se guardar alguma distância da seguinte fala da Procuradoria-Geral da República:
Hoje, conforme a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), quilombo é o termo utilizado para designar a herança cultural e material das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos, que lhes confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico, abrangendo toda a área ocupada e utilizada para subsistência, e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).
Da mesma maneira, quando o Instituto Pro-bono, o Conectas Direitos Humanos e a Sociedade Brasileira do Direito Público associam o movimento quilombola apenas à resistência cultural, “A discussão sobre o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas é parte de um processo histórico de valorização da cultura negra, que alcançou em 1988 importantes conquistas”. Os quilombos expressam, também, uma “[...] cultura de resistência” (MOURA, 1992, p. 34).
De fato, a colonialidade do saber pode ser encontrada em todas as peças da ADI, pelo menos foi o que se percebeu naquelas em que se realizou o levantamento dos dados que compõem a categorização da empiria estudada (ALVES, 2007). Os saberes das comunidades quilombolas, suas narrativas precisam ser legitimadas pelo discurso acadêmico.
19. – Ora, dessa forma, admite a norma impugnada que os interessados se declarem remanescentes dos quilombos, por vontade própria, sem estudo antropológico que possa verificar essa situação, e, a partir desse primeiro pressuposto também declarem qual a área de terras que pretendem ver reconhecida e por outro lado, na ausência de impugnação, considera como tacitamente aceito por terceiros que possam ser proprietários dessas áreas. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).
[...]
Não há, portanto, razão de ser na referida impugnação, tendo em vista que a indicação do território pelas comunidades interessadas não é critério isolado, precedendo à titulação das terras outras fases técnicas, inclusive com a emissão do Relatório Técnico de Identificação de Delimitação, com a observância de diversos critérios antropológicos e de natureza objetiva. (TOFFOLI, 2017).
[...]
A rigor, não há uma questão de inconstitucionalidade em jogo. Evidencia-se, isso sim, uma controvérsia metodológica (se é que assim se possa considerar, na medida em que os mais recentes avanços da Antropologia ratificam os critérios estabelecidos no Decreto 4.887, de 2003), que há de resolver-se no âmbito da ciência antropológica, e não do Direito” (fls.112). (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA).
[...]
Prevê ainda a realização de trabalhos de campo para a produção do Relatório Técnico-Científico (RTC), determinando a localização da comunidade, a identificação e a descrição da área, conforme limites indicados pela comunidade, com base nas atividades econômicas e construções já existentes. Procede-se também ao diagnóstico jurídico do território auto- identificado, que consiste no levantamento de sua situação dominial, da situação jurídico-ambiental e da situação jurídica da comunidade, verificando se cabe ação de usucapião ou se é o caso de desapropriação.
(INSTITUTO PRO BONO, CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIREITO PUBLICO, 2004).
Então, mesmo naqueles que defendem a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, a fala dos quilombos necessita da academia para credenciá-la. Os negros e as negras são vistos como seres inferiores que necessitam da tutela do Estado e do discurso científico eurocentrado para chancelar os seus quereres.
2.5.3A Colonialidade do Ser na ADI 3239
A noção de raça e sua diferenciação, e respectivas associações, objetivava naturalizar o discurso do colonizador no qual o binômio inferior/superior se relacionava, nessa ordem, às negras e aos negros escravizados e ao branco europeu colonizador. Essa ideia ainda se mantém nas relações sociais formadas no espaço social brasileiro (QUIJANO, 2005).
Dentro dessa perspectiva, a fala dos negros e das negras é sempre relacionada à mentira, a devaneios, em uma relação de negação da alteridade que não reconhece a outra pessoa, no caso, a pessoa negra, como membro da mesma nação:
Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não remanescentes-, não seria razoável determiná-los mediante critérios de auto- sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que aquelas que efetivamente beneficiados pelo art. 68 do ADCT, e realizar, por via oblíquas uma reforma agrária sui generis. (DEMOCRATAS, 2004).
De acordo este partido, a utilização do critério da autoatribuição ocasionaria destinar terras a quem não é efetivamente um quilombola.
Não restam dúvidas, portanto, que resumir a identificação dos remanescentes a critérios de auto-determinação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país. (DEMOCRATAS, 2004).
