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As re/construções do gênero feminino nos espaços de poder

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08/11/2024 às 17:23

Resumo:


  • A igualdade de gênero não foi concedida pelo Estado, mas conquistada por meio de lutas e sacrifícios ao longo da história.

  • A construção cultural do gênero foi instrumentalizada socialmente, resultando em relações desiguais de poder que geraram violência contra as mulheres.

  • A história revela como a inferioridade de gênero foi construída ao longo do tempo, desde a Antiguidade até a Modernidade, justificando a submissão e violência contra as mulheres.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Como as relações de gênero foram historicamente compreendidas? Qual sua conexão com a violência baseada no gênero?

Resumo: O presente estudo objetiva, a partir da análise histórica, compreender como o direito à igualdade de gênero tornou-se uma construção contrafactual indispensável no combate à violência contra a mulher.

Palavras-chave: gênero. Violência. História. Direito.


Introdução

Não se nasce mulher, torna-se mulher, com essa frase provocadora e reveladora Simone de Beauvoir, filósofa francesa, inaugura o segundo volume de sua obra talvez mais famosa, O Segundo Sexo1, e nos indica como o gênero é instrumentalizado socialmente.

Nesse ponto, está o tema deste breve artigo que não tem a pretensão de exaurir uma matéria de tão grande espaço de desenvolvimento no tempo com múltiplas interpretações e ainda tão mal compreendida, principalmente no âmbito do debate público da sociedade.

Nesse contexto, em delimitação do tema, investigaremos como essa criação cultural do gênero foi instrumentalizada socialmente, como o passado de sua criação sendo origem de nosso presente, ou seja, como a compreensão do que se tem das relações de gênero está relacionada historicamente à violência contra a mulher.

Nosso objetivo é verificar a origem e o desenvolvimento social do conceito de gênero e de como ele foi historicamente sendo preenchido com um conteúdo que gerou violência. Objetivamos encontrar eventual causa dessa violência no preenchimento histórico do conteúdo deste conceito sociocultural.

Problematizando: como as relações de gênero foram historicamente compreendidas? Qual foi o desenvolvimento do conteúdo dessas relações e qual sua eventual conexão com a violência baseada no gênero? Afinal, é possível estabelecer uma ligação entre a compreensão de tais relações e a violência contra a mulher?

Para tanto, nossa metodologia consistirá na análise de como foi historicamente compreendida a relação entre homens e mulheres ao longo do tempo dentro da cultura que gerou a violência social à mulher. Nessa apertada análise, contaremos com referencial bibliográfico oriundo da filosofia, da história, do direito, dentre outros.

Conforme a Desembargadora Maria Berenice Dias, ninguém duvida que a Lei Maria da Penha é a lei mais conhecida e mais eficaz no Brasil. Agora todo mundo sabe que não dá para bater em mulher. Nem com uma flor!2. Afinal, por que tamanho esforço foi e é necessário como o da Resolução 255 do CNJ3? Qual sua origem, sua causa primeira?

Nesse estudo, não se duvida que a Lei Maria da Penha, Lei 11.340/2006, seja uma das três melhores Leis do Mundo, segundo atestou o Fundo de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU)4, e aqui em breves páginas intentaremos verificar o fundamento de tal hercúleo esforço da normativa de proteção de gênero.


1. O Direito à Igualdade de Gênero

Inicialmente, é preciso que observar a origem dos direitos. Assim como outros direitos como a vida, a liberdade, a segurança e a propriedade, a igualdade de gênero não foi fruto de uma benesse do Estado, da sociedade e/ou das autoridades que o compõe.

