4. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À CONSTITUCIONALIDADE DO IDC
Os opositores da denominada "federalização das hipóteses de grave violação de direitos humanos" enumeram uma série de críticas ao deslocamento de competência por ele viabilizado. No tocante à sua constitucionalidade formal, esta é indiscutível, já que o processo especial previsto no art. 60 da CF, com vistas à Emenda Constitucional, foi regularmente obedecido em todos os seus aspectos procedimentais. Do mesmo modo, não se fala em inconstitucionalidade por descumprimento às limitações circunstanciais, já que ausente qualquer das ocasiões anormais e excepcionais assentes no art. 60, § 1º da Carta Maior. O que se discute, principalmente, é se o instrumento em exame possui constitucionalidade material.
Entendem, portanto, os oponentes do IDC, que o dispositivo inserido pela EC 45/04 está eivado por flagrante inconstitucionalidade material. O melhor exemplo, sintetizando a lista de argumentos contrários à manutenção do art. 109, V-A c/c § 5º da CF no ordenamento jurídico pátrio, está assentado de forma clara e auto-explicativa numa moção elaborada pela CONAMP, em 07 de março de 2005, expondo que:
A CONAMP entende que o artigo 109, § 5º da CF/88, introduzido pela EC 45/04 (Reforma do Judiciário), é inconstitucional pelos seguintes motivos:
(1) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" é inconstitucional por ferir cláusula pétrea do juiz natural, eis que estabelecido por critério subjetivo (conceito de "violação de direitos humanos") (cf. Ministro Celso de Melo, no HC 67.759/RJ);
(2) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" é inconstitucional por ferir cláusula pétrea do "Pacto Federativo", eis que trata-se de uma "intervenção federal nos Estados" de "forma branca", já que a verdadeira intervenção federal(artigo 36 da CF/88) impede votação de emenda constitucional;
(3) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" é inconstitucional por criar uma espécie oblíqua de "Chefia do PGR sobre os PGJ''s", lembrando que a figura é o retorno com outro rótulo da antiga avocatória, abolida pela legislação, sendo que consagra o Estado unitário ao invés do Estado Federado (aliás, o próprio nome do instituto já mostra o equívoco do assunto), já que não se está "federalizando" e sim unificando tudo para União;
(4) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" gera "descriminação odiosa" pois desconfia de instituições do Estado-membro (MPE e Justiça Estadual), quando o critério é meramente de competência;
(5) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" é figura totalmente desnecessária no Estado democrático de Direito, eis que existem instrumentos já consagrados como:
5.1- "federalização (leia-se - unificação) das investigações" (a Polícia Federal pelo artigo 144, parágrafo primeiro da CF/88 com regulamentação da Lei 10.446/02, artigo 1, III já consagra a atuação da milícia federal em casos de violação de direitos humanos);
5.2- desaforamento no rito do Júri, onde os jurados sejam suspeitos ou comprometidos (artigo 424 do CPP) ou na Justiça Castrense (artigo 109 do CPPM).
Aliás, o caso "Dorothy", missionária assassinada no Pará é doloso contra a vida, como tantos outros delitos que ofendem tratados e nestes casos, quem julga são membros do povo, seja no Tribunal do Júri Estadual ou Federal, o que prova a inconstitucionalidade da norma por retirar do Tribunal do Júri local o princípio da imediatidade e identidade física, por critério subjetivo, além de ofender a própria ampla defesa, eis que com o "sensacionalismo da mídia", muitos casos podem levar ao "pré-julgamento".
5.3- Intervenção federal no Estado-membro, quando a gravidade do assunto comprometer todas autoridades locais/Estadual na omissão de violação de tratados internacionais - artigo 36 da CF/88.
Quanto a isto, antes mesmo do massacre de Eldorado de Carajás e da morte da missionária, o culto PGR à época, Dr. Aristides Junqueira, ajuizou no STF intervenção federal no Pará e o STF negou.
Se existe "federalização das investigações", "desaforamento no Júri" e "intervenção federal nos Estados", qual o papel da "federalização dos crimes"? Qual hipótese realmente poderia justificar uma violação do promotor e juiz natural como esta, fora dos casos já previstos?
