RESUMO: No presente estudo será discutida a constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência (IDC), introduzido no ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional n. 45/04 e mais conhecido como "federalização dos crimes contra os direitos humanos". De início, serão tecidos alguns comentários acerca do que seja constitucionalidade e de seu controle. Em seguida, serão mencionados os mais fortes argumentos contrários e favoráveis à compatibilidade do IDC com a Constituição Federal de 1988. Por fim, será defendida a tese da plena harmonia da "federalização" com a Magna Carta e, conseqüentemente, com todo o ordenamento jurídico pátrio, elegendo-se o IDC como importante instrumento de proteção aos direitos humanos no Brasil.Palavras-chave: incidente de deslocamento de competência, direitos humanos, constitucionalidade.
ABSTRACT: In the present study it will be argued the constitutionality of the Brazilian incident of jurisdiction displacement, which was introduced in the legal system by the 45th. Constitutional amendment and more known as "the federalization of the crimes against the human rights". At the beginning, some commentaries will be said concerning to what it is constitutionality and of its control. After that, the strongest arguments contrary and favorable to the compatibility of the IDC with the Federal Constitution of 1988 will be mentioned. Finally, the thesis of the full harmony of the "federalization" with the Great Letter will be defended and, consequently, with all the native legal system, choosing the IDC as an important instrument of protection to the human rights in Brazil.
Key-words: incident of jurisdiction displacement, human rights, constitutionality.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Antecedentes históricos do IDC. 3. Controle de Constitucionalidade. 4. Argumentos contrários à constitucionalidade do IDC. 5. Argumentos favoráveis à constitucionalidade do IDC. 6. Conclusão. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A questão da defesa e efetivação dos direitos humanos é globalmente discutida na atualidade, representando uma relevante problemática mundial que transpõe as estreitas fronteiras dos Estados-Nação. Em relação ao Brasil, tal preocupação refletiu na inserção de disposições constitucionais referentes aos direitos da humanidade, sob uma perspectiva claramente protetiva, viabilizadas pela recente Emenda Constitucional n. 45 promulgada em 08 de dezembro de 2004 (EC 45/04), comumente denominada Reforma do Judiciário. Dentre tantas novidades, a modificação constitucional introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente no art. 109, V-A e § 5º da Carta Magna, o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC).
O estudo em questão tem por escopo analisar a compatibilidade desse novo instrumento com a Constituição Federal de 1988 e, por conseguinte, com o ordenamento jurídico pátrio. Nessa esteira, serão apresentados os principais argumentos que balizam as teses da constitucionalidade e inconstitucionalidade do IDC, os quais estiveram presentes desde as primeiras discussões no Congresso Nacional e contribuem para acalorados debates no meio jurídico e no meio sociológico. O primeiro caso de IDC, levado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em virtude do homicídio da missionária norte-americana Dorothy Stang, ocorrido no município de Anapu, estado do Pará, em fevereiro de 2005, conferiu mais fôlego à discussão sobre a federalização das hipóteses de grave violação aos direitos humanos. Por fim, advogar-se-á a tese da plena harmonia da "federalização" com a Magna Carta e, conseqüentemente, com todo o ordenamento jurídico pátrio, elegendo-se o IDC como importante instrumento de proteção aos direitos humanos no Brasil.
A presente pesquisa é guiada pelo paradigma da primazia dos direitos humanos inerente à Carta de 1988, considerado sob a perspectiva da grande problemática mundial que se abate em nosso tempo: a proteção desses direitos. Como afirma Noberto Bobbio (1992, p. 24), com propriedade e pertinência: "o problema fundamental em relação aos direitos humanos, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los". Mesmo diante de solenes declarações, os direitos humanos continuam sendo constantemente violados e "Onde quer que eles padeçam lesão, a Sociedade se encontra enferma. Uma crise desses direitos acaba sendo também uma crise do poder em toda sociedade democraticamente organizada" (BONAVIDES, 2001, p. 528). Nesse sentido, o IDC possui imenso valor como instrumento apto a amortizar, ao menos no Brasil, tal estado de patogenia.
2. ANTECEDENTES HISTÓRICO-SOCIAIS
No plano social, é antiga a luta de organizações de defesa da pessoa humana, em sua maioria ONGs (organizações não-governamentais), para instituir no Brasil a federalização dos crimes contra os direitos da pessoa humana, o que resultou na inclusão da proposta no Plano ou Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Contribuíram como combustível para intensificar a ação da sociedade, assim como para a normatização do IDC o volumoso crescimento da violência, muitas vezes acompanhada da impunidade dos agentes infratores, em casos que, infelizmente, tornaram-se famosos não somente dentro dos limites do território nacional, mas que transpuseram as fronteiras do Brasil, como, por exemplo, os massacres, chacinas e crimes de mando ocorridos em Eldorado dos Carajás, Vigário Geral, Carandiru, Parauapebas, Xapuri, Candelária e Queimados, só para citar alguns dos mais recentes.