A propensão a mentir que a comunidade negra se encontra inclinada exige a elaboração de laudos científicos que permitam verificar a veracidade das narrativas dos negros e das negras que se dizem quilombolas. Rosa Weber acata a autoatribuição, porque a narrativa quilombola, na sua forma de interpretar o Decreto 4.887/2003, necessita obrigatoriamente de uma certidão emitida pela Fundação Palmares.
Para os efeitos do Decreto 4.887/2003, a autodefinição da comunidade como quilombola é atestada por certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, nos termos do art. 2°, III, da Lei 7.668/1988.
Embora apresentem congruências, vale registrar que não se sobrepõem os conceitos de consciência da própria identidade, consagrado na Convenção 169 da OIT, e o de autoatribuição/autodefinição, da forma como previsto no Decreto 4.887/2003. (WEBER, 2015, grifo no original).
Toffoli (2017) compartilha de tal entendimento: “Por outro lado, verifica-se que a impugnação do autor parte do entendimento equivocado de que o critério da autoatribuição seria suficiente para a titularização das terras, não acompanhado da utilização de critérios complementares para a identificação dos remanescentes de quilombo”. Portanto, de acordo com Rosa Weber e Dias Toffoli, a narrativa quilombola fica em suspensão, aguardando que terceiros estranhos à comunidade possam atestar a sua fidelidade, franqueza e honestidade.
Em outra passagem de sua petição, o DEM é categórico em afirmar que a fala dos negros e das negras não possui idoneidade: “Trata-se, na prática, de atribuir ao pretenso remanescente o direito delimitar a área que lhe será reconhecida. Sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e legítimo de definição” (DEMOCRATAS, 2004).
Do mesmo modo, o DEM acredita que os modos de viver, de criar e de fazer não possuem qualquer importância, e, portanto, não podem ser utilizados como critérios para definir a delimitação da área quilombola: “Descabe, primeiramente, qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural” (DEMOCRATAS, 2004).
O Estado de Santa Catarina possui entendimento semelhante:
18. – Ademais, como vimos acima, o procedimento regulado pelo Decreto impugnado, aceita, para a apuração dos fatos que às pessoas supostamente remanescentes dos quilombos, assim se auto-declarem, como também aceita que essas mesmas pessoas que assim se autodeclararam, faça a indicação da área de terras a lhes ser titulada. (ESTADO DESANTA CATARINA, 2007).
O Decreto é combatido por legitimar a fala e os desejos de seres que sempre estão à espreita, propensos à marginalidade, à farsa, ao embuste. Porém, para o Estado de Santa Catarina, além disso, os negros e as negras são responsáveis pela instalação do caos social ao reivindicarem os seus direitos.
27. A Constituição Federal assegurou uma realidade fática anteriormente existente, atribuindo ao Estado apenas o dever de emitir o respectivo documento público, todavia, o malsinado Decreto aparentemente, sobrepõe direitos e cria conflitos de interesses, onde antes havia paz social. (ESTADO DE SANTA CATARINA, 2007).
O ministro Cesar Peluso concorda com tal argumento: “Convencido da inconstitucionalidade do diploma impugnado, não posso, todavia, furtar-me a sopesar, com igual atenção, o crescimento de conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos dele decorrente pode trazer, se já não a trouxe”. Em outra passagem do seu voto, Peluso (2012) afirma:
Convencido da inconstitucionalidade do diploma impugnado, não posso, todavia, furtar-me a sopesar, com igual atenção, o crescimento dos conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos dele decorrente pode trazer, se já a não trouxe. É que o nobre pretexto de realizar justiça social, quando posto ao largo da Constituição, tem como conseqüência inevitável a desestabilização da paz social, o que o Estado de Direito não pode nem deve tolerar. Antes, deve afastar, como é óbvio.
O discurso do ministro denota que os conflitos agrários não são resultantes da concentração de terra, mas desencadeados pelas comunidades quilombolas que não aceitam pacificamente viver na invisibilidade e na periferia das cidades brasileiras. As negras e os negros são tidos como transgressores, violadores contumazes da lei e da ordem e da paz pública.
