Há algum tempo, tive a oportunidade de ler a obra Juízo de excepcionalidade do STJ, de autoria de Eduardo Lessa Mundim. Empolgado com a temática, questionei a alguns conhecidos meus se já haviam ouvido falar na expressão em comento. A resposta foi, invariavelmente, negativa. Trata-se de um instituto que promove uma mudança substancial na racionalidade inerente aos recursos especiais, e que, portanto, merecem atenção. Diante disso, proponho-me a esboçar algumas linhas a respeito do tema (sem qualquer pretensão opinativa, apenas e tão somente descritiva).
Pois bem, encetemos do começo. Existem, grosso modo, três meios de impugnação de decisões judiciais, quais sejam, recursos, sucedâneos recursais e ações autônomas de impugnação. Possuem um liame de subjetividade: todos franqueiam a determinados indivíduos a possibilidade de manifestarem seu inconformismo, haja vista que desde os primórdios da civilização humana, mesmo nas comunidades mais primitivas, conhecia-se alguma forma de desafiar as decisões desfavoráveis proferidas (ROSSONI, 2019, p. 29). O que os distingue são, em apertada síntese, dois requisitos: o do efeito obstativo e o da taxatividade. Neste diapasão, em relação ao requisito do efeito obstativo, observa-se que, ao passo que os recursos e os sucedâneos recursais obstam a formação de coisa julgada, por darem continuidade a uma relação jurídica já em curso (ALMEIDA, 2020, p. 141), as ações autônomas de impugnação ensejam a formação de uma nova relação jurídica processual. De seu turno, no que concerne à premissa da taxatividade, é lugar comum em sede doutrinária afirmar que somente pode ser considerado recurso o instrumento de impugnação que estiver expressamente previsto em lei federal como tal (NEVES, 2020, p. 1586). O conceito de sucedâneo recursal é obtido por exclusão, conforme o próprio nome sugere: sucedâneo recursal é todo meio de impugnação que nem é recurso nem é ação autônoma de impugnação (DIDIER JR.; CUNHA, 2016, p. 89).
Velejando por esta singra, fala-se, dentro da Teoria Geral dos Recursos, em uma ramificação dos recursos em relação à função que exercem. Podem, destarte, ser ordinários (por pretenderem tutelar, precipuamente, o direito subjetivo da parte interessada) ou extraordinários (que objetivam, majoritariamente, proteger o ordenamento jurídico). O foco do presente texto são os recursos extraordinários (em sentido amplo), especificadamente o recurso especial. Passemos, pois, à sua análise.
Uma rápida leitura do artigo 105, III, da Constituição Federal de 88[1], nos permite chegar a algumas ilações. Ora, o recurso especial, cujo endereçamento deve ser ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), se presta à proteção da lei federal. Corroborando o que foi mencionado algures, Anselmo Moreira Gonzalez (2020, p. 133) assinala: A despeito de o STJ atuar como corte de revisão[2], o recurso especial não se presta apenas a provocar da corte a prestação jurisdicional voltada à satisfação do direito subjetivo das partes, tal como ocorre no manejo dos recursos ordinários. Diante disso, erguem-se como recursos de fundamentação vinculada (na medida em que as hipóteses de cabimento estão expressamente delineadas na Constituição), e têm por pressuposto que a decisão recorrida tenha sido proferida por tribunal, em última ou única instância.
Resvalando pela senda até aqui gizada, afigura-se curial realçar o enunciado sumular n° 7 do STJ: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. No escólio de Diogo Rezende de Almeida (2020, pp. 301-302), convencionou-se, em decorrência da interpretação do texto constitucional, que aos recursos extraordinário e especial reservam-se exclusivamente às questões de direito, não cabendo aos tribunais superiores a renovação da cognição sobre os fatos da causa.
Arvora-se, então, como uma categoria sabotadora do juízo de admissibilidade, que guarda estreita relação com as concepções de razoabilidade e proporcionalidade[3]: o juízo de excepcionalidade. Ao comentar, nessas hipóteses, a superação (ou inaplicação) do enunciado sumular n° 7 do STJ, Mundim (2019 p. 100) esclarece: A Corte realiza, por aplicação de razoabilidade/proporcionalidade, a alteração do quantum em casos como de dosimetria das sanções por improbidade, honorários advocatícios, indenização por danos morais. Lançando mão da lógica, o autor propõe uma análise da estrutura do juízo de excepcionalidade a partir de três pressupostos: uma premissa maior (impossibilidade de avaliação do contexto fático-probatório em sede de recorribilidade extraordinária); uma premissa maior excepcional (alteração de quantum é possível em situações excepcionais, quando o valor mostrar-se demasiadamente excessivo ou insignificante); e uma premissa menor (casuística, é dizer, que reclama uma análise do caso concreto, para que, dessa maneira, seja rejeitada ou promovida a alteração).
Cuida-se, portanto, de um instituto que carrega em seu bojo uma forte carga valorativa (na medida em que reclamam análise de cláusulas gerais), a exigir uma avaliação individual dos julgadores do Superior Tribunal de Justiça [...], que conferirá, segundo a visão da espécie, a nota para a conclusão de que se trata - ou não - de caso excepcional (MUNDIM, 2019, pp. 110-111).
Do exposto, dessume-se que o juízo de excepcionalidade possui o condão de reestruturar significativamente a racionalidade que envolve o recurso especial, recurso esse que desde o seu surgimento, em 1988, tem sido alvo de acaloradas e discussões, passando por algumas reformas (inclusive, no corrente ano, com o advento da emenda constitucional 125, foi introduzido o filtro da relevância). Mas isso é assunto para outra ocasião...
[1] Art. 105 Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
III) julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
- julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
- Julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
- Der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
[2] George Abboud (2016, online), pronunciando-se sobre as cortes de revisão, assevera que são aquelas “cuja finalidade não se cinge a apenas extirpar os pronunciamentos contrários (cassação, anulação ou invalidação, mas vão além e impõe ao órgão o rejulgamento completo da causa, substituindo a decisão anterior, supostamente cunhada ao arrepio do direito”.
[3] Nesse sentido, cf., com proveito, ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4 ed. São Paulo: 2005.