No espaço legislativo, a primeira iniciativa de modificação da competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes contra os direitos humanos foi encaminhada ao Congresso Nacional pelo Ministério da Justiça, através da Exposição de Motivos n. 231, de 13/05/1996, convertida, na Câmara dos Deputados, na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 368/96. O texto do Executivo previa o acréscimo ao art. 109 da CF de dois incisos, o XII ("os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos") e o XIII ("as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção dos direitos humanos ou o Procurador-Geral da República manifestem interesse").
Posteriormente, a PEC n. 368-A/96 acabou sendo apensada à PEC 96-A/92, que dispunha sobre a reforma do Poder Judiciário, de relatoria da Deputada Zulaiê Cobra, que propôs, em seu relatório, alterações ao aludido art. 109 da CF. Em votação final, a Câmara aprovou a seguinte redação em relação ao § 5º:
Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.
Quando da apreciação da matéria pelo Senado Federal, onde a PEC recebeu o n. 29/00, o relator Bernardo Cabral acrescentou ao texto aprovado pela Câmara o inciso V-B, nos seguintes termos: "os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob tutela de órgão federal de proteção de direitos humanos, nos termos da lei". Tal proposição, entretanto, não logrou êxito.
Vale destacar que durante o período de discussão e votação do projeto no Congresso Nacional, diversas entidades de classe compostas por profissionais do direito apresentaram suas sugestões, a fim de contribuir com o debate, sem faltarem críticas e questionamentos diversos. Citem-se como exemplos a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação Nacional dos Procuradores da República, a qual designou uma comissão formada em conjunto com os Procuradores do Estado de São Paulo integrantes do Grupo de Trabalho em Direitos Humanos, coordenado pela Procuradora Flávia Piovesan.
Ao final do processo legislativo, todavia, permaneceu intacta a composição aprovada na Câmara dos Deputados.
3. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Um dos aspectos que ocasiona bastante controvérsia nos debates jurídicos sobre o IDC, diz respeito à sua constitucionalidade. Essa discussão não se restringe aos juristas individualmente, mas se amplia a organizações de operadores do direito, tais como a CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público dos Estados), a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), a ANAMAGES (Associação Nacional dos Magistrados Estaduais), a AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil), a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), apenas para citar alguns exemplos.
No entanto, antes de adentrarmos no mérito da constitucionalidade da "federalização", faz-se mister tecer breves comentários sobre controle de constitucionalidade e sua incidência sobre as Emendas Constitucionais, e acerca das diferentes espécies de inconstitucionalidade.
Primeiramente, deve-se ter em mente que as leis e os atos normativos são presumidamente constitucionais. Porém, esta presunção, que é relativa (iuris tantum), poderá ser afastada ou confirmada por meio das regras de controle de constitucionalidade. Quanto à conceituação do que seja "controle de constitucionalidade", esta somente pode ser entendida levando-se em consideração o escalonamento do ordenamento jurídico em normas hierarquizadas, tal como preceitua Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito (1996, p. 215 e ss.). Como ensina Carlos Augusto Alcântara Machado (2005, p. 281):
Assim, tomando por empréstimo a teoria kelseniana, neste particular, se o ordenamento jurídico é constituído por um conjunto de normas supra-infra escalonadas formando uma pirâmide e no topo da pirâmide se encontram as normas constitucionais – ou simplesmente a Constituição – assegura-se o princípio da supremacia da constituição ou das normas origem, para utilizar uma expressão de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1978, p. 146/147), no momento em que se consagra no próprio sistema jurídico um corpo de regras de preservação da Constituição, Lei Suprema de um Estado qualquer.
O princípio da supremacia das normas constitucionais significa que
a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas (SILVA, 1996, p. 49).
Tal preceito é conseqüência direta e primordial da rigidez constitucional, que "decorre da maior dificuldade para a sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal" (SILVA, 1996, p. 49).
Com efeito, o conceito de controle de constitucionalidade está intrinsecamente vinculado à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à de rigidez constitucional. A proteção aos direitos fundamentais interfere igualmente e sobremaneira nesse conceito, pois essa guarida é a "primordial finalidade do controle de constitucionalidade" (PIZZORUSSO apud MORAES, A., 2004, p. 598). Controlar a constitucionalidade significa, por conseguinte, "verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais" (MORAES, A., 2004, p. 600).