(6) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" é inconstitucional por violar a ampla defesa, eis que a mídia, com a federalização, pode provocar o "pré-julgamento" do caso, o que demonstra um aparente "Tribunal de Exceção", já que o juiz natural encontra-se completamente comprometido com um critério subjetivo feito por apenas uma única pessoa;
(7) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" é inconstitucional pela ausência de contraditório com o Procurador-Geral de Justiça do Estado, que sequer será respeitado como Chefe do MPE, eis que basta o PGR, que não é Chefe do MPE, desejar a suscitação e o STJ concordar que tudo estará comprometido, inclusive "causas cíveis", eis que a CF/88 não fala de "causas criminais", de sorte que pode haver comprometimento político com a medida em total desrespeito a regras objetivas e prévias de competência para evitar Tribunal de Exceção;
(8) A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" é inconstitucional porque resulta na quebra da razoável duração do processo (nova redação do artigo 5º, LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação), eis que cabendo Recurso Extraordinário da "federalização" dos crimes (ou "das causas") pelos advogados do réu ou mesmo pelo PGJ do Estado questionado, o processo demorará até julgamento no órgão competente, podendo, em crimes de penas relativamente médias, ensejar prescrição.
Porém, apesar do Ministro da Justiça, Dr. Márcio Thomas Bastos e ainda o Presidente do STJ, Dr. Édson Vidgal, terem se posicionados contrários a medida no caso da missionária Dorothy, no Pará, o Exmº. Dr. Cláudio Fontelles insiste neste absurdo jurídico, leia-se, deslocar o julgamento do Júri Estadual para colocar no Júri Federal, sendo que quem julga É O POVO e não um juiz federal, leia-se, quem julga é quem não tem noção em Direito.
O argumento que as autoridades Estaduais do Pará não tomaram providências é sofisma, eis que Autoridades Federais também foram avisadas e quedaram-se inertes, conforme noticiado também pela imprensa.
Por todo o exposto, a CONAMP REPUDIA O DESLOCAMENTO DO JUIZ E PROMOTOR NATURAL DO FATO, ESTUDANDO O AJUIZAMENTO DE ADIN NO STF CONTRA A VERDADEIRA "GRAVE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS", QUAL SEJA, A "FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES" (VIOLA OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS CONSTITUCIONALMENTE PREVISTOS COMO CLÁUSULA PÉTREA).
Nessa mesma linha, a AMB e a ANAMAGES, as quais ajuizaram as Adins n. 3486 e 3493, respectivamente, sendo que na última há pedido liminar, também combatem a existência do IDC, utilizando-se de diversos pontos da monção elaborada pela CONAMP para fundamentar suas ações de inconstitucionalidade. [04]
A AMB alega que a federalização está amparada em critérios vagos e que é subjetiva a definição do que vem a ser "graves crimes contra os direitos humanos". Também declarar que esse incidente de deslocamento, por poder ser feito a qualquer tempo, poderá ser realizado até mesmo depois de uma decisão da Justiça Estadual, o que infringiria o princípio da segurança jurídica.
Já a Adin interposta pela ANAMAGES informa que se pretende institucionalizar uma "intervenção federal nos Estados de forma branca" além do que "a federalização dos direitos humanos gera discriminação odiosa, pois parece desconfiar da capacidade e eficiência das instituições dos Estados-Membros", argumentando, ainda, que a garantia do devido processo legal seria violada, especialmente a ampla defesa e o contraditório, já que "pouquíssimas são as cidades que possuem varas da Justiça Federal. Isso pode trazer um grande prejuízo ao réu, pois, em vez de ter seu processo julgado em sua comunidade – onde está mais perto dos meios de provas (como, por exemplo, suas testemunhas) – terá que se deslocar para outra cidade".
Do mesmo modo, os doutrinadores abjetos ao IDC fazem uso de vários dos questionamentos referidos anteriormente. André Ramos Tavares (2005, p. 52) nota que possível inconstitucionalidade do incidente de deslocamento de competência residiria na violação ao princípio do juiz natural, uma vez que, após a ocorrência do fato e a instauração de processo judicial, "a competência para sua apreciação pode, por critérios vagos e imprecisos, ser alterada quanto ao órgão que procederá ao julgamento da causa", e conclui:
Assim, embora se possa argumentar que a possibilidade de deslocamento passa a integrar o conjunto de regras previamente elaboradas acerca da possibilidade de deslocamento, sua imprecisão e completa falta de objetividade impedem que a discussão se dissipe com tal argumento, pois sempre falecerá ao mecanismo a conjugação de regras prévias e precisas (não subjetivamente independentes).