Nesse ponto, é importante observar as lições da Juíza Raquel Domingues do Amaral, Juíza Federal do TRF 3 a respeito da origem e da construção dos direitos. Em seu texto exemplar, a Magistrada pergunta: sabem de que são feitos os direitos, meus jovens? Sentem o cheiro?5 E então magistralmente responde:

Os direitos são feitos de suor, de sangue, de carne humana apodrecida nos campos de batalha, queimada em fogueiras! Quando abro a Constituição no artigo quinto, além dos signos, dos enunciados vertidos em linguagem jurídica, sinto cheiro de sangue velho! Vejo cabeças rolando de guilhotinas, jovens mutilados, mulheres ardendo nas chamas das fogueiras! Ouço o grito enlouquecido dos empalados. Deparo-me com crianças famintas, enrijecidas por invernos rigorosos, falecidas às portas das fábricas com os estômagos vazios! Sufoco-me nas chaminés dos Campos de concentração, expelindo cinzas humanas! Vejo africanos convulsionando nos porões dos navios negreiros. Ouço o gemido das mulheres indígenas violentadas. Os direitos são feitos de fluido vital! Para se fazer o direito mais elementar, a liberdade, gastou-se séculos e milhares de vidas foram tragadas, foram moídas na máquina de se fazer direitos, a revolução! Tu achavas que os direitos foram feitos pelos janotas que têm assento nos parlamentos e tribunais? Engana-te! O direito é feito com a carne do povo! Quando se revoga um direito, desperdiça-se milhares de vidas... Os governantes que usurpam direitos, como abutres, alimentam-se dos restos mortais de todos aqueles que morreram para se converterem em direitos! Quando se concretiza um direito, meus jovens, eterniza-se essas milhares vidas! Quando concretizamos direitos, damos um sentido à tragédia humana e à nossa própria existência! O direito e a arte são as únicas evidências de que a odisseia terrena teve algum significado (grifo nosso)!6

O direito à igualdade de gênero, contrafactual que é, não tem uma história diferente. Para que hoje diversos diplomas internacionais e nacionais reconhecessem o direito de a mulher viver livre de qualquer forma de violência (física, sexual, psicológica, patrimonial e moral) foi necessário muito sangue, suor e luta.

No caso da luta pelo direito à igualdade de gênero, o sangue, suor e lágrimas resultaram, no plano internacional, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, bem propriamente chamada pela professora Sílvia Pimentel de Carta Magna dos direitos das mulheres7, para a qual:

Parte I - Artigo 1o - Para os fins da presente Convenção, a expressão discriminação contra a mulher significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos: político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo8.

Ainda no plano internacional, mas agora não mais no sistema de proteção universal dos direitos humanos, no sistema de proteção interamericano, temos a Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, segundo a qual:

CAPÍTULO I - DEFINIÇÃO E ÂMBITO DE APLICAÇÃO - Artigo 1 Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

Igualmente, agora não mais no plano internacional, mas já no plano interno, a promoção da igualdade de gênero encontrou previsão na Constituição Federal de 1988, em conformidade com a qual, desde a sua redação original, o Estado deve promover o combate à violência, confira-se:

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações9.

A partir das determinações dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos global e interamericano e em cumprimento de seu próprio comando constitucional, a República Federativa do Brasil viu-se compelida a editar uma lei de proteção especial dos direitos das mulheres, dentro de uma política afirmativa, vide:

TÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226. da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar (grifo nosso).

Tal Lei, a Lei Maria da Penha (LMP), como assinalado pela Juíza Raquel, foi fruto de luta, na qual houve muito sangue derramado pelo caminho, em especial na luta de dezenove anos e seis meses de Maria da Penha Maia Fernandes, cearense vítima de dupla tentativa de homicídio por parte de seu então marido.

O direito à igualdade de gênero, portanto, não foi produto da benesse de qualquer autoridade e/ou fruto de concessão do Estado e/ou da sociedade, mas sim produto de luta que deixou diversas vítimas pelo caminho, mas que deu resultados como o Relatório 54/01, Caso 12.051, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O combate a violência de gênero, pois, encontrou acolhimento no ordenamento jurídico a partir da luta de diferentes pessoas que, por vezes, substanciaram seus fluidos vitais, seus sofrimentos, em direitos, como no caso daquele Relatório 54 da CIDH que posteriormente deu origem à LMP.

