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Crime eleitoral de divulgação de pesquisas falsas: o abuso é de quem?

14/10/2022 às 14:10
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Comentários sobre o trancamento da apuração de crime de pesquisas falsas pelo Ministro Alexandre de Moraes.

Não é possível alegar desconhecimento quanto à enorme disparidade entre as pesquisas divulgadas por vários institutos para o primeiro turno das eleições de 2022 e os resultados reais. A não ser por um fenômeno de cegueira voluntária é inviável alegar a inexistência ao menos de indícios de fraude a merecerem a devida apuração administrativa e criminal. 1

Como seria natural num Estado Democrático de Direito, o CADE e a Polícia Federal instauraram as devidas apurações de acordo com suas atribuições constitucionais e legais.

No entanto, o Ministro Alexandre de Moraes, na Presidência do TSE, determinou o trancamento desses procedimentos em uma sucinta e não devidamente fundamentada decisão.

Alegou o Magistrado que o CADE e a Polícia Federal apresentam como justificação para suas apurações apenas a “desconformidade dos resultados das urnas com o desempenho dos candidatos retratados nas pesquisas”, sem que haja “indicativos mínimos de formação de vínculo subjetivo entre os institutos” e práticas ilícitas.

Seria de se concordar com o Magistrado, acaso os supostos “erros” de pesquisa não fossem tão amplos, bem como não fossem, “coincidentemente”, direcionados apenas a um dos lados da disputa eleitoral. Como se disse no início deste texto, somente uma cegueira deliberada pode fazer com que não se enxerguem indícios de alguma irregularidade que precisa ser apurada. Além do mais, evidenciar vínculos subjetivos, conluios criminosos, associações, organizações, compras de pesquisas ilegais, entre outros fatos de interesse, somente será possível mediante prévia investigação profunda. Pretender que a prova de um ilícito complexo ou indícios mais veementes estejam presentes já no momento da suspeita ou da “notitia criminis” significa paralisar a atuação da justiça, que, além de cega, passa a ser tetraplégica e muda.

Incrivelmente na decisão do Magistrado enfocado, há até mesmo a alegação de que os responsáveis pelo desate das devidas investigações incidiriam em crimes de abuso de autoridade. Estranhamente, para fazer essa alegação, o Magistrado não aponta o que exige inicialmente dos outros, ou seja, qualquer indício do elemento subjetivo específico (dolo específico) necessário à configuração de eventual crime de abuso de autoridade, conforme exigência do artigo 1º., §§ 1º. e 2º., da Lei 13.869/19. Parece que há uma legislação para o Ministro Moraes e outra para todas as demais autoridades brasileiras, bem como para a população. Frise-se que no caso das pesquisas possivelmente falsas, há clara e evidentemente elementos objetivos a justificarem apurações, o que não somente não possibilita a menor sombra de dolo específico de abuso, como está a indicar a obrigação das autoridades de agirem, ao reverso, sob pena de prevaricação. Não obstante, tal qual as pesquisas, a decisão do Magistrado é enviesada.

Alega ainda o Magistrado prolator da decisão sob comento “incompetência dos órgãos” que determinaram as investigações, bem como “usurpação das funções constitucionais da Justiça Eleitoral”.

Em primeiro lugar é interessante apontar como é possível que numa decisão proferida por Ministro do STF e atual Presidente do TSE não se prime pela correção terminológica. Os órgãos administrativos envolvidos não detém “competência” alguma e, por isso mesmo, não podem ser considerados “incompetentes” para nada. Competência é medida de jurisdição, na tão conhecida fórmula jurídica ensinada já nos primeiros contatos com a Teoria Geral do Processo nos bancos acadêmicos. Portanto, somente magistrados detém competência. Órgãos administrativos em geral e a Polícia Judiciária não detém “competências” e sim “atribuições”.

Feito esse ajuste terminológico necessário (embora não devesse ser necessário), é preciso dizer que não assiste razão ao Ministro Alexandre de Moraes quando afirma ausência de “atribuição” dos órgãos, bem como eventual “usurpação” das funções da Justiça Eleitoral.

Em primeiro lugar, eventual liame entre institutos de pesquisa e outros grupos midiáticos no sentido de monopolizar a atividade não diz respeito à Justiça Eleitoral, mas sim, ao reverso, ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). O órgão em destaque tem três funções de caráter administrativo: preventiva, repressiva e educativa. Ademais, como autarquia responsável pela defesa da livre concorrência, tem a responsabilidade de coibir as condutas que violam a competitividade no mercado brasileiro (vide artigos 3º., 4º. e seguintes da Lei de Defesa da Concorrência – Lei 12.529/11). 2 Assim sendo, o que se opera, na verdade, é uma indevida ingerência do Judiciário em atividade típica do Executivo, violando a tripartição de poderes sem qualqurer fundamento jurídico ou fático.

