4. O problema da linguagem jurídica
Um dos grandes problemas na publicação de material relacionado ao mundo jurídico diz respeito à peculiaridade da linguagem, ininteligível para aqueles que não têm familiaridade com a área. Dificilmente um cidadão comum se disporia a ler a íntegra de leis, decretos ou atos administrativos. Ao apresentar uma linguagem difícil de decifrar, esse tipo de leitura se tornava desinteressante para o público "leigo". Os redatores, profissionais da área (juízes, promotores, advogados), não viam a necessidade de traduzi-la, porque, num círculo fechado, a publicação era direcionada aos especialistas. É bem verdade que no jornalismo do início do século XX sequer havia cursos de graduação em Jornalismo, encontrando-se com freqüência nas redações advogados e escritores.
Com a especialização profissional e o desenvolvimento da imprensa generalista num sistema de produção cada vez mais industrial, coube, então, aos jornalistas, tentar decifrar essa linguagem para o público em geral.
O profissional do jornalismo deveria servir como mediador entre a linguagem jurídica e o público leitor que pretendia atingir: os leigos. Essa mediação pretendia dar uma informação completa ao leitor acerca daquele assunto ou chamar sua atenção para um campo importantíssimo da informação (o jurídico), que necessariamente deveria ser explorado.
Embora não seja o foco deste trabalho (que é o de proceder a uma análise qualitativa de matérias do jornal Folha de S. Paulo), a análise de discurso serve ao tema na obra "Comunicação e Discurso", de Milton José Pinto. O autor usa um exemplo da linguagem jurídica ao comentar uma forma de mediação que chama de "prática social de produção de textos", que "força o texto resultante a ter determinadas características formais e conteudísticas, mais ou menos rígidas, conforme o grau de ritualização do processo comunicacional" (Pinto, 2002: 51). Segue o exemplo apresentado por ele:
Se uma petição em juízo, por exemplo, não for feita de acordo com as normas e convenções estabelecidas quanto às fórmulas a serem empregadas (relativas a gramática, vocabulário, formas de tratamento, organização textual, dialeto padrão, registro formal), o juiz poderá rejeitá-la com um despacho de "Volte em termos!", prejudicando o peticionário. (...)
Muito embora sejamos obrigados a seguir essas práticas discursivas para nos enquadrarmos nas convenções do gênero de discursos em cada ritual de comunicação, é preciso atentar para o fato de que, em certas situações, pressionados por mudanças nas representações, relações ou identidades sociais vigentes, nós as transformamos criativamente, mesmo que não tenhamos plena consciência disso, podendo mudar o gênero e o ritual. (Pinto, 2002: 51-52)
Essa transformação criativa é lembrada por Nilson Lage quando diz que "a produção de textos pressupõe restrições do código lingüístico. A redução do número de itens léxicos (palavras, expressões) e de regras operacionais postas em jogo não apenas facilita o trabalho, mas também permite o controle de qualidade". No caso do jornalismo, explica Lage:
Isto pode ser conseguido de várias maneiras. Requerimentos e cartas comerciais são exemplos de textos que suprimiram variações significativas através de fórmulas congeladas que, com o tempo, chegam a se diferenciar da língua corrente, como rituais em cujo sentido ninguém presta atenção. Para impedir que isso ocorra com o texto jornalístico, ele precisa ser submetido constantemente à crítica, que remove o entulho e repõe vida nas palavras. Uma atividade crítica que, se aplicada nos cartórios, substituiria "Venho, pelo presente, solicitar a V. S.ª..." por "Peço-lhe"; e consideraria insensato escrever "Nestes termos, peço deferimento", por absoluta impossibilidade de alguém não querer o deferimento do que requer, ou pretender o deferimento em outros termos que não os seus.