Já o ministro Dias Toffoli afirma, como já referido, que deixar que as comunidades quilombolas se autodefinam como tais é provocar insegurança jurídica. Dessa forma de pensar emana que a garantia da estabilidade jurídica fica condicionada à sujeição dos quilombolas à negação de suas dignidades. Aceitar as migalhas de vida que a Casa Grande lhes oferece. Uma leitura seguindo as premissas do constitucionalismo liberal em que “A liberdade individual, fundada na propriedade privada, passa a ser a essência do novo ordenamento jurídico” (MAGALHÃES, 2015, p. 56).
Datada do século XVIII, é esta visão de mundo que ainda define a visão sobre as comunidades quilombolas. Mesmo aqueles que defendem a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 possuem uma visão negativa sobre as comunidades quilombolas. No voto da ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber pairam ambiguidades:
Entendo que, se de um lado a falta de cuidado no seu emprego é um convite à irregularidade e ao oportunismo, de outro a sua recusa frustra a concretização de direitos constitucionais protegidos pela Constituição da República. O sentido das normas protetivas de direitos fundamentais, como já enfatizado, deve sempre ser buscado na interpretação que lhes confere a máxima eficácia. (WEBER, 2015).
A autoatribuição quilombola encontra-se mutilada, fragilizada por aqueles que percebem os negros e as negras como oportunistas e lacaios que querem se aproveitar de forma indevida e furtiva das benesses que o Estado lhes presenteia, o que lhes afeta na sua dignidade.
De forma escamoteada, a defesa de se definir um limite temporal do erguimento das comunidades quilombolas também possui esta mesma visão de mundo: “E a ausência de um marco temporal de ocupação servirá, nesse caso, de estímulo ao agravamento de conflitos fundiários” (TOFFOLI, 2017).
A visão que o STF possui sobre as comunidades quilombolas, aqui materializada no voto do ministro Dias Toffoli, não destoa muito da proposta de trégua que o governador de Pernambuco ofereceu a Ganga-Zumba (RODRIGUES, 1982):
O governador d. Pedro de Almeida garantia autonomia – reconhecimento da liberdade aos palmaristas – com a condição de demarcar as terras e de proibir-se o ingresso de novos fugitivos. Esse teria sido o acordo entre os negros do Palmar e as autoridades pernambucanas. (GOMES, 2011, p. 22).
O marco temporal é um convite à traição àquelas negras e àqueles negros que se encontram na periferia. Os quilombolas pérfidos devem esquecer seus irmãos e suas irmãs nas senzalas modernas.
2.6 A Colonialidade nos Discursos Textuais da ADI 3239
Coronil (2005, p. 109) destaca o papel da natureza como uma “[...] força geradora de riqueza e modernidade”. O sistema capitalista, a partir de conquistas tecnológicas, consegue superar algumas limitações que a natureza lhe impõe na produção de mercadorias e na exploração de recursos minerais. Porém, o desenvolvimento das relações capitalistas na agropecuária encontra um inimigo quase invencível: não é fácil fabricar novas terras (SILVA, 1980).
Para esse autor, por ser dificultoso produzir novas terras, seja por deficiência tecnológica ou pelo alto custo que representa, é que ganha importância a “[...] forma de apropriação dos solos criados pela Natureza, quer dizer, dos solos não fabricados” (SILVA, 1980, p. 21). O Estado legisla em profundidade o acesso à terra.
No início da colonização, século XVI, os portugueses perceberam que, além do açúcar que podia gerar vultosas somas de dinheiro, havia também o tráfico de corpos negros que se mostrava extremamente rentável. Gerava-se, assim, o latifúndio escravista. Um sistema de produção que envolve doações de grandes extensões de terras a particulares, denominadas de sesmarias e, obrigatoriamente, a propriedade de escravos (GORENDER, 1988).
Como dito em outras paragens, no início do século XIX ocorre uma expansão dos sítios (SILVA, 1986) em função do fracionamento de grandes áreas por conta de heranças e até pelo abandono de imóveis rurais pelas condições deploráveis em que o solo se encontrava (GADELHA, 1989). Segundo Gorender (1988, p. 375), “[...] a fertilidade das terras virgens fazia preferível nova plantação ao trabalho com a revitalização [do solo]”.