Quanto à atribuição da Polícia Federal, está disposto na Constituição que tem exclusividade no exercício das funções de Polícia Judiciária da União, bem como para a apuração de infrações penais referentes a bens, serviços e interesses da União (vide artigo 144, inciso I e § 1º., incisos I e IV, CF). Saliente-se que a Justiça Eleitoral é entidade Federal, razão pela qual seus serviços e interesses estão diretamente vinculados à União (artigo 118 e seguintes, CF). Tanto é assim que é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que a atribuição para a investigação de crimes eleitorais é da Polícia Federal, sendo a atuação concorrente das Polícia Civis dos Estados meramente supletiva. 3

É bem verdade que a Resolução 23.396/13 do TSE, ao confirmar que a Polícia Federal exerce as funções de Polícia Judiciária e investigativa a respeito de crimes eleitorais, com atuação meramente supletiva das Polícia Civis dos Estados, subordina tais órgãos administrativos à Justiça Eleitoral (vide seus artigos 1º. e 2º., Parágrafo Ùnico). Além disso, condiciona a instauração de Inquérito Policial para apuração de ilícitos eleitorais a prévia determinação da Justiça Eleitoral, ressalvando somente a situação de Prisão em Flagrante (vide seu artigo 8º.).

Acontece que tal Resolução não pode se sobrepor à Constituição Federal, ao Código Eleitoral e aos Códigos Penal e de Processo Penal. Isso sim constitui uma indevida usurpação judicial da atribuição do Poder Legislativo e infração deslavada ao Princípio da Legalidade e Separação dos Poderes.

O Código Eleitoral ( Lei 4737/65) estabelece em seu artigo 355 que os crimes eleitorais são de ação penal pública incondicionada. Também determina a aplicação subsidiária do Código Penal e do Código de Processo Penal ( respectivamente artigos 287 e 364 do Código Eleitoral). Assim sendo, conforme as normas legais vigentes, a Autoridade Policial com atribuição pode e deve atuar de ofício, instaurando investigação diante da “notitia criminis” de qualquer crime eleitoral (artigo 100, CP e artigo 5º., I c/c 24, CPP). Nada existe legalmente a vincular a atuação da Autoridade Policial a alguma autorização ou necessária requisição judicial, ministerial ou seja lá o que for. Diante do crime de ação penal pública, determina a lei a atuação “ex officio” e independente das Autoridades Policiais. A Constituição Federal, por seu turno, estabelece a atribuição da Polícia Federal ou supletivamente das Polícia Civis para tais casos, conforme já demonstrado. Nada obsta, portanto, a atuação independente, com base na Constituição e nas leis, por parte das Autoridades Policiais. Nesse passo é forçoso reconhecer que a Resolução 23.396/13 TSE é inconstitucional e ilegal.

No caso concreto há noticia de possível prática de crime eleitoral de divulgação de pesquisas falsas, conforme previsto no artigo 33, § 4º. c/c 35 da Lei Geral das Eleições (Lei 9.504/97). Também essa legislação determina a aplicação subsidiária dos Códigos Penal e de Processo Penal, bem como estabelece que os crimes nela previstos são de ação penal pública incondicionada, fazendo referência, em seu artigo 90, aos artigos 287, 355 e 364 do Código Eleitoral (Lei 4.737/65).

Em suma, toda a legislação vigente confronta a Resolução sobredita do TSE, demonstrando claramente a independência da Polícia Judiciária para a apuração de crimes eleitorais, o que, aliás, não poderia ser de outra forma.

Mas, talvez este autor pudesse ser acoimado como um mero jurista idiossincrático que se vale de malabarismos para defender uma tese. É mais que evidente, pela simples leitura dos dispositivos legais e constitucionais aventados, que essa imputação seria injusta e infundada. No entanto, como vivemos em um ambiente sombrio sob o ponto de vista moral, intelectual, político e jurídico, não seria de se espantar nem um pouco.

Acontece que nem mesmo isso, ainda que de forma indevida, pode ser acenado contra nossas demonstrações e conclusões (a não ser em atuação de puro capricho ou voluntarismo irracional). Isso porque é o próprio TSE, em decisão unânime, incluindo voto do Ministro Alexandre de Moraes, que já decidiu sobre a impossibilidade de coartar ou inibir a atuação imediata, independente e “ex officio” da Polícia Federal na investigação dos crimes eleitorais. Vejamos:

Durante a sessão administrativa realizada nesta quinta-feira (29.04.2021), o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral aprovou, por unanimidade, instrução que mantém o poder da polícia judiciária para instaurar inquérito de ofício e apurar infrações eleitorais.

A análise do assunto ocorreu a partir de requerimento da Polícia Federal para alteração da Resolução TSE nº 23.396 de 2013, que dispõe sobre a apuração de crimes eleitorais a fim de prever a legitimidade da polícia judiciária para instaurar tais inquéritos.

