RESUMO: O presente trabalho visa, inicialmente, realizar uma breve digressão histórica da evolução da proteção do consumidor, ocupando-se dos principais marcos internacionais e, posteriormente, da proteção do consumidor no Brasil. Buscou-se constatar o reconhecimento, conforme o estabelecido no ordenamento jurídico pátrio, do status da proteção do consumidor como um direito fundamental social de segunda geração e da figura do consumidor como um sujeito de direitos que deve ser protegido devido à sua condição de vulnerabilidade, sendo esta uma presunção legal absoluta. Objetivou-se, por fim, a identificação desta proteção como um direito humano, decorrente da essencial necessidade humana de consumo.
Palavras-chave: Direito do Consumidor; Direitos Fundamentais; Direitos humanos; Dignidade da pessoa humana; Vulnerabilidade.
INTRODUÇÃO
A principal justificativa para a proteção conferida ao consumidor é a presunção absoluta de sua vulnerabilidade, que funciona como princípio básico norteador do Direito do Consumidor. Isso reflete a realidade desse sujeito na sociedade de consumo, que em razão de sua condição ou qualidade inerente de fraqueza na relação jurídica, ou, ainda, de uma posição de poder identificada na outra parte, é reconhecido como sujeito vulnerável (MIRAGEM, 2016).
Os direitos do consumidor são frutos de um longo processo evolutivo, podendo-se identificar uma preocupação com a proteção do consumidor, ainda que de maneira rústica, desde a antiguidade.
No presente artigo, foi realizada uma digressão histórica da evolução da proteção do consumidor. No plano internacional, o movimento consumerista evidenciou a preocupação com a defesa do consumidor, propiciando o surgimento de regramentos, entidades e a elaboração de diversos documentos internacionais de defesa do consumidor.
No ordenamento jurídico brasileiro, a proteção do consumidor foi primeiramente identificada como um direito fundamental social na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Em 1990, com a Lei 8.078/90, foi instituído o Código de Defesa do Consumidor (CDC), inaugurando o microssistema do Direito do Consumidor.
Concluiu-se com o reconhecimento da proteção do consumidor como um direito humano e a inerente condição de vulnerabilidade deste sujeito, nas diversas formas em que ela se manifesta.
1 Uma breve evolução histórica da proteção do consumidor
Desde os tempos primitivos, o homem extraía da natureza o necessário para o seu sustento. Os seus esforços eram despendidos na sobrevivência da espécie, buscando, além da proteção contra os predadores naturais e ambientes hostis, uma quantidade e qualidade cada vez superior de alimentos para amenizar os impactos da inanição e os demais perigos e obstáculos naturais (SILVA, 2013).
Na Antiguidade Clássica, os homens já tinham a tendência de consumir mais do que o necessário, gerando escassez para alguns, comportamento condenado por Aristóteles. Também houve preocupação com o acúmulo irrestrito de riquezas e a usura sob os empréstimos de pecúnia, como manifestado por Epicuro em sua Carta sobre a felicidade. Portanto, a preocupação com os vícios dos produtos e serviços sempre esteve presente, e exigir daquele que escambiava ou vendia um produto ou prestava um serviço foi tarefa que acompanhou todas as fases históricas da humanidade (SILVA, 2013, p. 28).
Para Norat (2011), ao analisar as relações de consumo na antiguidade, nota-se um equilíbrio decorrente da produção personalizada dos produtos, pela qual é dada ao consumidor a capacidade de barganha frente ao fornecedor.
Segundo Guglinski (2013), a proteção do consumidor teve seu início no antigo Egito, com a concorrência entre os fabricantes de maquiagem, como tintas e pós, muito utilizadas naquela civilização por questões estéticas, religiosas ou de saúde. A competição entre os comerciantes levava à busca em oferecer produtos de melhor qualidade, atendendo as exigências dos consumidores.