Portanto, o texto jornalístico procura conter informação conceitual, o que significa suprimir usos lingüísticos pobres de valores referenciais, como as frases feitas da linguagem cartorária. Sua descrição não se pode limitar ao fornecimento de fórmulas rígidas, porque elas não dão conta da variedade de situações encontradas no mundo objetivo e tendem a envelhecer rapidamente. (Lage, 2001: 35-36)
Essas considerações indicam bem o papel do jornalista na redação de um texto noticioso que envolva temas do mundo jurídico. Nesse universo, há como fator complicador o fato de que o jornalista trabalha com versões judiciais muitas vezes voláteis, efêmeras, que freqüentemente são combatidas pela parte vencida, ou pelos outros atores judiciais, como juízes, promotores ou advogados. De posse dos dados levantados a partir da investigação do jornalista, ele procura traduzir as informações codificadas na linguagem jurídica – acessível apenas para aqueles que trabalham na área – para uma linguagem inteligível para o cidadão comum representado pelo leitor ideal do jornal generalista. Junto a isso, caminha o compromisso do jornalista com a verdade, a isenção e os demais princípios que cercam a profissão.
5. A linha tênue que separa o trabalho do jornalista da "desinformação"
"Uma informação só faz sentido quando necessariamente se harmoniza com uma referência anterior do leitor" (Serva, 2001: 49). Talvez essa frase, cunhada por Leão Serva, indique precisamente a função do jornalista na elaboração de matérias com caráter especializado, quaisquer que sejam elas. Porém, o autor vai mais adiante, explicando que essa referência deve ser buscada no caos em que se encontra a informação, para, somente então, harmonizada com a notícia, ser veiculada na imprensa:
Ao mesmo tempo em que tira do caos a sua matéria-prima, a imprensa procura organizá-lo, ordená-lo, dispor as notícias que emergem do acaso em um plano organizado, hierarquizado, categorizado: o caos se harmoniza, se "civiliza" nas páginas de jornal ou no noticiário do rádio, da TV, da Internet ou de qualquer meio que se preste à informação. A isso se chama "edição", a organização das informações conforme as regras do meio e do veículo específico e conforme a lógica do grupo incumbido do trabalho de editar, a compreensão que ele tem dos fatos e o que ele supõe ser o interesse e a capacidade de entendimento de seu receptor. Essas regras e o procedimento de organização das notícias no espaço do jornal são o roteiro de uma ação que pretende DETER os fatos, obter sua essência, conhecer e explicá-los, ou ao menos explicá-los (Serva, 2001: 55).
Trata-se da idéia central que deve nortear a ação do jornalista quando tenta abordar e discorrer sobre qualquer assunto de interesse especial. O profissional deve ter, ao mesmo tempo, a capacidade de surpreender e de se fazer entender em seu texto, já que "o objetivo do trabalho jornalístico de edição é apresentar um cardápio inteligível de notícias ocorridas em tempo recente, permitindo ao leitor compreender o que ocorre em seu mundo" (Serva, 2001: 60).
Entretanto, não é isso o que acontece, inúmeras vezes, com o jornalismo jurídico. Faltam explicações acerca do porquê de uma decisão judicial, do histórico dos fatos, dos argumentos debatidos, do pensamento jurídico dominante no país ou no Exterior acerca de determinado fato. Falta a contextualização da notícia para que o leitor, frente a ela, possa julgar, pelas informações que recebeu, de que maneira aquela notícia interfere ou interferiria em sua vida e na vida de sua comunidade. Isso acontece devido à "incapacidade dos jornais de entregar ao leitor a compreensão da notícia" (Serva, 2001: 60). Serva encontra a justificativa no texto "ABC da Bósnia" (publicado no começo da guerra civil da Bósnia-Herzegovina), de Lauwrence Norfolk, que pesquisou jornais antigos para fazer um paralelo entre notícias de épocas diferentes:
Seu texto [de Norfolk] aponta um limite claro do trabalho jornalístico. Ao processar as notícias em função de sua capacidade de surpreender, os jornais deixam de buscar em primeiro lugar uma compreensão genuína dos acontecimentos – que poderia tirar a surpresa do leitor diante do fato. É como dizer: se os leitores entenderem a notícia, seus antecedentes, seu contexto e sua repercussão, não vão se surpreender com ela, não vão dar valor ao noticiário. E quem sabe no dia seguinte não "renovarão a eleição" do veículo, entendida pelo ato de compra repetido diariamente. (...)