A Lei 601/1850 impede esse processo de apossamento (GADELHA, 1989) e possibilita a constituição de um mercado de trabalho livre para substituir o sistema escravista que se encontrava em vias de extinção. Por isso, pondera Silva (1986), não se deve estranhar que se tenha criado uma legislação que defina o acesso à propriedade com a proibição do tráfico negreiro em 1850.
É fácil entender a importância da Lei de Terras de 1850 para a constituição do mercado de trabalho. Enquanto a mão de obra era escrava, o latifúndio podia até conviver com terras de “acesso relativamente livre” (entre aspas porque a propriedade de escravos e de outros meios de produção aparecia como condição necessária para alguém usufruir a posse destas terras). Mas quando a mão de obra se torna formalmente livre, todas as terras têm que ser escravizadas pelo regime de propriedade privada. (SILVA, 1986, p. 25).
A escravização das terras a que faz referência José Graziano da Silva ocorreu para impedir que, principalmente, negros e negras tivessem acesso à terra. Mais ainda, para financiar o processo de embranquecimento do Brasil. Isto porque, a comercialização das terras devolutas destinava-se ao financiamento da vinda de colonos da Europa (SILVA, 1986). Eis a colonialidade do poder.
Ao atribuir às comunidades quilombolas a titulação das terras que ocupam, o art. 68 do ADCT rompe com a colonialidade do poder materializada pela Lei das Terras. Primeiro, porque torna a palavra quilombo prenhe de esperança, elevando-a a símbolo de resistência à opressão e a gozo de direito; segundo, porque retira da lógica da propriedade privada uma porção de terras.
No entanto, como se houvesse cometido um equívoco ao permitir a inserção de tal direito na Constituição, a colonialidade do poder reage e se manifesta, aqui, na interpretação que lhe confere o Poder Judiciário e no conceito de quilombo atribuído pelo Estado de Santa Catarina25 e pelo Partido Democratas.
Há, por parte daqueles que sustentam a inconstitucionalidade do decreto quilombola – Decreto 4.887/2003 –, uma visão monocular do artigo 68 do ADCT. Na ânsia de defender a propriedade privada, esquecem que a territorialidade quilombola possui uma função social: acolher os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas, considerados no art. 216 da atual Constituição republicana como patrimônio cultural imaterial brasileiro.
Assim, o Estado de Santa Catarina defende que a interpretação do art. 68 do ADCT da CF/1988, deva ocorrer de tal maneira que seja “[...] respeitado o direito às demais formas de propriedade constitucionalmente asseguradas” (BRASIL, 1988). Por isso, ataca a possibilidade de desapropriação de imóveis de particulares quando a comunidade quilombola indicar essas áreas como aquelas que compõem o seu território.
O DEM se utiliza dos mesmos argumentos do Estado de Santa Catarina em relação à desapropriação prevista no Decreto 4.887/2003 e realça a indignação do “[...] uso de recursos públicos por ocasião de indenização decorrentes de desapropriações realizadas ao arrepio da Constituição”.
O objetivo é restringir ao máximo a quantidade de solo que possa ser transferido para os negros e as negras quilombolas. Dessa maneira, o momento de constituição dessas comunidades ou mesmo o conceito de quilombo entram no baile. O DEM aponta o período imperial em que os quilombos se formaram. O Estado de Santa Catarina e Dias Toffoli indicam a data em que a atual Constituição foi promulgada.
Tanto um quanto o outro sabem que a inserção de tal direito na Constituição de 1988 promoveu que comunidades negras se atribuíssem a identidade quilombola. De fato, o texto constitucional incentiva o debate nas comunidades quilombolas sobre suas histórias, suas tradições, seus anseios e suas frustrações.
A organização política local teve seus inícios na localidade Lagoa das Emas, que se desenvolvia, desde 2008, um trabalho de articulação social e política, através da Associação local, envolvendo comunidades além das que atualmente constituem o agrupamento. Esta data se refere a reuniões para se trabalhar, localmente, a ideia de reconhecimento do território como quilombola; porém, o debate sobre identidade quilombola e seu reconhecimento territorial pautou-se, localmente, a partir de 2005, com forte presença de lideranças locais já vinculadas ao Movimento Quilombola Estadual, cujas lideranças diziam existir ali um povo com “costumes tradicionais”. (MATOS; MORAES, 2015, p. 224).