O julgamento foi retomado com o voto-vista do ministro Edson Fachin, que seguiu o mesmo posicionamento anteriormente apresentado pelo relator, ministro Alexandre de Moraes.

Fachin ressaltou que a exclusividade do magistrado no exercício do poder de polícia no âmbito administrativo eleitoral não inviabiliza a possibilidade de instauração de inquérito policial de ofício pela autoridade policial.

Segundo ele, o sistema procedimental para instauração de inquéritos não encontra disciplina no Código Eleitoral, mas sim no Código Penal.

“Essa compreensão vai na linha do artigo 364 do Código Eleitoral, que preconiza a aplicação subsidiária e supletiva do Código Penal no julgamento dos crimes eleitorais”, disse o ministro, ao afirmar que não vê contradição entre o artigo 356 do Código Eleitoral e o artigo 5º do Código Penal.

Fachin finalizou destacando que o pleno exercício das funções institucionais da polícia na instauração de inquérito para crimes eleitorais, além de aproximar o sistema procedimental de apuração dos crimes eleitorais ao sistema dos crimes não eleitorais, poderá imprimir maior eficiência na repressão dos ilícitos com uma atuação cooperada objetiva e imparcial, “que é o que se espera das instituições que atuam no combate ao crime” (grifos nossos). 4

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É de se constatar, de forma evidente, que a decisão do Ministro Alexandre de Moraes não somente viola a legalidade e a constitucionalidade, mas até mesmo o posicionamento unânime do Tribunal Superior que preside e sua própria consciência a respeito do tema enfocado. Parece que o abuso de autoridade atribuído a outrem sem sequer menção de configuração do dolo específico, se acha muito mais nítido, inclusive quanto ao seu necessário elemento subjetivo, nessa atuação evidentemente ilegal, inconstitucional e até mesmo autocontraditória do Magistrado enfocado. Nesse caso, especialmente a autocontradição está a demonstrar, no mínimo, indícios de dolo abusivo legalmente exigido. Resta saber se pretenderá reprimir abusivamente as autoridades administrativas que somente cumpriram seu dever (abuso de autoridade) ou ficará somente na caprichosa prática de ato de ofício em desconformidade com as normas legais (prevaricação).

Depois disso, não há mais nada a dizer, a não ser lembrar do sábio ensinamento bíblico a respeito das manifestações do homem justo:

“Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” (Mateus, 5,37).


REFERÊNCIAS

ALENCAR, Yasmin. Institutos de Pesquisa Mentiram e Exacerbaram Diferença entre Lula e Bolsonaro. Disponível em https://brasilsemmedo.com/os-institutos-de-pesquisas-mentem-entenda/ , acesso em 14.10.2022.

COMPETÊNCIAS: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Disponível em https://www.gov.br/cade/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/competencias , acesso em 14.10.2022.

SENNA, Miguel de Almeida Moura. Atribuição Concorrente para a Investigação de Crimes Eleitorais. Revista Segurança Pública & Cidadania. Volume 2. Brasília: Jan./Jun., 2009, p. 97. – 117.

TSE mantém possibilidade de Polícia Judiciária instaurar inquéritos policiais e apurar infrações eleitorais. Disponível em https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Abril/tse-mantem-possibilidade-de-policia-judiciaria-instaurar-inqueritos-policiais-e-apurar-infracoes-eleitorais , acesso em 14.10.2022.


Notas

1 ALENCAR, Yasmin. Institutos de Pesquisa Mentiram e Exacerbaram Diferença entre Lula e Bolsonaro. Disponível em https://brasilsemmedo.com/os-institutos-de-pesquisas-mentem-entenda/ , acesso em 14.10.2022. Anote-se que as diferenças entre pesquisas e resultados também foram enormes em relação a quase todos os pleitos para Governador e Senador, sempre com o viés de reduzir as intenções de voto com relação a candidatos de direita.

2 COMPETÊNCIAS: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Disponível em https://www.gov.br/cade/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/competencias , acesso em 14.10.2022.

3 SENNA, Miguel de Almeida Moura. Atribuição Concorrente para a Investigação de Crimes Eleitorais. Revista Segurança Pública & Cidadania. Volume 2. Brasília: Jan./Jun., 2009, p. 97. – 117.

4 TSE mantém possibilidade de Polícia Judiciária instaurar inquéritos policiais e apurar infrações eleitorais. Disponível em https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Abril/tse-mantem-possibilidade-de-policia-judiciaria-instaurar-inqueritos-policiais-e-apurar-infracoes-eleitorais , acesso em 14.10.2022. Processo relacionado: IN 0000958-26.2013.6.00.0000.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crime eleitoral de divulgação de pesquisas falsas: o abuso é de quem?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7044, 14 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100664. Acesso em: 23 nov. 2024.

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