Ao contrário, a dificuldade de entendimento que muitos leitores revelam mostra que o jornalismo não organiza de fato o caos. Embora procure ser um espelho organizado e classificado do mundo, a imprensa, por seu sistema essencial de produção, mantém e, mais ainda, gera confusões na cabeça de leitores. Afinal, se dois barcos afundam em locais do mundo distantes entre si como Londres ou Filipinas, o procedimento jornalístico em um jornal de qualquer país que não seja Grã-Bretanha ou Filipinas deverá ser, muito provavelmente, o de editar as duas notícias juntas. Mesmo que um país esteja no extremo oposto do mundo em relação ao outro; mesmo que um fato seja um atentado terrorista de um grupo autonomista e o outro, um acidente, por exemplo. O leitor vai aprender um pedaço apenas do significado da notícia, provavelmente, no caso citado, que dois barcos afundaram. Ele não será plenamente informado de todo o resto, mas isso não ocorrerá por despreparo ou inexperiência, mas porque a justaposição, a edição mesma da notícia, se pauta por critérios jornalísticos, que não são os da história, da natureza, da razão intelectual ou de qualquer outra forma de pensar o mundo. (Serva, 2001: 60-61)
Percebe-se, então, um exemplo claro de como o jornalismo, mesmo em assuntos não específicos, pode contribuir para desinformar, para usar a expressão de Leão Serva. Isso mostra também que, caso o profissional não conheça, não procure descobrir ou saber, não esmiúce ele próprio as informações que tem nas mãos, dificilmente terá condições de transmiti-la de maneira clara para o leitor. Dessa forma, poderá acabar induzindo "à incompreensão dos fatos que narra" (Serva, 2001: 61).
Esse é o risco que corre o jornalista na elaboração de uma matéria noticiosa. E é o que muitas vezes acontece.
6. Erros de transmissão em notícias
O erro jornalístico, diretamente ligado à qualidade do jornal, revista ou qualquer outro meio impresso, não é incomum e é muitas vezes, além de um problema técnico, um problema ético, ligado à honestidade das informações veiculadas, à clareza e ao respeito com que os veículos de comunicação tratam seus leitores. É o que defende Rogério Christofoletti, que cita um levantamento feito pelo website Monitor de Mídia em 17 de setembro de 2001, com os três jornais mais importantes de Santa Catarina (Jornal de Santa Catarina, A Notícia e Diário Catarinense), que conclui que as retificações de erros feitas nesses diários são "escassas, invisíveis e insuficientes (Cristofoletti, 2005: 2)". Segundo a pesquisa, nos diários citados, "as seções destinadas à reparação dos erros ocupam pouco espaço, na maioria das vezes não têm a visibilidade necessária, e em outras tantas, causam novos equívocos" (Cristofoletti, 2005: 2). Christofoletti informa ainda:
De acordo com estudo, as correções haviam sido feitas em apenas 30% das 191 edições analisadas, de janeiro a março daquele ano. Isto é, a cada dez dias, três retificações eram feitas, o que dá a entender que nos demais dias, não houve erros a retificar. Tal constatação cai por terra quando se vê que foram consideradas as seções dos próprios jornais, que deveriam apontar as falhas internas. Os jornais podem muito bem ter errado, mas não identificado tais deslizes. E se isso se verifica de fato, o problema é ainda maior: o jornalismo pecou pela incorreção e pela falta de transparência de seus procedimentos. Não só errou como também errou ao não confessar o próprio erro (Cristofoletti, 2005: 2-3).
Se os erros se dão de maneira costumeira nos jornais, quando se foca uma determinada especialidade, a incidência de erro tende a ser maior. Isso acontece com a especialidade jurídica, graças também ao número enorme de leis e alterações de normas legais no Brasil, que estão em constante mudança. Isso obriga o jornalista a buscar recursos técnicos que supram a ausência de formação acadêmica específica no assunto e que, ao mesmo tempo, permitam-lhe compreender os meandros do sistema jurídico brasileiro, para que, a partir daí, possa transmitir a informação de maneira eficaz e responsável.