Percebe-se, pelo relato das autoras, que a comunidade localizada no município de São Raimundo Nonato, Piauí, denominada de Lagoa das Emas, apenas em 2005 iniciou o debate sobre a identidade quilombola, mas que já se encontrava encravada naquele espaço há bastante tempo. Por certo, tal comunidade se adéqua ao perfil estabelecido pela colonialidade do poder.
Mas não é difícil imaginar que diversas comunidades negras foram expulsas do local que habitavam e outras que se formaram após 1988 em um processo organizado de ocupação de terras devolutas e de imóveis improdutivos pertencentes a particulares.
A empresa Suzano Papel e Celulose não deslocou, mas restringiu o modo de vida da população tradicional e quilombola, que ficou impedida de extrativismo, de criar animais soltos porque as florestas de eucaliptos não eram cercadas e teve alterado o lugar de fazer roças; é o caso da comunidade Nova Esperança no município de Palmeirais (PI), que ficou com a floresta de eucalipto no seu terreiro, teve que deixar de criar galinhas, porcos, de extrair o coco babaçu e as roças ficaram a 15 quilômetros de distância (UFPI/DCJ/DIHUCI, 2015). (SOUSA, 2015, p. 114-115).
A estrutura fundiária de Caxias caracteriza-se pela predominância de grandes proprietários de terra, o que gera muitos conflitos com os donos de minifúndios, entre estes os remanescentes de quilombolas. De certo modo, a estagnação das técnicas de produção e o esgotamento do solo constituem-se dilemas para os pequenos lavradores, apesar da riqueza do solo. O município possui um quadro migratório preocupante, da zona rural para a zona urbana [...]. (MAIA, 2015, p. 34).
A destruição das comunidades quilombolas, perpetrada por ações e por atores diversos, fazendo que algumas delas desapareçam ou que se desloquem para outras áreas rurais e mesmo zonas urbanas, ocorre cotidianamente. Estabelecer o ano de 1988 como o marco para garantir a titulação das terras representa fechar os olhos ao processo de fagocitose do latifúndio em relação às comunidades quilombolas e à invasão de suas áreas por empreendimentos de particulares e até por obras governamentais.
Representa, antes de tudo, a defesa da propriedade privada. E essa forma de apropriação de imóveis rurais e urbanos expressa a colonialidade do poder.
O domínio das minorias brancas pode ser verificado, por exemplo, no aspecto da privação e luta pelo acesso à terra de movimentos como os índios, quilombolas e sem-terras, cujo processo de exclusão fora estabelecido historicamente. Desde a colonização do Brasil grandes parcelas de terras foram encaminhadas a poucos proprietários, gerando grandes latifúndios. Da concentração, assegurada por leis que protegem os interesses dos proprietários, na maioria de brancos de origem europeia, exclui-se os demais, pois hierarquicamente e racialmente inferiores, restando para estes a acentuação da pobreza e a exclusão social. (ORTIGARA, 2016, p. 47).
Essa privação de acesso à terra foi estabelecida historicamente, sempre pautada pelo direito, excluindo negros e negras relegados à condição hierárquica e racialmente inferiores, marginalizando-os sem moradia ou sem solo para cultivar roças. No caso do artigo 68 do ADCT da CF/88, cabe à colonialidade do poder interpretá-lo de tal forma que os impactos sejam quase irrelevantes para o latifúndio e para a propriedade privada.
A interpretação do artigo constitucional quilombola se faz a partir de um olhar que sacraliza a propriedade privada, cultua o pensamento europeu e inferioriza os saberes dos quilombos. Não se aponta, necessariamente, a menção que Rosa Weber fez ao constitucionalismo alemão. Mas custa a acreditar que um pensamento forjado em uma comunidade totalmente distinta da brasileira possa ser aqui aplicado sem nenhum ajuste. Pode até ser uma luva, mas as mãos e os dedos são diferentes.