Nesta mesma linha, comentam Luiz Alexandre Cruz Ferreira e Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega (2005, p. 462):
A primeira matéria que cumpre discutir é o reconhecimento expresso pelo reformador de uma maior dignidade e importância da Justiça Federal em relação à Justiça Estadual. Aquela antiga preocupação do constituinte originário de relacionar a matéria da competência às atividades objetivas desenvolvidas, preservando-se uma idêntica importância institucional, já não existe mais. Fica reconhecida a indignidade da Justiça Estadual e sua incapacidade em "assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais". O critério utilizado é muito claro: quando a violação dos direitos humanos for leve, a competência é da Justiça Estadual. Quando a violação for grave, a competência é da Justiça Federal.
Mais grave, entretanto, é a fixação de um critério de competência condicional e fundado na pura subjetividade de uma única autoridade. Ora, o art. 5°, LIII, da CF/1988 assegura que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". É inerente ao princípio do devido processo legal que a regra de competência seja objetivamente fixada antes do ajuizamento da lide. Assim foi durante grande parte da história brasileira. Ocorre que, a partir da reforma, a competência para as ações relativas à violação de direitos humanos não pode mais ser fixada no momento da propositura da ação, mas depende de uma condição extrínseca às próprias partes litigantes, qual seja o oferecimento de pedido de "deslocamento de competência" formulado pelo Procurador-Geral da República.
[...]
Em razão do exposto, pensamos que também esta disposição é inconstitucional.
Lilian Mendes Haber, Carolina Ormanes Massoud e Ibraim José das Mercês Rocha (2005, p. 27) chegam a defender que constituiria fato "menos danoso se a EC n. 45, pretendendo prestigiar a federalização dos crimes contra os direitos humanos, sem desmerecer o Ministério Público e a Justiça Estadual, tivesse atribuído competência expressa à Justiça Federal, pura e simplesmente".
5. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À CONSTITUCIONALIDADE DO IDC
Este tópico é destinado não somente a registrar o discurso favorável ao IDC, mas também a rebater as críticas desferidas a esse relevante instrumento e, enfim, concluir pela sua compatibilidade com o texto da Carta Magna de 88, em todos os sentidos imagináveis.
Os principais argumentos utilizados pelos defensores da providência modificadora de competência, ora em estudo, são: por fim à conjectura paradoxal onde o Estado brasileiro é responsabilizado pelo descumprimento das obrigações internacionais na pessoa jurídica da União, de forma única e exclusiva, sem que esta tivesse, antes da Reforma do Judiciário, a perspectiva nacional de investigar, processar ou julgar os seus infratores; dotar o sistema jurisdicional de melhores instrumentos para enfrentar a impunidade e a afronta à ordem jurídica, em casos envolvendo direitos humanos, muitas vezes ausentes nos órgãos estaduais.
Pedro Lenza (2005, p. 497-498) destaca que a previsão estabelecida no art. 109, V-A c/c o § 5º do mesmo dispositivo da CF foi "muito bem vinda e acertada" no sentido de adequar "o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos", uma vez que
Nos termos do art. 21, I, a União é quem se responsabiliza, em nome da República Federativa do Brasil, pelas regras e preceitos fixados em tratados internacionais. Assim, na hipótese de descumprimento e afronta a direitos humanos no território brasileiro, a única e exclusiva responsável, no plano internacional, será a União, não podendo invocar a cláusula federativa, nem mesmo "lavar as mãos" dizendo ser problema do Estado ou Município. Isto não é aceito no âmbito internacional.
Já no tocante ao valor do IDC como mecanismo conservador da observância dos direitos da pessoa humana na esfera nacional, Vladimir Aras (2005, p. 01) aduz que:
Trata-se tão-somente de um instrumento vocacionado a preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Organização dos Estados Americanos e, por via indireta, o Tribunal Penal Internacional) e de efetiva proteção aos direitos humanos em nosso território, em virtude da internacionalização do direito humanitário e das obrigações derivadas de inúmeras convenções universais firmadas pelo País, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José, 1969), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o recente Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, e as convenções da ONU contra a tortura e para a eliminação de todas as formas de discriminação racial, por exemplo.