Essa busca, porém, deve ser cuidadosa e estratégica. Em geral, são sugeridos ao profissional procedimentos que, na verdade, são próprios de todo e qualquer jornalismo. Desde ir para a entrevista munido de informações básicas sobre o assunto específico, ter em mãos dados sobre a autoridade judicial e os envolvidos que serão as fontes, até a velha e prudente atitude de humildade. Depois da apuração, na fase de elaboração do texto, as mesmas exigências quanto à concisão, precisão, simplicidade e correção gramatical. Assim como acontece em outras áreas do conhecimento, na especificidade das matérias ligadas a tema jurídico, o profissional deve ter em mente que está produzindo algo de interesse da sociedade.
Na empreitada de falar de assuntos jurídicos para o público leigo, pode-se trazer à tona um curioso conselho de Einstein, lembrado pelo físico brasileiro Roberto Salmeron (tratando, no caso, da divulgação de tema científico), citado por Alexandre Greco: "‘Quando a gente quer fazer divulgação científica, deve-se sempre contar a verdade, mas não demais’. Isso significa que tem de escrever corretamente, mas se você quiser entrar em detalhes demais, aí o leitor fica perdido" (Salmeron apud Greco, 2001: 157).
Percebe-se, então, que a escrita clara e objetiva não pode cair na extrema especialização do jornalista, sob pena de, com o tempo, ele estar escrevendo tal como os próprios atores jurídicos, tornando-se ininteligível para o leitor comum. O desafio, portanto, é o jornalista levantar adequadamente os dados e conseguir traduzi-los numa linguagem acessível ao leitor.
7. Cenário noticioso do dia analisado
O tema dominante na edição da Folha de S. Paulo analisada (do dia 14 de maio de 2006) foram as ações da organização criminosa conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC), iniciadas em 12 de maio de 2006, com uma onda de ataques no estado de São Paulo. O conflito se deu porque vários presos obtiveram autorização judicial para visitar as mães no Dia das Mães, e, de maneira organizada, os presos que não obtiveram a autorização (em tese, os mais perigosos) comandaram os que saíram para agir em conjunto.
O número de mortos nos ataques ocorridos no episódio superou em números as baixas em conflitos no Iraque e no Afeganistão noticiados no mesmo período. Houve ataques contra ônibus, casas de policiais, bancos e estações de metrô, num total de 293 ocorrências em todo o estado. Morreram 152 pessoas, das quais: 107 supostos criminosos, 41 policiais ou agentes de segurança e quatro civis. Os dados eram da Secretaria de Segurança Pública, segundo boletim divulgado no dia 18 daquele mês e a informação que constou na Folha de S. Paulo.
Além desse fato, outros temas mereceram tratamento por parte do jornal, principalmente questões envolvendo problemas nacionais: definição de candidatos à disputa eleitoral de outubro de 2006, denúncias envolvendo o Governo Federal ou ex-políticos, dificuldades no relacionamento comercial entre Brasil e Bolívia, riscos ambientais e alterações trabalhistas, entre outros.
A análise de todas as matérias demandaria um estudo excessivamente extenso, razão pela qual o presente trabalho analisa somente algumas dessas matérias, apresentadas a seguir na ordem em que foram publicadas no jornal.
Embora tenha sido utilizada neste trabalho a versão impressa da Folha de S. Paulo, estão indicadas as matérias correspondentes na versão on line do periódico, para facilidade de consulta. Alerta-se, entretanto, que pode haver diferenças entre as duas versões.
7.1. Do que trata a decisão judicial?
A primeira matéria (disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1405200602.htm) trata do anseio do ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, em candidatar-se a presidente da República nas eleições de outubro de 2006 e de sua briga com os integrantes do próprio partido político (PMDB). O título da matéria é: "Ala governista vence e PMDB não concorrerá à Presidência". O sobretítulo informa: "Por 351 votos, partido desiste da candidatura; resultado deve ser contestado". Depois, a reportagem conta que o ex-governador havia conseguido uma medida liminar na Justiça, anulando provisoriamente o resultado da convenção nacional extraordinária do partido, mas não impedindo a realização do ato. A decisão do partido era não ter candidato próprio à presidência da República.