Dias Toffoli, por exemplo, se apressa em corrigir o DEM, lembrando que a indicação do território pela comunidade não vale por si só. É o conhecimento produzido nas universidades que sanciona a narrativa quilombola. Cézar Peluso, por sua vez, entendeu que não havia necessidade de audiência pública em que poderia ouvir depoimento de pessoas com experiência e autoridade na matéria, portanto, os quilombolas. Aqui se respira colonialidade do saber.
Do mesmo modo, Dias Toffoli entende que os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas, previstos no art. 216, da CF/88, não se encontram intrinsecamente relacionados com a titulação do território onde essas manifestações se traduzem, dando a entender que constituem, meramente, patrimônio cultural brasileiro que deve ser preservado em museus de imagem e som. Não percebe que o solo quilombola possui vida, pulsa em meio a angústias, a abandono social e a marginalização.
A categorização da fala do ministro Dias Toffoli pode ser equiparada ao tratamento dos saberes quilombolas como “produto do primitivo” (LANDER, 2005, p. 34), portanto, “[...] obstáculos à tarefa transformadora do desenvolvimento” (LANDER, 2005, p. 42). Por isso, a necessidade de aprisioná-los em museus, identificando-os com um passado que necessariamente deve ser superado. Daí entender que o artigo 68 carrega preceito que possui um “comando transitório e excepcional”.
Essa percepção de que a causa quilombola se encerrou com a extinção da escravidão encontra guarida no silêncio que o direito manteve por um longo período. Na verdade, os negros se encontram apenas nas entrelinhas dos livros de História do Brasil, como se fosse possível explicar este país sem considerar que o sistema escravocrata costurou com a linha e a agulha da colonialidade do poder as relações sociais travadas aqui.
Apenas em 2003, objetivando resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, a Lei 10.639/2003 tornou obrigatório, nas escolas públicas e particulares brasileiras, o ensino da História da África e dos africanos, o processo de resistência do negro à sua desumanização, e, principalmente, a contribuição do negro na formação da sociedade nacional.
Medida necessária, mas insuficiente. A história de negros e de negras continuará sendo escrita por brancos. Em pleno século XXI, apenas 7,7% de negros e de negras com idade superior a 18 anos se encontram nas universidades brasileiras (ALENCASTRO, 2014).
O DEM, ao afirmar que os quilombos se formaram durante a fase imperial da história do Brasil e se extinguiram em 13 de maio de 1888, procura deslegitimar toda produção literária que afirma que Dandara e Zumbi vivem, pois, os quilombos, como mecanismo de enfrentamento à desumanização de homens negros e de mulheres negras, continuam sendo erguidos cotidianamente.
A manifestação cultural do quilombo no rap, ao contrário das comunidades negras rurais, emerge no interior dos grupos juvenis que vivem nas metrópoles contemporâneas e aponta para o fenômeno da cultura na ordem mundial em sua intersecção local. Insere-se em uma dimensão urbana, contraditória, desagregadora e de escassez, aproximando São Paulo de outras metrópoles, como Lisboa, Paris ou Chicago, no que diz respeito à segregação espacial urbana. (CARRIL, 2009, p. 24).
Os quilombos são urbanos e rurais. Em uns, os quilombolas cultivam roças; em outros, cultivam músicas, danças e grafitam as cidades. O DEM se propõe a apagar ambos das ruas, das praças, dos bairros, das cidades, dos campos, tornando-os invisíveis, reafirmando a narrativa colonizadora que manda silenciar os tambores e o rap quilombola que denunciam a desumanização de negros e de negras, mas que, antes de tudo, propõem a pedagogia de luta (VARGAS, 2012).
Maldonado-Torres (2007) observa que a invisibilidade e a desumanização expressam a colonialidade do ser. “Acho que até então ela me olhava como aquela imperatriz da antiguidade, que se despia diante de seu escravo porque não o considerava como a um ser humano” (DOSTOIÉVSKI, 2014, p. 21).
A autodefinição anuncia a restauração de uma humanidade violada pela escravização e pela colonialidade do ser porque traz para o próprio indivíduo a possibilidade de pensar sobre sua existência e de cogitar sobre o seu ser. É que a colonialidade classifica os negros como uma raça inferior, incapazes de gerir os seus próprios destinos incertos da vida.