Partem também dessa premissa as organizações que acastelam o IDC entre as quais estão a OAB, a ANPR e a AJUFE. Esta última, em nota oficial na qual antevê a improcedência da Adin ajuizada pela AMB contra a federalização, observa, de forma abalizada, a importância do IDC:
A grande importância da federalização é que ela introduz no Brasil a adoção de um sistema multinível de responsabilização pelos Direitos Humanos, no qual, se uma esfera judicial não conseguir dar a resposta adequada na apuração e julgamento desses crimes, a responsabilidade passa para a outra. E o país pode, assim, como signatário que é de vários tratados internacionais sobre direitos humanos, garantir sua defesa perante esses tribunais.
Nessa linha, Flávia Piovesan (2005a, p.79) ressalta que a "federalização dos crimes de direitos humanos significará um instrumento de avanço para a proteção e defesa desses direitos". Com atenção à preocupação que deve estar presente num Estado Democrático de Direito, como o é a República Federativa do Brasil, consoante disposto no art. 1º da Carta Magna de 1988, em relação aos mecanismos estatais dispostos ao resguardo dos direitos da pessoa humana, a procuradora salienta ainda que:
Se qualquer Estado Democrático pressupõe o respeito dos direitos humanos e requer a eficiente resposta estatal quando de sua violação, a proposta de federalização reflete sobretudo a esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos respeitados (PIOVESAN, 2005c).
Além da referida importância do IDC, como meio de compatibilizar o direito interno brasileiro com o processo de internacionalização dos direitos humanos que se encontra em gradativo crescimento desde o final da Segunda Guerra Mundial, institutos desta natureza, isto é, que provocam o julgamento pela jurisdição federal de causas que podem acarretar responsabilização internacional, encontra respaldo no direito comprado. José Francisco Resek (apud SCHREIBER; CASTRO E COSTA, 2005) discorre sobre este aspecto que: [05]
Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações.
Pode-se citar um dos casos de "federalização" previsto no direito alienígena, que ocorre nos Estados Unidos da América. Nesse país, os crimes de narcotráfico podem ser julgados tanto pela Justiça dos Estados-membros quanto pela Justiça Federal, bastando, por exemplo, que a prisão do traficante seja realizada pela Drugs Enforcement Administration (órgão de combate às drogas submetido à União), para que o delito seja de competência da Justiça Federal (ARAS, 2005, p. 02).
Outrossim, a hodierna sistemática mundial de proteção dos direitos humanos, somada ao dever internacional de persecução criminal, "admite seja um caso submetido à apreciação de organismos internacionais quando o Estado mostra-se falho ou omisso no dever de proteger os direitos humanos" (PIOVESAN, 2005a, p. 81, 2005c). Aliás, esse raciocínio é análogo ao empregado no caso do deslocamento da competência para a Justiça Federal, que só será possível se comprovada a falha na prestação jurisdicional da Justiça do Estado-membro, sendo esse um de seus requisitos inafastáveis. Nesse aspecto, o IDC não trouxe qualquer novidade ao mundo jurídico, acrescendo-se apenas mais uma instância a nível nacional com vistas a evitar o embaraço e as sanções perante a comunidade mundial por violação de direitos humanos previstos em tratados internacionais dessa estirpe.
Verifica-se, igualmente, no plano do direito interno, que a "proposta da federalização encontra-se em plena harmonia com o sistema constitucional" (PIOVESAN, 2005a, p. 81). A Constituição de 1988 possui um forte conteúdo ético, resguardando lugar de destaque e conferindo enorme valor aos direitos da humanidade. O princípio da dignidade da pessoa humana, essência dos direitos humanos, está prenotado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF), que é regida em suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4º, II, VIII e IX, da CF). Outrossim, a Lei Maior enumera em seu art. 5º um extenso rol de direitos e garantias fundamentais que "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais" (art. 5º, § 2º, CF) dos quais o Brasil seja parte.