Os trechos que se referem à questão jurídica eram os seguintes:
"Mesmo sob ameaça de contestação na Justiça, o PMDB oficializou ontem em uma convenção nacional extraordinária a decisão de não ter candidato próprio a presidente da República nas eleições de outubro. A tese que derruba a possibilidade de indicação de Anthony Garotinho para concorrer ao Palácio do Planalto foi aprovada por 351 votos a 303. Houve ainda dois votos em branco e um nulo – total de 657 votos. (...)
Ontem, minutos antes da chegada de Garotinho à convenção, apoiadores do ex-governador do Rio de Janeiro comemoravam a concessão de uma medida liminar (decisão judicial provisória) que anulava provisoriamente os resultados do encontro.
Como a liminar não impediu a realização da convenção, seus efeitos eram limitados."
Nada mais é informado acerca da questão jurídica. A matéria se atém à transcrição das divergências internas do partido, citando falas dos envolvidos, mas sem explicar, afinal, o que teria originado a ação judicial, quais os fundamentos da decisão, qual o seu alcance, o que aconteceria se houvesse a reversão da medida ou se o ex-governador a contestasse na Justiça etc. Esses são apenas alguns dos questionamentos que o leitor pode fazer no momento em que recebe a informação. Nada é explicado acerca da questão jurídica, embora esta seja levantada na matéria.
Ao informar o leitor que mesmo com a medida liminar judicial deferida em favor do ex-governador, anulando os resultados do encontro, o PMDB havia oficializado decisão contrária, o jornal não responde, por exemplo, qual o alcance dessa decisão judicial. Sugere que o ato da convenção partidária foi superior ao da Justiça. A frase "mesmo sob ameaça de contestação" nada esclarece. Não se explica o que, exatamente, quer dizer a expressão "ameaça de contestação da Justiça".
Na linguagem jurídica, contestação quer dizer defesa (veja-se, por exemplo, o artigo 297 do Código de Processo Civil) ou oposição ao que é alegado. Porém, no texto analisado, se o ex-governador já teria conseguido uma decisão favorável a ele na Justiça, como o PMDB sofreria "ameaça de uma contestação"? Afinal, a decisão judicial já havia sido dada, e se houvesse alguma hipótese de contestação seria por parte do próprio partido.
Embora o texto informe que os efeitos da decisão eram limitados e que por isso a convenção partidária foi realizada, em nenhum momento explica quais seriam esses "efeitos limitados". A dúvida permanece: o que permitia ou não a decisão judicial em relação à convenção partidária? O que o ex-governador realmente teve a seu favor? Por que o resultado da convenção poderia estar ameaçado com a decisão judicial? Enfim, são questões de simples formulação (e resposta), mas que não foram feitas na primeira matéria escolhida para análise.
Cabe aqui lembrar as palavras de Alberto Dines, tratando das características do jornalista:
Pejorativamente, diz-se que o jornalista é um cavador. Diríamos melhor que o jornalista é um permanente buscador. Jornalista conformado não é jornalista. O profissional de imprensa, pessimista ou cínico prejulga, não acredita no que pode acontecer, pois já sabe o que vai acontecer. Quem não acredita na notícia não a persegue e não a encontra.
Há um componente otimista dentro da profissão que a torna vulnerável às tendências, aguça sua percepção, espicaça sua criatividade. Essa inquietação gera ou é gerada por uma permanente sensibilização. Qualquer anormalidade deve ser percebida, seguida, desvendada. O jornalista é o profissional da indagação, do questionamento. (Dines, 1986: 120)
Em relação à primeira matéria escolhida para análise, com base no que ensina Dines, pode-se dizer que faltou essa busca pela informação por parte do jornalista que a redigiu.