No Código de Hamurabi também havia regras que protegiam o consumidor, como aquelas presentes em seus artigos 229 e 233, pelas quais, respectivamente: se um pedreiro edificou uma casa para um homem, mas não a fortificou e a casa caiu e matou seu dono, esse pedreiro será morto (GUGLINSKI, 2013, n.p) e se um pedreiro construiu uma casa para um homem e não executou o trabalho adequadamente e o muro ruiu, esse pedreiro fortificará o muro às suas custas (GUGLINSKI, 2013, n.p).
A previsão do referido art. 229 já trazia a noção de responsabilidade objetiva, preocupando-se com a reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos oriundos de projetos, fabricação e construção (GUGLINSKI, 2013).
Em Roma, no período antigo até o clássico, os vendedores tinham a obrigação de assegurar a qualidade dos produtos. No período pós-clássico ou helênico-romano, embora não houvesse sistematização dos textos da época ou uma teoria geral dos contratos, frente ao interesse público, havia previsões sobre o cumprimento imperfeito da obrigação. No entanto, pelo Ius civile, imperava a irresponsabilidade do vendedor por vícios de qualidade da coisa, exceto quando houvesse comprovada conduta dolosa verificada por meio da dicta in mancipio (SILVA, 2013, p. 29).
A responsabilidade do vendedor foi estendida nas últimas décadas do direito romano, mas não abarcou os casos em que o vício era conhecido previamente pelo comprador ou quando, por ser aparente, deveria ter sido notado pelo adquirente (SILVA, 2013).
Entretanto, o instituto do vício redibitório sofreu um retrocesso durante a Idade Média, período marcado pela desigualdade social e exploração econômica. Houve, nos feudos, a instituição de governos com poderes limitados, que aspiravam à perpetuação de privilégios e dos abusos cometidos. A produção do feudo ficava por conta dos vassalos, destinando-se ao consumo interno, sem originar excedentes para venda externa. Foi somente com o advento do mercantilismo que a produção, então contida sob o domínio dos feudos, voltou a estar presente em diversos locais, revigorando a figura do consumidor (SILVA, 2013).
Com a desestruturação do sistema feudal e a ascensão do comércio, surge o capitalismo, sistema baseado na acumulação de capital que possibilitou o início da Revolução Industrial. Consequentemente, a negociação direta, feita entre o consumidor e o artesão, desaparece com a massificação da produção. O consumidor não é mais conhecido pelo produtor, que adquire o controle da negociação, colocando aquele em situação de vulnerabilidade (NORAT, 2011).
Nesse contexto, ocorreram os movimentos sociais que denunciavam os abusos sofridos pelos operários nas indústrias. De maneira a combater o desequilíbrio presente nessas relações, procedeu-se a luta pela criação de regramentos que visavam à proteção da parte vulnerável. Os interesses desses movimentos iam além da exigência por melhores condições de trabalho, pois apelavam pelo respeito à dignidade do ser humano. Esses ideais criaram um terreno fértil para o nascimento de um movimento consumerista (NORAT, 2011).
As sociedades de consumo operaram alterações profundas na forma em que os seres humanos tratam os bens de consumo e como o consumo se tornou um parâmetro para a expressão humana. Muito embora essa forma de sociedade industrial capitalista tenha o seu momento catalisador durante o século XVII, na Inglaterra, as primeiras entidades de defesa do consumidor foram criadas somente nos séculos XVIII e XIX. Acompanhando esse progresso, na segunda década do século XX foram criadas as primeiras leis de proteção ao consumidor (SIMÃO, 2016).
Em 1891 foi fundada a Consumer's League of New York City, atualmente denominada como Consumer's Union, instituto que busca a conscientização dos consumidores sobre os seus direitos, enquanto em 1960 foi estabelecida a International Organization of Consumers Unions (IOCU), um organismo internacional de proteção do consumidor reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) (NORAT, 2011).