Segundo Rosa Weber, a autodefinição da comunidade como quilombola, obrigatoriamente, deve ser atestada por certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares. Esta entidade simboliza o conhecimento originário nas universidades, o único saber válido porque qualificado como científico. “La universidad es vista, no sólo como el lugar donde se produce el conocimiento que conduce al progresso moral o material de la sociedade, sino como el núcleo vigilante de esa legitimidade26” (CÁSTRO-GÓMEZ, 2007, p. 81).
Há, pois, um padrão cognitivo que não só nasce das universidades, mas que possui validade, porque é originário desse espaço acadêmico. É essa espécie de conhecimento que possui legitimidade para aferir a validade dos outros saberes, das outras falas e até dos desejos.
A colonialidade se exsurge, também, no controle sobre a autoridade e seus meios de coerção. Assim, a lei e a interpretação da lei devem atender aos anseios dos colonizadores. Por isso, a vontade do negro em atribuir-se como quilombola não pode ser objetivada em uma categoria jurídica que materialize direitos. Isso agride quem alimenta e quem se beneficia da colonialidade. O DEM protesta: “Em outras palavras, o texto regulamentar resume a rara característica de remanescente das comunidades quilombolas numa mera manifestação de vontade do interessado27”.
Do mesmo modo, pela lente da colonialidade do ser, os negros representam uma ameaça constante (MALDONADO-TORRES, 2007) à paz social que os brancos a todo custo procuram manter. É sob este olhar que é feita a leitura do artigo 68 do ADCT da CF/1988, e do Decreto 4.887/2003. É preciso ter paciência, serenidade na hora da titulação das terras quilombolas, coisa que os negros não tiveram na hora de influenciar os critérios estabelecidos no Decreto. É o que afirma indiretamente o ministro Dias Toffoli, trecho aqui já citado, ao afirmar que há insegurança jurídica em deixar em aberto a definição do território como quilombola, ou seja, deixar que quilombolas definam seus territórios na afirmação do ministro é produzir insegurança jurídica.
A estabilidade jurídica, mencionada pelo ministro do STF, foi construída a partir de um processo de segregação social. Para mantê-la, sacrificam-se mais ainda as necessidades de uma raça que, aparentemente, se acostumou a ser submetida à desumanização. A violência sofrida pelos negros não pode incomodar a paz dos brancos.
Em muitas das falas que se encontram na ADI 3239, quer-se ancorar a formação das comunidades quilombolas a uma resposta ao aprisionamento físico em que se encontravam os negros escravizados durante o Brasil Colônia e Imperial. Negam, dessa forma, que o processo de coisificação, de desumanização de negras e de negros ainda não se encerrou, tendo a colonialidade do saber e do ser seus principais catalisadores.
Esse pensamento guarda coerência com uma vasta produção acadêmica que, por exemplo, via o problema do ser escravizado pelas diferenças entre as culturas africanas e a europeia (MOURA, 2014). “A tônica foi sempre a mesma: o estudo de duas culturas, os seus níveis de convergência ou divergência, as posições antagônicas do seu mundo religioso, da sua culinária, dos seus gostos musicais, indumentária, linguagem, etc.” (MOURA, 2014, p. 35). Como em outros momentos, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser se entrecruzam.
O pensamento propagandeado é que a cultura africana é atrasada e rudimentar que colide com uma cultura europeia avançada, moderna e modernizante. Nada escapa à colonialidade: as feições negras, o cabelo dos negros, os santos dos negros são demonizados, suas danças consideradas exóticas, nas quais os negros se comportam como se fossem animais no cio. São considerados feios, fétidos, preguiçosos, indolentes. Os negros representam o atraso e são responsáveis pelo fato de o Brasil rico ser subdesenvolvido. A senzala foi edificada com artefatos do colonialismo e da colonialidade e as favelas são produzidas pela colonialidade do poder, do saber e do ser. E, do mesmo modo, são os acampamentos dos sem- terra, os manicômios e os presídios.
[...]
depois de dias e dias, partiu pro hipocampo o atum e a cor lilás fizeram-lhe o convite
no mundo objetivo não era um homem livre:
a hiperfiguração passou a ser seu canto (E., 2016, p. 241). [...]
Ser negro não é uma tarefa fácil. A colonialidade silenciosamente opera para que isto ocorra diariamente.