7.2. Querer é poder? Na Justiça, não!
Na segunda matéria escolhida ("Governo vai processar Dantas, diz Tarso", disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1405200609.htm), do mesmo caderno, (p. A-8), o jornal ocupou a página inteira para noticiar que o governo iria processar Daniel Dantas, proprietário do Banco Opportunity, e que suas empresas mantiveram contratos com a Gamecorp (que tem por sócios um dos filhos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e um advogado ligado ao ex-ministro José Dirceu). Num box, há uma notícia acerca do indiciamento do banqueiro, pedido pela CPI dos Correios, sob as acusações de tráfico de influência, sonegação fiscal e corrupção ativa por seus vínculos com o publicitário Marcos Valério de Souza, um dos pivôs da crise do governo que ficou conhecida como "Crise do Mensalão". O texto informa:
"O ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, informou ontem que o governo brasileiro entrará com uma ação judicial contra Daniel Dantas, proprietário do Banco Opportunity. A decisão foi tomada em reação a uma reportagem publicada pela revista ‘Veja’, baseada em informações fornecidas por Dantas, que relata a possibilidade da existência de contas de cardeais petistas em paraísos fiscais."
Aqui, a primeira questão que nasce é a de que, segundo a alínea "a" do inciso XXXV art. 5º da Constituição Federal, "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Por essa regra, entende-se que qualquer cidadão, com razão ou não, pode invocar o Poder Judiciário para que emita uma decisão acerca de um questionamento judicial. Isso não significa, obviamente, que, pelo fato de uma pessoa propor uma ação contra outra, teria, automaticamente, razão naquilo que pede. É tarefa do juiz decidir.
Por isso, o título é tendencioso e impreciso. A afirmação, sem a devida explicação ou contextualização, transmite a idéia de que o proprietário do Banco Opportunity é culpado. Não há como deduzir idéia contrária, já que, depois da manchete e da introdução no mesmo sentido, o jornal insere no texto vários fatos que buscam dar sustentação à assertiva. Em nenhum outro momento, porém, explica qual poderia ser a ação judicial pretendida pelo governo, em que hipóteses isso poderia acontecer ou qual sua probabilidade de sucesso. A matéria induz, portanto, o leitor a acreditar que Dantas é culpado.
Na outra matéria da mesma página ("Tele contratou pessoas ligadas ao PT", disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1405200611.htm), que trata das empresas do banqueiro, supostamente ligadas a pessoas do Partido dos Trabalhadores, há apenas uma menção ao fato de que ele havia sofrido uma ação da polícia, determinada pela Justiça:
"Posteriormente, foi acertado um segundo contrato, negociado diretamente com Dantas, no dia em que houve uma operação de busca e apreensão na casa do banqueiro. Segundo o advogado, esse serviço foi contratado às pressas – por isso, diz, não acredita que tenha sido chamado numa operação de cerco aos petistas."
A partir daí, o jornalista "encaixa" no texto as versões das partes envolvidas no problema e encerra a matéria sem explicar por que o banqueiro sofreu a ação de busca e apreensão quando assinava o segundo contrato, quais os efeitos (legais e práticos) disso e qual seria a possível conseqüência jurídica por ele ter sido indiciado pela CPI dos Correios. A ação de busca e apreensão pode se dar por diversos motivos e em relação a várias coisas, como se extrai dos artigos 839 a 843 e 461, § 5º, do Código de Processo Civil.
Portanto, a notícia sobre o fato de ter sido feita uma "operação de busca e apreensão" na casa do empresário, no dia em que ele estava assinando o segundo contrato mencionado na reportagem, não somente omite informações fundamentais como também gera uma série de dúvidas: do que se trataria essa medida de busca e apreensão? O que a teria motivado? A ação foi proposta somente contra o empresário? Qual foi a motivação judicial?
Na verdade, nessa última matéria, o que se vê é uma informação adicional à de que houve a assinatura de um segundo contrato pelo empresário. Uma marca temporal na tentativa de informar quando aconteceu a assinatura. Porém, por se tratar de uma frase carregada de significado jurídico e por ter sido encaixada no texto de maneira desconexa, fez com que ocorresse uma "desinformação" por omissão.