Nessa esteira, o discurso realizado por John Fitzgerald Kennedy perante o Congresso Americano em 1962 foi um ponto crucial para o desenvolvimento do Direito do Consumidor. O trigésimo quinto Presidente dos Estados Unidos enalteceu os quatro direitos básicos do consumidor, futuramente denominados como Declaração de Direitos do Consumidor: o direito à segurança, o direito de informação, o direito de livre escolha e o direito de ser ouvido (SIMÃO, 2016). O impacto do discurso foi substancial para a efetivação destes direitos em esfera global, podendo ser identificados, inclusive, no artigo 6º da Lei n. 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor, em seus incisos I, II, III e VII (OLIVEIRA, 2016).
A repercussão do discurso pode ser atestada com consagração dos quatro direitos fundamentais do consumidor enunciados por Kennedy, em 1973, pela Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem, realizada um ano após a Conferência Mundial do Consumidor, em Estocolmo. Ainda no mesmo ano, a Assembleia Consultiva da Comunidade Europeia aprovou a Resolução 543, dando origem à Carta Europeia de Proteção ao Consumidor. Depois disso, foi dado início à elaboração e promulgação de leis de proteção aos direitos do consumidor em diversos países (MIRAGEM, 2016).
De acordo com Simão (2016), diferente dos Estados Unidos e da Europa, os países latinos não tiveram uma bem-sucedida experiência na tutela dos direitos e interesses dos consumidores. A inexistência de positivação dos diretos dos consumidores nesses países, cumulada com a ausência de um desenvolvimento gradual de entidades de proteção ao consumidor e uma enorme desigualdade social em um momento de prosperidade econômica, levou a Assembleia Geral das Nações Unidas a promulgar a Resolução 39/248 em 1985.
Por essa resolução foram estabelecidas as diretrizes gerais para proteção dos direitos do consumidor, levando em consideração as necessidades dos países em desenvolvimento, para que estes se orientassem ao legislar sobre a proteção do consumidor. Nesse contexto, a sistematização dos direitos dos consumidores passou a ser disciplinada em diversos países, inclusive no Brasil, alcançando reconhecimento no plano constitucional (SIMÃO, 2016).
Assim, é possível visualizar os primórdios da proteção do consumidor na Idade Antiga. Mas foi com movimento consumerista que despontou uma maior preocupação com a defesa do consumidor, o que levou ao surgimento de várias entidades de defesa do consumidor e regramentos que positivaram os seus direitos.
2 A proteção do consumidor no Brasil
No Brasil, a proteção do consumidor pode ser encontrada, mesmo que de maneira rústica, desde a época do Império. A título de exemplo, no Livro IV das Ordenações Filipinas podem ser encontradas previsões que condenam a usura, bem como permitiam desfazer a venda, tanto pelo comprador quanto pelo vendedor, se houvesse engano em mais da metade do justo preço (SPRÉA, 2015).
Além disso, a referida compilação jurídica condenava a falsificação de mercadorias, como pode ser conferido no seu título LVII, do livro V:
Se alguma pessoa falsificar alguma mercadoria, assi como cêra, ou outra qualquer, se a falsidade, que nella fizer, valer hum marco de prata, morra por isso. Porém, não contratando a dita mercadoria, a execução se não fará, sem nol-o fazerem saber. E se fòr de valia de hum marco para baixo, seja degradado para sempre para o Brazil (ALMEIDA, 1870, p. 1206).
Contudo, foi apenas com o governo de Getúlio Vargas que diversos direitos e garantias de natureza social foram elevados ao status de norma constitucional pela primeira vez, particularmente os direitos dos trabalhadores, com a segunda constituição republicana de 1934, que acompanhou os avanços presentes nas constituições do México e de Weimar (SIMÃO, 2016).
Essa Constituição trouxe, no Título II, Capítulo II, que tratava Dos Direitos e das Garantias Individuais, artigo 113, a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade (BRASIL, 1934). O Direito à subsistência, presente pela primeira vez no texto constitucional, evidenciou o caráter social da Constituição Federal de 1934, e o regulamento sistemático dos Direitos Sociais passou a ser uma constante em todas as constituições subsequentes (SIMÃO, 2016).