Tal fruto da luta de Maria da Penha foi resultado de uma condenação do Brasil no plano internacional que responsabilizou o país pelo inadequado acesso à justiça e pela inadequada proteção judicial à vítima de violência, a partir de cujas recomendações10 originou-se a LMP.


2. A Noção de Gênero

Cientes de que o direito à igualdade de gênero determina o combate à violência, a qual atinge diretamente as mulheres, mas que vitima outrossim e indiretamente os diferentes integrantes das famílias como filhos e filhas, precisamos desenvolver uma compreensão adequada do conteúdo do que é gênero.

O conceito seguramente não é comum para os operadores do Direito e por ser oriundo de outras ciências humanas ainda encontra alguma resistência na sua recepção e inclusive na sua manutenção no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista o retrocesso visto no abandono daquele termo em substituição por sexo no Brasil.

Nesse ponto, de fato, a Convenção de Belém do Pará optou pelo termo gênero, no que foi seguida pela LMP que igualmente optou pela mesma redação. No entanto, a Lei 13.104/2015, a Lei do Feminicídio, restringiu a proteção aos direitos das mulheres ao mais específico termo sexo, na contramão da Convenção de Belém do Pará.

Considerando a adoção prioritária do termo gênero pelos diplomas, não se pretende aqui fazer distinção entre esse e sexo, o que não é objeto deste estudo, mas sim analisar a conteúdo e sua evolução histórica. Todavia, a Recomendação 28 do Comitê CEDAW já nos dá breves luzes sobre a diferenciação daqueles termos, conferir:

O termo "sexo" refere-se, aqui, às diferenças biológicas entre o homem e a mulher. O termo "gênero" refere-se às identidades, funções e atributos construídos socialmente da mulher e do homem, e ao significado social e cultural que a sociedade atribui a essas diferenças biológicas, o que resulta em relações hierárquicas entre homens e mulheres e na distribuição de faculdades e direitos a favor do homem, e em detrimento da mulher. Os lugares ocupados pela mulher e o homem na sociedade dependem de fatores políticos, econômicos, culturais, sociais, religiosos, ideológicos e ambientais que a cultura, a sociedade e a comunidade podem mudar (grifo nosso)11.

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Assim sendo, enquanto o conceito de sexo é mais restrito aos caracteres biológicos primários e secundários de machos e fêmeas, o conteúdo do conceito de gênero é mais amplo, ao compreender a função e o papel social desenvolvidos socioculturalmente para mulheres e homens em determinados tempo e lugar.

Não obstante possa guardar eventualmente alguma relação, a violência de gênero não se confunde com a violência doméstica, nos termos dos arts. 2o12 e 5o, caput 13, da LMP. Outrossim, aquela violência não depende de eventual orientação sexual da vítima, nos termos do art. 5o, parágrafo único14, da LMP.

Tal violência de gênero pode se manifestar de diferentes formas, pode ser de uma forma invisível ou sutil como linguagem e publicidade sexistas, anulação, invisibilização, controle, desprezo, humor sexista, ou pode ser de forma visível ou explícita como ameaça, insultar, gritar, abuso sexual, agressão física e/ou homicídio.

Visto que há uma predileção pelo conceito de gênero ao de sexo na proteção dos direitos das mulheres e que a violência pode se manifestar de diferentes formas, como podemos identificar uma questão de gênero para caracterizar uma violência contra o feminino? Quais marcadores podem ser instrumentalizados para verificá-lo?

A primeira característica do conceito de gênero é que esse é relacional. Assim como o conceito de pessoa é relacional com o conceito de coisa e percebemos a pessoa na ausência de coisa e a coisa na ausência de pessoa, o gênero não se estabelece individualmente aos homens ou à mulher.