Será inconstitucional, conseqüentemente, qualquer das espécies normativas previstas no art. 59 da CF ou os atos revestidos de indiscutível conteúdo normativo desconformes aos ditames constitucionais. Ao entrarem em colisão com a Lei Maior, observa-se a inconstitucionalidade por ação; e quando se deixa de praticar um ato determinado pela Constituição, tem-se a inconstitucionalidade por omissão. A doutrina, ordinariamente, classifica a inconstitucionalidade por ação em dois tipos: formal e material. A primeira ocorre quando "uma norma jurídica é elaborada em desconformidade com o procedimento legislativo estabelecido na Constituição, ou, ainda, quando não observa as regras de competência", gerando, quase sempre, inconstitucionalidade total do texto impugnado. Já a segunda, mais comum, é detectada quando "uma norma jurídica é elaborada em desacordo com o conteúdo material consagrado na Lei Fundamental. É dizer: a norma constitucional agasalha um conteúdo que é desrespeitado pelo legislador ordinário", podendo provocar inconstitucionalidade total ou parcial da norma fustigada A inconstitucionalidade por omissão pode ser também classificada em total ou parcial, a depender se "o legislador não cumpre ou cumpre de forma incompleta aquilo que foi determinado pela Constituição" (MACHADO, 2005, p. 282-286).
Têm-se modalidades outras de inconstitucionalidade registradas pelos doutrinadores e jurisprudência, verbi gratia, as inconstitucionalidades originária, superveniente, antecedente, conseqüente, direta, indireta, por arrastamento, nomodinâmica, nomoestática, entre outras que "na prática, nada mais são do quem variações ou desdobramentos daquelas já identificadas" (MACHADO, 2005, p. 286-288).
Em relação ao momento de realização do controle, este pode ser classificado em preventivo, visando impedir que alguma norma maculada pela eiva da inconstitucionalidade ingresse no ordenamento jurídico; ou repressivo, que busca expurgar do ordenamento jurídico a norma editada em desrespeito à Constituição (MORAES, A., 2004, p. 602). Via de regra, o sistema de controle repressivo de constitucionalidade adotado pelo Brasil é o Jurisdicional, cabendo "ao Poder Judiciário, além de suas atribuições típicas de resolver litígios, aplicando o direito ao caso concreto, a digna missão de garantir a supremacia da Lei das Leis" (MACHADO, 2005, p. 289). O controle repressivo pode ser exercido tanto da forma concentrada ou abstrata - cuja competência é do Supremo Tribunal Federal (STF) - quanto da forma difusa ou aberta - realizado, no caso concreto, por todo e qualquer juiz ou tribunal. O controle preventivo é realizado, regra geral, pelos Poderes Executivo e Legislativo (MORAES, A., 2004, p. 602-627).
É oportuno destacar também que, ao consagrar a incondicional superioridade das normas constitucionais, no sistema jurídico brasileiro não existe possibilidade de incidência dos mecanismos de controle de constitucionalidade sobre as normas constitucionais promulgadas pelo Poder Constituinte Originário. [01] Diante de tal vedação, o ordenamento pátrio não adota a teoria alemã das normas constitucionais inconstitucionais (verfassungswidrige Verfassungsnormem), que possibilita a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas por incompatíveis com os princípios constitucionais não escritos e os postulados da justiça (Grundentsheidungen) (MORAES, A., 2004, p. 631).
Outro fator que contribui para a fixação do principio da supremacia da constituição e da rigidez constitucional, é a previsão, pelo constituinte de 1988, de um processo legislativo especial e mais dificultoso que o ordinário com vistas à possibilidade de alteração das normas constitucionais. O art. 60 da CF prescreve as etapas desse processo, tendo em vista a emenda à Constituição.
A proposta de emenda constitucional é considerada um ato infraconstitucional, sem qualquer normatividade, somente ingressando na ordem jurídica após a sua aprovação, passando, então a ser preceito constitucional. "Tal fato é possível, pois a emenda constitucional é produzida segundo a forma e versando sobre conteúdo previamente limitado pelo legislador constituinte originário" (MORAES, A., 2004, p. 564). Dessa maneira, respeitados os ditames fixados pelo art. 60 da CF, a emenda ingressará no ordenamento jurídico com status de norma constitucional, devendo ser compatibilizada com as demais normas originárias. Contudo, se qualquer das limitações impostas pelo citado artigo for desprezada, a emenda será inconstitucional, devendo ser expelida do ordenamento por meio das regras de controle de constitucionalidade, em virtude da inobservância das limitações impostas pela Carta Magna. Destarte, é plenamente possível a incidência do controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, sobre emendas constitucionais, a fim de se verificar sua constitucionalidade ou não, a partir da análise do respeito aos parâmetros fixados no art. 60 da Constituição Federal para alteração constitucional. [02]
Portanto, o Congresso Nacional, no exercício do Poder Constituinte derivado reformador, submete-se às limitações constitucionais. A Constituição Federal brasileira traz duas grandes espécies de limitações ao poder de reformá-la: expressas e implícitas. As limitações previstas textualmente pela Carta de 1988, por sua vez, subdividem-se em três espécies: circunstanciais, materiais e formais. As limitações implícitas, que derivam das explícitas, dividem-se em dois grupos: alteração do titular do poder constituinte reformador e supressão dos limites expressos. Tais entraves à alterabilidade constitucional são verdadeiros mecanismos de auto-preservação (MORAES, A., 2004, p. 564).