Segundo Spréa (2015), a preocupação com a tutela dos interesses do consumidor no Brasil somente aflorou na década de 1950, com um crescimento na década de 1970, e alcançou o seu ápice no final da década de 1980 e início dos anos 90. Mas, diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos e Europa, a reivindicação não partiu da sociedade, mas dos doutrinadores e legisladores constituintes.
Até então, o Direito do Consumidor era tutelado indiretamente em leis que não tinham o interesse precípuo em proteger as relações de consumo, como a Lei de Economia Popular (Lei 1.521/51) e a Lei de Repressão ao Abuso Econômico (Lei 4.137/62). Mas, nesse período, as leis efetivamente usadas para facilitar o acesso do consumidor ao Poder Judiciário foram a Lei do Juizado de Pequenas Causas (Lei 7.244/95) e a Lei de Ação Civil Pública (7.347/85), sendo que a última trata dos danos coletivos eventualmente causados contra os consumidores (SPRÉA, 2015).
Em sede constitucional, a defesa do consumidor foi finalmente reconhecida na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, XXXII. O constituinte brasileiro, ciente de que a positivação dos Direitos Humanos é necessária para garantir o seu pleno desenvolvimento, erigiu os direitos do consumidor ao patamar de direito fundamental, assim como determinou ao legislador que fosse elaborado um sistema que garantisse a proteção constitucional (ALEXY, 1995 apud MIRAGEM, 2016).
Dessa maneira, pelo disposto no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi concedido ao Congresso Nacional o prazo de 120 (cento e vinte) dias, contados da promulgação da CF, para elaborar um código de defesa do consumidor (BRASIL, 1988).
Sancionada em setembro de 1990, a Lei 8.078/90 instituiu o CDC, a fim de assegurar os direitos dos consumidores segundo o contexto da época, e também reavaliar o que já era delimitado no ordenamento jurídico (SPRÉA, 2015). Entrou em vigor em março de 1991 e foi comparado com legislações de países desenvolvidos, revelando um novo microssistema moderno que consagrou direitos e deveres inerentes às relações de consumo (MIRAGEM, 2016).
O referido autor ainda explica que, no nosso ordenamento jurídico, o Direito do Consumidor se encontra como uma espécie de microssistema, igualmente a outros sistemas da família jurídica romano-gêrmanica. Isso se deve à presença de diversas leis especiais autônomas que convivem harmonicamente entre si, sem que o Código Civil (CC) possua influência sobre o campo de aplicação desses novos estatutos (MIRAGEM, 2016).
A promulgação do CDC inaugurou o microssistema do Direito do Consumidor. A própria determinação para elaboração do código, presente no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, indica uma organização normativa sistemática, de regras e princípios, orientada para a finalidade constitucional de proteção do mais fraco na relação de consumo (MIRAGEM, 2016, p. 54).
O consumidor surge como um sujeito específico, titular de um direito subjetivo constitucional. A sua significação é feita a partir da identificação de uma realidade econômica e sua definição legal no CDC realizada com observância da CF, indicando um amplo âmbito de incidência da norma protetora, em dimensão individual, coletiva ou equiparada (MIRAGEM, 2016).
Dessarte, o consumidor deve ser protegido devido à sua condição de vulnerabilidade, sendo esta uma presunção legal, decorrente de um processo histórico que culminou com a criação do microssistema de proteção ao consumidor.
3 O direito fundamental de proteção do consumidor
A defesa do consumidor está prevista como um direito fundamental, assim indicado pela sua posição na Carta Magna, pois habita no Título II, "Dos direitos e garantias fundamentais", Capítulo I, "Dos direitos e deveres individuais e coletivos", art. 5º, XXXII: o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (BRASIL, 1988, n.p).
O reconhecimento da fundamentalidade desse direito no texto constitucional trata de uma inovação histórica que trouxe importantes consequências para a interpretação, compreensão e aplicação do Direito do Consumidor (SIMÃO, 2016).