Portanto, o gênero é um conceito relacional, porque ele se constrói na relação entre os diferentes papéis sociais e no modo como tais relações são social, histórica e culturalmente compreendidas. De tal sorte, o papel da mulher existe como limite à função do homem.15

A segunda característica é que o gênero é hierárquico, porquanto as diferenças entre estabelecidas socioculturalmente entre homens e mulheres não são neutras, mas sim possuem importâncias que lhes são atribuídas inerentemente.16 Em regra, às funções masculinas são atribuídos valores maiores, gerando relações de poder desiguais.

A teceria característica decorre em muito das anteriores: já que o gênero não é um atributo inerente ao ser humano, sua compreensão sofre diversas mudanças ao longo do tempo. Com efeito, as funções de homens e mulheres e as relações entre umas e outras mudam ao longo do curso da história humana17.

Por fim, a quarta característica é similar à anterior: por não ser um atributo inerente ao ser humano, o conteúdo do gênero muda não só ao longo do tempo, mas também no espaço, de forma que aquele papel cultural é algo específico de um determinado contexto de lugar e também de sociedade.

Sendo assim, por essa característica, ocorrem variações das funções de papéis e nas suas relações de acordo com o lugar, com o contexto social, com o grupo étnico e cultural, de modo que existem variações entre os papéis feminino e masculino e na relação entre ambos dentro de uma mesma sociedade e de uma época iguais18.


3. A História da Construção da Inferioridade de Gênero

Em conformidade com Simone de Beauvoir, filósofa francesa, legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios sempre se empenharam em demonstrar que a condição de subordinação da mulher era desejada no céu e proveitosa na terra19. Mas como se deu tal processo histórico?

Inicialmente, até a Revolução Francesa, a mulher não era pensada como sujeito de direito, já que a noção de igualdade era inexistente. Nesse contexto, já que não existia a noção de mulher como sujeito de direito, sendo essa um não sujeito de direito em subordinação, não fazia sentido a coexistência dos conceitos de violência de gênero.

De tal sorte, categorias como discriminação, mais ainda violência e principalmente gênero são relativamente novas. Pois, esses são conceitos que podem e devem ser instrumentalizados para compreender o passado, mas que não lhes são contemporâneos, sob pena de cairmos no erro do presentismo citado por Woortmann20.

Conforme BEAUVOIR, as origens do discurso conferiram à mulher um lugar fixado na tradição. Com efeito, dentre as diferentes origens antigas da violência de gênero, podemos identificar uma origem na tradição, na moral. Tal origem está intimamente ligada à história das religiões.

Na civilização cristã, o papel feminino foi representado por duas figuras centrais: Eva e Maria. A primeira foi a pessoa responsável pela tragédia, gerando a ideia de mulher ardilosa, perigosa, que precisa ser controlada. Por outro lado, o homem tem a função de parâmetro, sendo ser autônomo do qual a mulher é derivada21.

Exatamente para confirma a regra de Eva, existe o mito judaico em exceção de Lilith. Antes do capítulo 2 de Gêneses, no qual há descrição da criação de Eva, há ainda no capítulo 1o, a seguinte passagem bíblica: 27Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher22.

Uma mulher criada antes de Eva? Quem seria essa? Uma das interpretações possíveis é dada pela mitologia judaica e essa seria Lilith. Ela teria sido criada como a primeira esposa de Adão, mas não aceitara o jugo masculino e, por isso, teria sido transformada em demônio exatamente para confirmar a correção do modelo de Eva.

Para Roque Laraia, antropólogo da UnB, esta mulher primordial teria sido Lilith, figura bastante conhecida da antiga tradição judaica. Lilith não se submeteu à dominação masculina. A sua forma de reivindicar igualdade foi a de recusar a forma de relação sexual com o homem por cima23. E continua o relato da vida e punição de Lilith:

Por isso, fugiu para o Mar Vermelho. Adão queixou-se ao Criador, que enviou três anjos em busca da noiva rebelde. Os três anjos eram Sanvi, Sansanvi e Samangelaf4. Os emissários do Senhor tentaram em vão convencer a fujona. Ameaçaram afogá-la no mar5. Lilith, porém, respondeu: "Deixem-me, não sabeis que não fui criada em vão e que é meu destino dizimar recém-nascidos; enquanto é um menino tenho poder sobre ele até o oitavo dia, se é menina, até o vigésimo. No entanto, ela jurou aos anjos, em nome do Deus vivo, de que sempre que avistasse as figuras ou apenas os nomes dos mensageiros de Deus, deixaria a criança em paz. Também aceitou o fato de que diariamente iriam perecer cem de seus próprios filhos." (Gorion, :53). Lilith foi transformada em um demônio feminino, a rainha da noite, que se tornou a noiva de Samael, o Senhor das forças do mal.

Segundo uma velha tradição, Lilith seria uma figura sedutora, de longos cabelos, que voa à noite, como uma coruja, para atacar os homens que dormem sozinhos. As poluções noturnas masculinas podem significar um ato de conúbio com a demônia, capaz de gerar filhos demônios para a mesma. As crianças recém-nascidas são as suas principais vítimas. A crença em Lilith, durante muito tempo, serviu para justificar as mortes inexplicáveis dos recém-nascidos. [] A rebelião de Lilith contra Adão e o Criador levou à necessidade da criação de Eva, esta formada a partir de uma costela de Adão (Gênesis, 2, 21). É possível, portanto, imaginar que um corte foi realizado entre o capítulo 1, versículo 28, e o capítulo 2, versículo 21. É provável que este corte tenha ocorrido, mesmo em época bastante remota, como no quarto século antes de Cristo, quando se supõe que o texto escrito tomou uma forma aproximada da atual (Leach, 1983:77). O próprio teor do capítulo 1, versículo 28, sustenta esta hipótese: "E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra ..." Como seria possível abençoar a ambos e recomendar a multiplicação se Eva ainda não estava criada? (grifo nosso) 24.

A segunda, Maria, por sua vez, é a mulher modelo de passividade, de castidade, de pureza e de subalternidade. Completa-se assim o modelo de papel feminino da doutrina cristã que influenciará por séculos as relações, as estruturas sociais, fixando a função da mulher no casamento, na família e na sociedade pela tradição.

Ainda dentro das origens antigas, passamos da origem moral (tradição) para a origem ética (filosófica). No campo dessa, não encontramos grandes diferenças: desde a filosofia antiga até a moderna ou contemporânea, encontramos a justificação da submissão da mulher ao homem.

Aristóteles foi talvez o primeiro pensador a formular filosoficamente a inferioridade da mulher: desde Política e Metafísica, é possível verificar a relação hierárquica de gênero aristotélica. Tal filósofo sofre influência do meio patriarcal da Grécia Antiga em que viveu para considerar justa e natural a inferioridade de gênero.

Para Aristóteles, à similaridade do que compreendia da relação senhor e escravo, a relação entre marido e mulher era uma relação hierárquica que compunha a família, a base do Estado, e consequentemente era proveitosa tanto para maridos superiores quanto para mulheres subalternas.

Em Política, Aristóteles, afirma, o pai e marido governa a mulher e os filhos, ambos como pessoas livres, mas não com a mesma forma de autoridade: governa a mulher como cidadão, os filhos como súditos. O homem está mais apto para mandar, por natureza, do que a mulher25.

Ele, então, conclui que a relação entre homem e mulher é de permanente desigualdade26. Tal desigualdade é racional e se funda supostamente na própria natureza, porque a fêmea é um macho mutilado (Geração dos Animais, II, 3, 737 a)27, fruto de verdadeiro insucesso da natureza (História dos Animais IX, 1, 608 a 608 b)28.

Por conseguinte, as mulheres são consideradas por Aristóteles como seres incompletos e fracos por natureza que, consequentemente, devem ser mantidos em condição de inferioridade sob comando doméstico privado para sua própria segurança e afastadas dos espaços públicos de poder para o bem da política. Ao final, ele cita Sófocles:

É necessário acreditar, que o verso do poeta [Sófocles] sobre as mulheres contém uma verdade geral: para a mulher, o silêncio é um adorno, mas não para o homem (grifo nosso).29.