Ressalte-se, ainda, a colocação dos direitos e garantias fundamentais - que são o "núcleo central dos Direitos Humanos" (NOGUEIRA, 2003, p. 249) - como cláusula pétrea material no art. 60, § 4º, IV da CF, e a drástica medida de intervenção federal nos Estados-membros a fim de assegurar a observância dos direitos da pessoa humana (art. 34, VII, b, CF).
Atesta-se, diante do paradigma da primazia dos direitos humanos inerente à CF, que, num aparente conflito entre a proteção desses diretos e o pacto federativo, a primeira deve prevalecer sobre o segundo. Isso porque "ao acolher direitos fundamentais e princípios formais de justiça a Constituição convida todos os seus intérpretes a uma leitura ética do seu texto" (VIEIRA, 1999, p. 240). [06] Observa-se que a Carta de 1988, em virtude se seu forte conteúdo axiológico e democrático, prefere o ético ao político. [07] Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 241-242):
O princípio da Federação, por exemplo, prima facie, não possui valor moral em si. [...] por mais que se busque valorizar a Federação, enquanto mecanismo de realização da autonomia individual, ela não alcança a posição de condição de realização da dignidade.
[...]
Portanto, não sendo o princípio federativo um valor ético de importância transcendente, ele deve ceder quando em confronto com o avanço de outros princípios fundamentais. Caso, por exemplo, se aprove emenda permitindo à Justiça Federal apurar violações aos direitos humanos perpetradas por funcionários dos Estados – numa clara redução das competências judiciais dos Estados –, o magistrado constitucional será obrigado a proceder a uma ponderação entre os benefícios trazidos aos direitos humanos e as perdas à Federação. Nesse confronto entre cláusulas superconstitucionais, que protegem um princípio estruturante da organização do Estado, e a proteção da dignidade humana, caberá ao magistrado, no caso concreto, dar prioridade a um deles. E, como a Federação não é um valor em si, mas uma simples forma de organização do Estado, esta deve ceder em nome dos direitos fundamentais. O que não significa que o princípio federativo perca sua validade. Diferentemente do conflito de norma, o conflito entre princípios não deve ser resolvido pela exclusão da norma derrotada, que perde sua validade. No caso dos princípios eles não perdem sua validade, senão seu peso naquele caso específico.
Das considerações acima, verifica-se que não existe direito absoluto, ou seja, que não possa ser relativizado quando do choque com outro direito normatizado em diploma jurídico de mesma força hierárquica. As cláusulas pétreas não fogem a essa regra. [08] Neste conflito, ocupa seu lugar primordial o princípio da proporcionalidade, "princípio vivo, elástico, prestante, protege ele o cidadão contra os excessos do Estado e serve de escudo à defesa dos direitos e liberdades constitucionais" (BONAVIDES, 2001, p. 395).
Paulo Bonavides (2001, p. 395) cita como exemplo de aplicação do preceito trazido à lume que se insere, dentre outros lugares do texto constitucional, no "§ 3º do art. 36 sobre intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal", um dos casos de ação interventiva, a qual, como visto, possui semelhança com o IDC.
Tal máxima constitucional compõe-se de três elementos: pertinência ou aptidão (adequação do meio escolhido), necessidade (proibição de excesso ou escolha do meio mais suave) e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação, avaliação ou meio que leva mais em conta o conjunto de interesses em jogo no caso específico), exercendo sua principal função na esfera dos direitos fundamentais, servindo, antes de qualquer coisa, à atualização e efetivação da proteção da liberdade aos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2001, p. 359-361).
Somente a partir do advento histórico da concepção, hoje em ascensão, de Estado de Direito atado ao princípio da constitucionalidade, "que deslocou para o respeito dos direitos fundamentais o centro de gravidade da ordem jurídica", compreende-se o conteúdo do princípio da proporcionalidade, sendo o controle por este efetuado o próprio controle de constitucionalidade. "A inconstitucionalidade ocorre enfim quando a medida é ‘excessiva’, ‘injustificável’, ou seja, não cabe na moldura da proporcionalidade" (BONAVIDES, 2001, p. 361-362).