Sua localização distinta, como asseverado pela doutrina e jurisprudência (MIRAGEM, 2016), impede que seja objeto de proposta de reforma constitucional, o que lhe confere a condição de cláusula pétrea, nos moldes do art. 60, § 4º, IV, da CF, pois não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (BRASIL, 1988, n.p). Porém, Simão (2016) atenta para o fato de que não há uma completa restrição a eventuais modificações no alcance dado à proteção ao consumidor, sejam estas feitas por interpretação constitucional ou pela reforma legislativa, mas tão somente o impedimento da extinção do direito assegurado constitucionalmente.
Por outro lado, importante notar, consoante à posição adotada por Sarlet (2012), que não é meramente a localização desses direitos que lhes confere a sua fundamentalidade. Para que assim sejam qualificados, devem preencher a fundamentalidade em um sentido formal e material.
A primeira condição está conectada à noção de um regime jurídico definido constitucionalmente, de maneira expressa ou implícita, no sentido de serem fundamentais os direitos reconhecidos como tais na CF.
Por essa perspectiva, pressupõe-se que: os direitos fundamentais se encontram no ápice do ordenamento jurídico, em posição de supremacia hierárquica; submetem-se aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional, embora se possa deliberar acerca dos limites da proteção conferida pelo constituinte; e são diretamente aplicáveis, vinculando imediatamente as entidades públicas e, com as devidas ressalvas, os sujeitos privados, na forma do art. 5°, § 1°, da CF (MARINONI; MITIDIERO; SARLET, 2012).
Já a segunda condição importa no conteúdo dos direitos, se estes possuem definições fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade, e especialmente com a posição que o homem ocupa em ambos.
A própria CF reconhece que uma acepção meramente formal de direito fundamental é insuficiente, vide o § 2°, do art. 5º, pelo qual não serão excluídos como direitos fundamentais aqueles decorrentes do regime e dos princípios adotados pela CF ou tratados internacionais que o Brasil faz parte (MARINONI; MITIDIERO; SARLET, 2012).
De acordo com Miragem (2016), o Direito do Consumidor é, antes de tudo, um direito exercido pelo seu titular para invocar a proteção do Estado contra a intervenção de terceiros, atribuindo-lhe direitos oponíveis aos entes privados, e em menor grau, ao próprio Estado.
A maneira pela qual a CF definiu que o Estado deveria promover a proteção do consumidor foi através da atividade do legislador ordinário, pelo art. 5º, XXXII. Desta forma, proíbe-se não somente o excesso, mas também a omissão estatal. O Poder Público deve agir, atuando positivamente para realizar os direitos fundamentais e nesse panorama o Estado não mais se encontra na posição de adversário, mas como garantidor de direitos (MIRAGEM, 2016).
A proteção do consumidor foi consagrada no artigo 1º do CDC. Segundo a redação, o presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da CF e art. 48 de suas Disposições Transitórias (BRASIL, 1990, n.p).
Pelo art. 170 da CF, a proteção do consumidor também é um fundamento da ordem econômica brasileira. A defesa do consumidor deve ser interpretada frente aos demais incisos do artigo sem discriminação hierárquica, sob pena de incorrer em uma aparente contradição principiológica que pode afetar negativamente o livre exercício da atividade econômica, comprometendo ou mesmo inviabilizando-a (SIMÃO, 2016).
Neves e Tartuce (2012) entendem que a previsão constante no art. 1º do CDC estabelece o princípio do protecionismo do consumidor, do qual os demais princípios de proteção do consumidor decorrem.
A partir desse princípio, verificam-se algumas consequências práticas: as regras presentes no CDC não podem ser afastadas por convenção das partes, sob pena de nulidade absoluta; caberá sempre a intervenção do Ministério Público (MP) em questões que envolvem problemas de consumo; e toda proteção constante na Lei deverá ser conhecida de ofício pelo juiz, hipótese de nulidade de eventual cláusula abusiva (NEVES; TARTUCE, 2012).