De Aristóteles, passamos a diversos filósofos iluministas dos séculos XVII e XVIII na Europa, os quais, não obstante suas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade para com o cidadão, não mantinham o mesmo ideal em relação à emancipação feminina.

Nesse novo contexto, talvez o exemplo mais forte seja o de Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista, que, na sua obra Emílio, constrói um modelo de feminilidade subalterna e complementar ao homem, o qual vai influenciar profundamente os países católicos nos séculos seguintes.

De fato, para ROUSSEAU, a desigualdade entre homens e mulheres é da ordem natural das coisas e não pode ser alterada, sob pena de entrar em contradição com a razão. Para ROUSSEAU, na união dos sexos cada qual concorre igualmente para o objetivo comum, mas não da mesma forma30. E conclui:

Dessa diversidade nasce a primeira diferença assinalável entre as relações morais de um e de outro. Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco.31

Na concepção rousseaniana, as diferenças físicas entre macho e fêmea implicam a existência de uma diferença moral, determinando que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem. [] Não se trata da lei do amor, concordo; mas é a da natureza, anterior ao próprio amor32, do que resulta o status feminino:

Se a mulher é feita para agradar e ser subjugada, ela deve tornar-se agradável ao homem ao invés de provocá-lo (grifo nosso).33

Assim sendo, a desigualdade física entre machos e fêmeas implica uma desigualdade moral entre esses, que resulta no fato de que homens controlariam seus desejos racionalmente e as mulheres não conseguiriam controlar os seus sem razão e com o mero pudor, justificando o controle masculino não só de si, mas também do feminino.

Consequentemente, considerando a natural ausência de razão das mulheres, estaria justificada não somente o controle dessas por homens, como também sua exclusão da vida pública, tendo em vista que sua tendência à histeria colocaria em risco a ordem social.

De tal azo, em Emílio ou Da Educação, ROUSSEAU entende que a função do gênero feminino na sociedade é de gerar o cidadão, sendo mãe e esposa, haja vista que as funções públicas de poder são atribuídas ao gênero masculino e as funções domésticas inferiorizadas são do segundo sexo, daí as educações diferentes às necessidades de cada.

Para ROUSSEAU, em Emílio, a educação de homens e mulheres deve ser diferente exatamente com o objetivo de preparar os diferentes gêneros para os diferentes papéis que já lhe são destinados. Nesse caminho, como bem resume Maria Rita Kehl, psicanalista brasileira:

as mulheres devem ser educadas para se tornar recatadas e resistentes ao sexo de modo a sustentar, com seu negaceio, a virilidade dos parceiros; frágeis e desprotegidas para mobilizar neles a força, a potência, o desejo de proteção; submissas e modestas para melhor governar a casa e a família34.

A construção de tal paradigma moral filosófico foi o fundamento sobre o qual se construiu a ideia medieval da Era das Bruxas. Ou seja, mulheres que acumulavam conhecimento, inclusive médicos, e que ocupavam locais de poder na sociedade eram alvo de controle social com o objetivo de recolocá-las no seu status inferior.35

Nesse contexto, principalmente a partir do século XVI, ganha corpo a crença de que a feitiçaria está intimamente ligada à natureza feminina.. Considerando que a fêmea moral e filosoficamente não é dotada de razão e tem uma tendência à desordem, foi consequência a construção de que a mulher é mais inclinada à tentação, a ceder ao demônio.

Como o gênero feminino não conseguiria deixar de transmitir a magia maligna, tiveram origem cerca de quatro século, até o século XVIII, nos quais as mulheres foram perseguidas por inquisidores, inclusive de forma institucionalizada como demonstram o Manual de Inquisidores, que é o diploma jurídico do Malleus Maleficarum36..