7.3. Exoneração do cargo público e prisão preventiva: como?
Na terceira matéria ("Assessora admite ter contato com suspeitos", disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1405200618.htm, com o título "Assessora do PP admite ter contato com suspeitos"), do mesmo caderno (p. A-11), o jornal noticia o envolvimento da assessora do deputado Reginaldo Germano, Suelene Almeida Bezerra, com acusados de liderar uma quadrilha de fraudes na compra de ambulâncias. O esquema ficou conhecido como "Máfia dos Sanguessugas": congressistas teriam apresentado emendas ao Orçamento da União para compra de ambulâncias superfaturadas. O primeiro trecho da matéria envolvendo questão jurídica foi colocado depois da transcrição da fala do advogado da assessora, que diz que ela agia a pedido do deputado: "De acordo com ele, a assessora ainda não foi exonerada do cargo, mas ‘a corda arrebentou do lado mais fraco’."
Mais adiante, a matéria explica:
"Suelene foi presa há dez dias, assim como outros 50 acusados de pertencer à quadrilha. O procurador da República Mário Lúcio Avelar pediu ontem prisão preventiva (por tempo indeterminado) da maioria dos presos. No entanto, não revelou quantos, e, até o final da tarde, a Justiça não havia anunciado a decisão."
Não há explicação sobre como se dá a exoneração de cargo público e não há como saber em que condições se daria a exoneração imediata da assessora ou até quando ela permaneceria no cargo, se, inclusive, já havia sido presa há dez dias. Observa-se que a frase que contém termo jurídico (exoneração) está inserida depois da transcrição da fala do advogado e antes da versão do deputado envolvido, solta, desconexa. É uma maneira de enxertar o artigo com uma informação, mas sem lhe dar a devida contextualização. Pergunta-se, então, em que acrescentou essa informação à matéria, que era sobre os supostos contatos da assessora com os acusados no escândalo. Não foi explicado sequer se houve um pedido de sua exoneração. E, caso tivesse havido, como estaria a tramitação administrativa, quanto tempo demoraria, enfim, não se sabe se isso é possível e em que casos isso poderia dar-se.
O segundo trecho mostra uma clara intenção do jornal em esclarecer o leitor acerca do termo "prisão preventiva", explicado entre parênteses como "por tempo indeterminado". A idéia transmitida é a de que todos os envolvidos ficarão presos "eternamente", já que o termo empregado, literalmente, não define data certa para o término da prisão. Entretanto, em vez disso, segundo os termos do Código de Processo Penal Brasileiro, prisão preventiva é uma espécie de prisão provisória. Entre as demais, destacam-se a prisão em flagrante (artigos 301 a 310), a prisão resultante de pronúncia (artigo 408, § 1º), a prisão resultante de sentença condenatória que não faculta recurso em liberdade (artigo 393, I) e também a prisão temporária, prevista na Lei nº 7.960/89.
Assim, nos termos do artigo 310, caput, e seu parágrafo único, e da primeira parte do artigo 312, ambos do Código de Processo Penal, a prisão preventiva somente pode ser decretada para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Muito embora a lei não especifique o prazo para o término da prisão, não se pode reduzi-la à prisão por tempo indeterminado, já que, além de o Código Penal Brasileiro a classificar como espécie de prisão provisória, existem outras prisões que também não possuem prazo determinado. A melhor tradução para o leigo seria "uma espécie de prisão provisória".
Obviamente que aqui se trata de um conhecimento legal, cabível àqueles que lidam com a lei e sua aplicação nos casos que são levados ao Judiciário. Sobre o significado do termo empregado, não se exige do jornalista que saiba pormenorizadamente de um assunto específico a respeito do qual mesmo os próprios juristas, na maioria das vezes, divergem. Porém, cabe a ele a investigação, a pergunta, a consulta às fontes, o questionamento sobre o assunto tratado para que não seja cometido um erro dessa natureza.