Ao determinar uma proteção específica ao consumidor, com prerrogativas concedidas no campo negocial, o que se visa é a equalização de uma relação fática desigual marcada por uma distinção de poder econômico ou pelo conhecimento técnico entre os atores (MIRAGEM, 2016).
Isto posto, pode-se identificar o Direito do Consumidor como um direito social. Na concepção de Bonavides (2015), os direitos fundamentais da segunda geração são os direitos sociais, culturais, econômicos e coletivos. Tiveram proeminência no século XX, com origem na doutrina antiliberal, e estão ligados ao princípio da igualdade.
A CF prevê, no Título II, Capítulo II, um rol de Direitos Sociais. São elencados como tais, em seu artigo 6º, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (BRASIL, 1988). Cumpre ressaltar que o rol não é exaustivo, contendo apenas os direitos fundamentais sociais básicos, o que permite encontrar outros Direitos Sociais dispersos no texto constitucional (MARINONI; MITIDIERO; SARLET, 2012).
Conforme ensinamento de Silva (2014, p. 288-289), os Direitos Sociais pertencem à dimensão dos direitos fundamentais do homem, e podem ser compreendidos como prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. Eles produzem condições favoráveis para alcançar a igualdade material, constituindo pressupostos para a satisfação dos direitos individuais. Assim, tendo em conta a o desequilíbrio presente nas relações de consumo, é seguro dizer que o Direito do Consumidor é um direito social.
Admitido o Direito do Consumidor como um direito fundamental social de segunda geração, ainda é possível lhe conferir o status de direito humano. Destarte, se por um lado os direitos fundamentais são aqueles reconhecidos como tais pelo direito vigente, os direitos do homem são apontados como uma série de direitos inatos declarados em documentos internacionais, como a célebre Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, independentemente de qualquer vinculação com alguma ordem constitucional (MIRAGEM, 2016). Logo, eles aspiram à validade universal, possuindo caráter supranacional e universal (MARINONI; MITIDIERO; SARLET, 2012).
Os direitos fundamentais sempre serão direitos humanos, porque trazem o pressuposto de que a titularidade seja exercida por uma pessoa humana, mesmo que representado por algum ente coletivo. Nesse quadro, o princípio da dignidade da pessoa humana surge como fundamento central para a legitimidade dos direitos humanos e, igualmente, para os direitos sociais, econômicos e culturais da CF (MIRAGEM, 2016), guiando e justificando o surgimento de dispositivos legais de proteção do consumidor, como o CDC (NEVES; TARTUCE, 2012).
Declarar o consumidor como um novo sujeito de direitos implica no reconhecimento de sua posição jurídica numa relação de consumo e a necessidade de proteger o vulnerável. É essencial notar que todos os sujeitos são, em algum tempo ou circunstância, consumidores e, por isso, caracterizar os direitos do consumidor como direitos humanos demonstra o reconhecimento jurídico da necessidade do consumo como uma necessidade humana essencial (MIRAGEM, 2016).
A vulnerabilidade do consumidor é o princípio básico que fundamenta o Direito do Consumidor (MIRAGEM, 2016). Está previsto no CDC, em seu artigo 4º, I, com o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, e no segundo inciso do mesmo dispositivo, a necessidade de ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor (BRASIL, 1990, n.p).
Por esse princípio, o consumidor sempre estará em condição de vulnerabilidade em todas as relações jurídicas de consumo, refletindo a realidade em que esse sujeito se encontra na sociedade de consumo (NEVES; TARTUCE, 2012). Traz uma noção associada à fraqueza de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de sua condição ou qualidade inerente, ou, ainda, de uma posição de poder identificada na outra parte. É uma presunção absoluta, que jamais aceita declinação ou prova em contrário, informando se e como as normas do Direito do Consumidor devem ser aplicadas (MIRAGEM, 2016).
A vulnerabilidade não se confunde com hipossuficiência. Ambas expressões são usadas no CDC, mas enquanto a primeira diz respeito a condição inata do sujeito que adquire produto ou serviço como destinatário final, a segunda serve de critério para a decisão sobre a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (MIRAGEM, 2016).