Posteriormente, com a passagem da Idade Média à Modernidade, passamos da bruxaria aos biologismos: a mulher deixa de ser uma bruxa e passa a ser um ser doente, incompleto, louco. Não obstante a qualificação diversa, o discurso mantém-se orientado para justificar biológica e naturalmente a inferioridade do gênero feminino.

O corpo masculino era a norma e o corpo feminino era uma corrupção do sexo único, porque a mulher era uma imperfeição do homem com os órgãos genitais invertidos, causando-lhe não só uma inferioridade física, mas também e mormente moral, que justificava a desigualdade de gênero.

Thomas Laqueur, historiador, explica: "a genitália da mulher também não abre e permanece em uma versão imperfeita do que seria se fosse projetada para fora. [...] Espalham-se vertiginosamente dentro de si próprio; a vagina um pênis eternamente precário e por nascer, o ventre um escroto mirrado, e assim por diante"37... E conclui:

A razão para esse curioso estado de coisas é o pretenso te/os (termo final, causa final aristotélica) da perfeição. "Da mesma forma que a humanidade é mais perfeita que o resto dos animais, dentro da humanidade o homem é mais perfeito que a mulher, e a razão dessa perfeição é seu excesso de calor, pois o calor é o instrumento básico da Natureza"( UP2.630). A toupeira é um animal mais perfeito que os animais destituídos de olhos, e a mulher é mais perfeita que outras criaturas, mas os órgãos não expressos de ambos são sinais de ausência de calor, consequentemente de perfeição. A interioridade do sistema reprodutivo feminino poderia então ser interpretada como o material correlato de uma verdade maior, sem ser de grande importância a ocorrência de alguma transformação espacial específica38.

Tal mentalidade vai encontrar grande repercussão nas ciências nesta fase de biologismo. Esse cientificismo encontrou repercussão não só no corpo físico, mas também no corpo mental, haja vista as concepções decorrentes da inferioridade natural e biológica da mulher na psicanálise.39

Considerando a natureza inferior, incompleta e mutilada do corpo feminino, na psicanálise produz-se o pensamento de Sigmund Freud, psicanalista, de inveja do pênis e de consciência da castração40 e de Jacques Lacan, psicanalista, na teoria do falo, fortemente em debate feminista (FRIDAN41, FIRESTONE42, MILLET43).

Tais pensamentos só serão revistos posteriormente, quando se compreende melhor a anatomia do corpo/sexo da fêmea, mas sem grande evolução para a posição do gênero feminino, já que de uma mulher doente passamos à figura dessa restrita e presa à sua função materna.

Finalmente, em seguida a essas breves considerações a propósito do embate entre a psicanálise e os movimentos feministas, principalmente os de segunda onda, chegamos ao que se poderia entender com estágio final atual da história do modelo padrão do gênero feminino: a mulher liberal mãe.

Com a ascensão da classe média burguesa, houve o estabelecimento de valores e estilo de vida que conduziram/mantiveram o gênero feminino no ambiente doméstico privado, ao qual já vinha sendo restrito desde Política de Aristóteles, passando por Emílio de Rousseau, longe dos espaços públicos de poder e decisão como o Poder Judiciário.

Nesse contexto, os valores do que se deveria esperar de uma mulher como condição para felicidade familiar, como a virgindade, são peça chave para consolidação da mulher materna até os dias atuais, o que repercutiu fortemente na compreensão social de que o erro ou acerto no sucesso da prole é um atributo feminino.44

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Sobre o autor
Nilson Dias de Assis Neto

Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, Diretor Adjunto do Departamento de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados da Paraíba, Coordenador Adjunto de Ensino à Distância da Escola Superior da Magistratura da Paraíba, Mestrando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, professor no ensino superior com experiência na área de Direito Público, especialmente Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS NETO, Nilson Dias. As re/construções do gênero feminino nos espaços de poder. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7800, 8 nov. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100687. Acesso em: 7 dez. 2024.

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