Nota-se que, ao contrário do exemplificado por Oscar Vilhena Vieira na transcrição logo acima, o IDC nem mesmo chega a subtrair qualquer competência originária da Justiça Estadual. Outrossim, não se diagnostica sequer um arranhão no princípio do pacto federativo, devido à natureza subsidiária da federalização das hipóteses de grave violação de direitos humanos, somente possível diante, também, da comprovação de que a Justiça do Estado-membro tenha sido de alguma forma maculada. E, mesmo se o fosse, no conflito entre os dois preceitos pétreos, os direitos humanos prevaleceriam, tendo no IDC o meio mais pertinente, necessário e ponderado a resguardar a ordem e os preceitos basilares da Constituição, em virtude da aplicação do princípio da proporcionalidade.
A essa mesma conclusão chegou o Ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do primeiro caso apreciado pelo STJ, entendendo que o incidente deve ser apreciado à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), estes compreendidos na comprovação da presença cumulativa e indissociável dos três requisitos de admissibilidade do IDC (grave violação a direitos humanos, risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil e falha das instituições públicas estaduais na apuração e punição da grave violação), exame a ser realizado em cada situação de fato, levando-se em consideração suas circunstâncias e peculiaridades detidamente. Consignou-se no IDC paradigmático que:
O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente.
Com efeito, tratando-se de uma garantia constitucional aos direitos humanos, a regra do art. 109, § 5º, CF, além de possuir eficácia plena (art. 5º, § 1º, CF), tem caráter instrumental. É, nessa via, uma norma de processo que possibilita o deslocamento da competência, de forma horizontal, da Justiça Estadual para a Justiça Federal, que nada mais são do que partes do todo que compõe uma só Justiça. O princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV. CF) não é desobedecido, como muitos alegam; ao revés, é efetivado, já que o processo que se encontrar irregular na Justiça Estadual é impelido, por intermédio do IDC, a um consentâneo desenvolvimento com a lei em outra esfera, isto é na Justiça Federal. Nesta última, e aí sim, desdobrar-se-ão os demais atos processuais, dando-se continuidade (e efetividade) ao devido processo legal até final julgamento. [09]
Vale destacar também que o IDC deve ser visto em consonância com o novo inciso LXXVIII do art. 5º, introduzido também pela EC 45/04, o qual estabelece o princípio da celeridade processual, assegurando a todos, no âmbito judicial e administrativo, "a razoável duração do processo e os mios que garantam a celeridade de sua tramitação". Tais dispositivos coexistem no plano genético com as regras, simultaneamente introduzidas pela "Reforma do Judiciário", do art. 5º, § 3º - que equiparou os tratados internacionais de direitos humanos às emendas constitucionais, desde que "aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos respectivos membros" - bem assim a do seu § 4º - que sujeita o Brasil "à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão" - o que consagra o "princípio da complementaridade, preservando-se o sistema jurídico interno na medida em que o ‘TPI’ só exercerá jurisdição em caso de incapacidade ou omissão dos Estados" (LENZA, 2005, p. 496).
Além disso, conforme sublinha Vladimir Aras (2005, p. 01), independentemente do IDC, "já se podia antever, no regime anterior à emenda constitucional n. 45/2004, hipótese de competência da Justiça Federal para o julgamento de graves crimes contra os direitos humanos que comprometessem a responsabilidade internacional do Brasil". Têm-se, como exemplos, os incisos IV e V do art. 109 da CF, os quais já se referiam à competência da Justiça Federal para investigar, processar e julgar os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União e os previstos em tratados ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente (denominados de "crimes à distância"), respectivamente. O interesse da União é evidente diante de ser ela quem mantém relações com Estados estrangeiros e firma compromissos com organizações internacionais.
No plano infraconstitucional, consoante observa Flávia Piovesan (2005a, p. 81), tal "proposta está em absoluta consonância com a sistemática processual vigente (vide, a título exemplificativo, o instituto do ‘desaforamento’)". O desaforamento, previsto no art. 424 do CPP, trata-se de um deslocamento de competência, ocorrente nas hipóteses de julgamento pelo Tribunal do Júri, onde se retira o processo do foro em que está para que o julgamento se processe em outra comarca se presentes as situações previstas na lei processual. Como ensina Júlio Fabbrini Mirabete (2004, p. 545): [10]
Constitui assim o desaforamento derrogação da regra de competência territorial (ratione loci), pelo qual o réu é julgado fora do distrito da culpa por ato excepcional da Instância Superior. Essa providência não viola o princípio do juiz natural, nos crimes dolosos contra a vida, no Tribunal do Júri, mas apenas faz variar o local do julgamento nas hipóteses do artigo 424 do CPP, que não é incompatível com a Constituição Federal e não enseja um "tribunal de exceção".