7.4. Em que consiste a "batalha judicial" informada no texto?
A quarta matéria analisada ("Governo favorece sindicato em troca de apoio", disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1405200614.htm) trata de uma denúncia feita por sindicalistas ligados a diversas centrais sindicais, segundo a qual o Ministério do Trabalho estaria concedendo registros a sindicatos em troca de apoio político ao governo Lula. O governo se defende dizendo que se trata de inconformismo de sindicalistas que perderam as eleições e abriram outros sindicatos para garantir o recebimento da contribuição sobre o salário dos trabalhadores. A manchete, porém, é uma afirmação: "Governo favorece sindicato em troca de apoio". Alguns trechos da matéria merecem transcrição:
Afirmam [os sindicalistas] ainda que têm de recorrer à Justiça para impedir que o ministério libere a criação de mais de um sindicato de trabalhadores em uma mesma região, desrespeitando a Constituição, que estabelece a unicidade sindical.
Nos últimos três anos, o ministério concedeu registro para 762 entidades sindicais no país – o número não inclui os que foram abertos por ordem da Justiça. (...)
"Travamos uma batalha na Justiça como o Sindiversões. Cumprimos uma série de exigências para ter o registro. O que eles querem é manter a arrecadação do imposto sindical", diz Nelson Gomes Ferreira, vice-presidente do Sindibin. (...)
A disputa entre sindicatos – e que envolve o ministério – começou a partir da Constituição de 1988, que definiu que o Estado não deve interferir na organização sindical, na avaliação de Sady. (...)
O advogado informa que essa situação se agravou em 2004, com o Decreto nº 5.063, que determina que os pedidos de impugnação aos pedidos de registro sindical fossem decididos pelo próprio secretário de Relações do Trabalho.
A "bagunça" no setor, segundo João Felício, presidente da CUT, é reflexo da estrutura arcaica. "O sindicato perde eleição e cria outro com outro nome para garantir o imposto (sindical)."
Apesar de estar evidente a controvérsia entre a acusação dos sindicalistas e o que diz o governo, a primeira observação a ser feita diz respeito à manchete, que, em tom de sentença, "condena" o governo. O foco, aqui, no entanto, diz respeito à notícia jurídica, não cabendo considerações sobre a posição política do jornal, embora se possa, de pronto, condenar o fato de o jornal assumir no título, como afirmação sua, a denúncia dos sindicalistas.
Segundo a reportagem, os sindicalistas afirmam que têm de recorrer à Justiça para obter o registro de seus sindicatos. Em outra passagem, a matéria cita a Constituição Federal e números dos registros concedidos pelo governo e afirma que neles não estão incluídos os que foram concedidos pela Justiça.
A questão que permanece sem explicação é o quê, especificamente, discute-se na Justiça. Pelo que se deduz da explicação do advogado trabalhista João José Sady, ouvido na reportagem, o início da discussão se deu com a Constituição, que afastou a intervenção do Estado nas organizações sindicais, mas agravou-se a partir de 2004, com a edição do Decreto nº 5.063, que permitiu que as impugnações aos pedidos de registros fossem decididas pelo secretário de Relações do Trabalho. Pessoas mais afeitas às questões do Direito, especialmente da área trabalhista, podem deduzir que provavelmente a discussão paire em torno da supremacia da norma constitucional sobre o decreto presidencial. Talvez seja a razão da concessão das liminares anunciadas na matéria.
Porém, na matéria, isso não é esclarecido. Nenhum envolvido em quaisquer desses processos foi ouvido pela reportagem. Nenhum juiz e nem mesmo um advogado de uma parte ou de outra do processo explicou em que residiria a discórdia. A tentativa de transcrever a entrevista com o advogado trabalhista também não serve para isso, pois foi enxertada no texto de maneira complementar, ao final, sem que se contextualizasse a citada "batalha judicial". Enfim, apesar de se citar no texto, várias vezes, que existe uma discussão jurídica sobre o assunto, não há a preocupação de esclarecer essa discussão, de mostrar se em alguns desses processos houve decisão favorável ou contrária aos sindicatos ou ao governo, de traçar, quem sabe, um paralelo entre os argumentos de ambas as partes.
Percebe-se que o jornal deu claro enfoque à denúncia, sem explicar os motivos que a sustentam, tendo incorrido em verdadeira omissão de informação.