Para os fins do presente estudo, revela extrema importância as limitações impostas pelo constituinte originário de 1988 ao poder de alterar o texto da Constituição, mormente no que se refere às limitações materiais dispostas no seu art. 60, § 4º. Nesse dispositivo encontram-se as denominadas cláusulas pétreas, as quais compõem o núcleo intangível da Carta Magna, obstando que eventuais reformas desfigurem o corpo constitucional de tal forma que possa afastar o seu espírito, mantendo-se firme o Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF) e evitando-se que o constituinte derivado suspenda ou mesmo suprima a própria constituição. Entre elas estão os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV, CF) muitos dos quais, também, direitos humanos, além do próprio IDC, que, conforme já defendido, é entendido como uma garantia à efetividade da Justiça e à celeridade processual.
A respeito de tais barreiras a alterações na Constituição, Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 19) destaca que:
As Constituições democráticas, ao estabelecerem que certos direitos e instituições encontram-se acima do alcance dos órgãos ordinários de decisão política ou, mesmo, fora de sua competência, por força das limitações materiais ao poder de reforma, atuam como mecanismos de autovinculação, ou pré-comprometimento, adotados pela soberania popular para se proteger de suas paixões e fraquezas. [...] O constitucionalismo democrático traça, nesse sentido, um conjunto de limitações à maioria com o propósito de favorecer a dignidade humana e fortalecer a própria democracia, estabelecendo os princípios e as meta-regras a partir das quais o sistema democrático deve funcionar, sem, no entanto, suprimi-los.
Ao tratar das limitações materiais expressas, o aludido jurista aduz que há uma distinção entre as normas constitucionais ínsita à própria Carta de 1988. Para ele, levando em consideração o elenco disposto no art. 60, § 4º, o "constituinte impôs, assim, uma distinção entre preceitos meramente constitucionais – que podem ser alterados pelo procedimento ordinário de mudança constitucional – e dispositivos superconstitucionais – imunes ao poder constituinte reformador" (VIEIRA, 1999, p. 21). Dessa forma, segundo Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 135), o constituinte teria concedido a
superconstitucionalidade a diversos setores da Constituição, ou seja, um conjunto de princípios e normas constitucionais hierarquicamente superiores aos demais dispositivos da Constituição. Superconstitucionalidade, e não supraconstitucionalide, pois embora superiores, esses dispositivos ainda se encontram dentro da órbita da Constituição: direito positivo, e não transcendente.
Todavia, o próprio doutrinador supracitado reconhece que a alusão a posições hierarquicamente distintas dentro do texto constitucional é uma "idéia que vai de encontro ao que pensa boa parte dos constitucionalistas" (VIEIRA, 1999, p. 135). Também entra em confronto com a já citada jurisprudência do STF, que rechaça essa teoria. Assim sendo, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para se declarar inconstitucional uma norma originária, o que, conforme já visto, não é possível no direito pátrio, pois as duas regras possuem a mesma hierarquia no escalonamento do ordenamento jurídico.
Observa-se nitidamente, entretanto, uma superioridade axiológica dessas limitações, uma vez que elas se identificam com a própria essência da Constituição. Essa posição privilegiada se limita a suplantar o poder de reforma constitucional, impedindo a proposta de emenda com tendências a modificar ou a abolir tais elementos, o que somente seria possível com o advento de uma nova Constituição. Possibilita, igualmente, o controle de constitucionalidade sobre as atividades do Poder Constituinte derivado reformador, inclusive sobre as próprias emendas à Constituição. Mesmo contrário à corrente dominante de equivalência hierárquica das normas constitucionais, assiste razão a Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 29), quando afirma que um "constitucionalismo fortalecido por dispositivos superconstitucionais – como os inscritos no texto de 1988 – pode servir como proteção contra a irracionalidade ou a paixão daqueles envolvidos pelo canto místico das sereias". [03]
O art. 109, § 5º da CF, onde se insere o IDC, objeto desta pesquisa, foi introduzido por meio de Emenda Constitucional, o que permite o questionamento de sua constitucionalidade. De fato, já tramitam no STF diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), com o escopo de que seja declarado inconstitucional tal instrumento, com a sua conseqüente retirada do ordenamento jurídico pátrio. As linhas escritas neste tópico são importantes para se entender os argumentos daqueles que são abjetos e, noutro extremo, dos defensores da constitucionalidade do IDC, a serem abordados em seguida.