Os pressupostos do desaforamento acabam sendo bastante semelhantes aos do IDC: falta de isenção da Justiça Estadual ou negativa de Justiça, por exemplo, assim como a excessiva demora do julgamento. A idéia subjacente nos dispositivos e retratada na expressão "interesse da ordem pública" (art. 424, caput, CPP) é semelhante nos três casos: evitar a impunidade ou a denegação de Justiça. Os efeitos da aplicação do desaforamento e do deslocamento são simétricos, isto é, em ambos os casos há remessa da ação a outra vara para julgamento perante juízo isento. Nesse sentido se posiciona Vladimir Aras (2005, p. 01):
Portanto, estamos certos de que, se o desaforamento é constitucional, o incidente de deslocamento também o é. E, com o perdão do trocadilho, é um desaforo dizer o contrário, mormente quando se sabe que jamais houve oposição a tão longevo e útil instituto. De fato, na sua atual feição, o desaforamento existe há mais de sessenta anos no CPP e sequer está previsto ou "autorizado" na Constituição.
Ressalte-se, contudo, que a existência do instituto do desaforamento não afasta a incidência do deslocamento de competência previsto no art. 109, § 5º, CF. Aquele se restringe exclusivamente aos casos submetidos ao Tribunal do Júri e muda-se apenas a sede do juízo processante, enquanto que o IDC é mais amplo, aplicando a casos que possam ou não se tratar de crimes dolosos contra a vida, existindo a modificação da competência raione materiae (da Justiça Estadual para a Justiça Federal) com a alteração ou não da comarca, vinculada à existência de Vara Federal na região.
Ad argumentandum tantum, em favor do IDC existe no ordenamento jurídico brasileiro outros instrumentos processuais que acarretam modificações, seja de atribuição seja de competência. De fato, por força do art. 144, §1º, I da CF, a Polícia Federal pode apurar "infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme". A Lei n. 10.446/02, no seu art. 1º, III, regulamentou essa atribuição da polícia judiciária da União, concorrente com a da Polícia Civil Estadual, de investigar infrações penais "relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte", havendo, portanto, uma persecução conjunta por ambas as corporações policiais (ARAS, 2005, p. 01).
Cite-se, ainda, o caso da ação penal privada subsidiária, garantia individual que se coaduna com o princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF), e está prevista no art. 29 do CPP. Portanto, em caso de inércia absoluta do Ministério Público (MP), faculta-se ao particular ofendido ou a seu representante legal, manejar queixa-crime para a persecução criminal de delitos originariamente de ação penal pública. Trata-se, pois, de substituição de legitimado. Como aqui se está diante de um direito fundamental talhado para garantir o acesso à Justiça e à prestação jurisdicional, ninguém ousa inquiná-lo de violador do princípio do promotor natural ou do princípio acusatório. "Nesta medida, a ação privada subsidiária da pública é um dos meios que se presta a garantir a célere tramitação dos feitos criminais, diante da demora injustificada ou da inércia do Ministério Público em promover a ação penal" (ARAS, 2005, p. 01).
Situação de claro deslocamento de competência da Justiça Estadual para a Federal ocorre nos casos de conexão entre crimes de competência federal e crimes de competência estadual. A questão está hoje sumulada pelo STJ no enunciado n. 122: "Compete à Justiça Federal o Processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, ‘a’, do Código de Processo Penal". "Com isso, o STJ pacificou o entendimento de que, no concurso de ‘jurisdições’ de igual categoria (juiz de Direito vs. juiz federal), a competência federal prepondera sobre a competência estadual. A primeira é expressa na Constituição, ao passo que a segunda é residual, embora mais ampla" (ARAS, 2005, p. 01).