Nesse sentido, o art. 6º, VIII, do CDC, refere como direito básico do consumidor "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências" (BRASIL, 1990, n.p).
Quanto à impossibilidade de realizar a prova no processo, Miragem (2016) defende que não se deve restringir à falta de meios econômicos que possibilitem a produção da prova, mas também pela falta de meios para obtê-la.
O autor também identifica, usando da terminologia de Claudia Lima Marques, quatro espécies de vulnerabilidade.
A primeira delas é a vulnerabilidade técnica, detectada quando o consumidor não possui conhecimento especializado sobre o produto ou serviço adquirido, presumida especialmente quanto ao consumidor não profissional. Há também a vulnerabilidade jurídica, em respeito da falta de conhecimento do consumidor acerca dos direitos e deveres relativos à relação jurídica, bem como da ausência de compreensão sobre as consequências jurídicas dos contratos que celebra (MIRAGEM, 2016).
A vulnerabilidade fática, que é mais ampla, abarca as diversas situações de fragilidade do consumidor, como aquelas decorrentes de fatores econômicos ou das qualidades do sujeito no caso concreto (quando este for idoso, criança, doente, etc.), caso de vulnerabilidade agravada ou hipervulnerabilidade. E, como sua subespécie, a vulnerabilidade informacional, em razão de que a influência proporcionada pela comunicação e publicidade, assim como o acesso às informações do produto, dificulta que o consumidor ateste a veracidade dos dados, tornando-se suscetível ao marketing feito pelos fornecedores (MIRAGEM, 2016).
Ressalta-se ainda que, no caso de ofensa às normas de consumo, conforme estabelecido no CDC, art. 7º, parágrafo único, todos os autores deverão responder solidariamente pela reparação dos danos (BRASIL, 1990). Essa é a regra geral para todos os fornecedores que participaram da cadeia de fornecimento do serviço ou produto perante o consumidor (NEVES; TARTUCE, 2012).
Portanto, a proteção do consumidor, fruto de um longo processo histórico, tem hoje uma posição de destaque no nosso ordenamento jurídico. Ela parte da presunção de vulnerabilidade do consumidor, em suas diversas matizes, e alcança o patamar de direito fundamental pertencente à dimensão dos direitos sociais. Ademais, pode ser identificado como um direito humano, dada a recognição jurídica da necessidade essencial de consumo e aspiração à universalidade da defesa do consumidor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi verificado que a proteção do consumidor é produto de um processo histórico que remete, de maneira rudimentar, à Antiguidade, mas que despontou graças ao movimento consumerista, com o advento de várias entidades de defesa do consumidor e regramentos que positivaram os seus direitos.
Ao explorar a legislação histórica brasileira, vislumbrou-se o processo que levou à criação do microssistema do direito do consumidor. Por este, o consumidor se apresenta como sujeito de direitos que deve ser protegido devido à sua condição de vulnerabilidade, que ocupa a categoria de presunção legal absoluta.
Diante disso, permitiu-se atestar o reconhecimento da proteção do consumidor como um direito fundamental de segunda geração. Assim como a sua identificação como direito humano, considerando o caráter universal dessa defesa, reconhecido em documentos internacionais, e o caráter essencial da necessidade humana de consumo, que é protegida juridicamente.
O status de direito fundamental, conferido à proteção do consumidor, denota a sua posição de superioridade hierárquica no ordenamento jurídico, sendo inegável a necessidade de uma prestação positiva do Estado para assegurá-la, pois incontestável a sua natureza de Direto Social. Além disso, na categoria de direito humano, ela é elevada ao patamar pertencente aos direitos inatos ao homem. Ao tratar da defesa do consumidor, em verdade, procura-se tutelar a dignidade da pessoa humana, na sua qualidade de consumidor e considerando a sua necessidade essencial de consumo.
REFERÊNCIAS
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