Ainda no que concerne à competência, as corriqueiras exceções e os conflitos entre juízos diversos são defesas processuais tradicionais, que ocorrem no curso de ações penais e cíveis, além dos casos de remoção ex officio de magistrados (que atendem ao interesse público, de acordo com o art. 103-B, § 4º, III, CF), inexistindo, em todos esses exemplos, ofensa alguma aos princípios da segurança jurídica e do juiz natural. Segundo salienta Vladimir Aras (2005, p. 01):
Tais instrumentos processuais jamais foram contestados ao argumento de que ofendem o princípio do juiz natural (art. 5º, LVIII, CF). Quantas são as exceções de incompetência (em razão da função, materiale territorial), de suspeição e de impedimento que alteram o juízo ou afastam juízes antes acreditados como "naturais"? Evidentemente, essas ferramentas de processo, como também o IDC, não afetam a segurança jurídica na atividade jurisdicional, pelo simples fato de alteraram o juízo tido como competente. E isto é óbvio, porque todos os órgãos jurisdicionais envolvidos, tanto nas velhas exceções como no novo incidente de deslocamento, são pré-existentes e pré-estabelecidos, não existindo qualquer juízo ex post factum ou tribunal de exceção. Como antes se disse, o juiz federal que receberá a causa deslocada é também juiz natural porque, desde o início, segundo a própria Constituição brasileira, aquele juízo era virtualmente ou condicionalmente competente para os processos relativos a graves violações a direitos humanos. Trata-se então de juiz natural potencial.
Afora tudo o que já foi dito, apenas para rebater de forma mais explícita outras críticas fomentadas pelas associações e doutrinadores desafetos ao IDC, sintetizadas no documento apresentado pela CONAMP (v. item 2.2), vê-se que o deslocamento em questão não ressuscita a antiga avocatória, abolida da legislação. Do mesmo modo não entra em confronto com os princípios da ampla defesa e do contraditório, devido à sua natureza contenciosa. Tais aspectos já foram discutidos quando da análise da natureza jurídica do aludido IDC (v. item 1.3).
Deve-se também considerar que a finalidade do incidente de deslocamento é proteger direitos fundamentais das vítimas e assegurar o interesse público da persecução criminal e da obediência aos direitos humanos, com o escopo de reduzir a impunidade. O instituto presta-se também à proteção de autores de delitos, já condenados ou não, e que venham a ter seus direitos individuais gravemente violados pelo Estado. Neste sentido, ainda que se pudesse falar em afastamento do princípio do juiz natural (o que não é efetivamente o caso, consoante demonstrado), a adequada ponderação dos interesses contrapostos permitiria perfeita harmonização do aparente conflito, em favor do reconhecimento da constitucionalidade do incidente de deslocamento da competência, já que o mesmo tem por escopo maior ampliar a efetividade da Justiça, reduzir a impunidade e garantir direitos da pessoa humana. "Em síntese, o constituinte derivado não reduziu a esfera de proteção dos direitos do cidadão, mas sim a ampliou por meio de um novo instrumento garantista, o incidente de deslocamento de competência" (ARAS, 2005, p. 01).
Por fim, é digno de nota, a título de precedente judicial, a decisão exarada pelo STJ no leading case motivado pela morte da missionária norte-americana Dorothy Stang. No IDC n. 01/PA, como foi autuado, foram rejeitadas as preliminares argüidas pela defesa de inépcia da inicial e a de que o dispositivo constitucional seria norma de eficácia contida. Um dos argumentos utilizados pelos suscitados foi o da ausência de norma legal definidora de um rol enumerando os crimes praticados com grave violação de direitos humanos, o que foi rejeitado de plano. Ficou consignado no julgamento unânime que "não há, também, incompatibilidade do IDC com qualquer outro princípio constitucional ou com a sistemática processual em vigor". Restou, portanto, afastada a inconstitucionalidade da federalização, ora em exame, assim como todos os demais argumentos que lhe são opostos.
Pelo exposto, faz-se mister concluir que o IDC está em plena harmonia com a ordem constitucional e infraconstitucional vigente. Mesmo diante do aparentemente impreciso teor do que sejam "hipóteses de grave violação de direitos humanos", questão a ser enfrentada adiante, os argumentos tecidos neste tópico são suficientes para afastar qualquer tentativa de infectar o IDC com o crivo da inconstitucionalidade. [11]