O eterno e grave problema da sonegação fiscal no Brasil, gerado em grande parte pela voracidade incontrolável de administradores incompetentes, combinado com a penúria dos Estados da Federação, desde sempre esmagados pela União – cujo Poder Executivo se comporta impunemente como se regesse um Estado unitário, acumpliciado com Congresso e STF – e mais do que nunca estrangulados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, levou quase todos os entes federados, municípios inclusive, a apostarem todas as fichas nos famigerados programas de refinanciamento de débitos tributários, que ano a ano concedem parcelamentos a perder de vista, benefícios, facilidades e perdões inesgotáveis aos sonegadores que se disponham a depositar qualquer quantia no tesouro público.
Por outro lado, a partir da Lei 9.249/95 (art. 34) não só a doutrina [01] e a jurisprudência [02] se consolidaram no sentido de ver no parcelamento do débito uma causa de extinção de punibilidade, já que supostamente significaria "promover o pagamento do tributo", como também o surgimento da Lei 10.684/03 (art. 9º, § 2º) rapidamente viu seguir irrefreável exegese no mesmo sentido (causa extintiva da punibilidade) [03] decorrente do pagamento do débito tributário a qualquer tempo, até depois do trânsito em julgado da condenação [04].
Com isso, escancarou-se de vez que a única e exclusiva finalidade do direito penal tributário brasileiro é e sempre foi compelir o contribuinte com a sombra temível da espada do processo criminal. Ruiu por completo o que restava da força moral do Fisco e do discurso do incentivo à solidariedade social, ao espírito cívico. Autores que de um modo ou de outro por anos a fio clamaram no deserto por um fim moral para o direito penal tributário – a exemplo de Hugo de Brito Machado, que protesta veementemente contra a ausência de conteúdo ético nas normas tributárias [05] – acabaram flagrantemente enxovalhados pelo Estado balofo e glutão, cujos serviços seguem sempre deteriorados, mas que não pára de engordar, parecendo estar a ponto de explodir: mais ministérios, mais secretarias, mais comissões, mais cargos, mais gratificações, mais, mais, mais. Os reis da Idade Média mandavam mercenários extorquir suas próprias cidades; o paquidérmico império colonial português exigia a derrama; as atabalhoadas esferas do governo no Brasil têm sua super-receita, seus computadores orwellianos, seus fiscais onipresentes, que garantem ao Estado brasileiro, maior "tributador" (para não dizer "impostor") do mundo, a discutível honra de ostentar-se como eficiente em cobrar tributos acima de tudo.
Nessa realidade, tão patética quanto trágica, diferentes estudos têm-se aprofundado no problema, trazendo à tona incoerências que em tese poderiam pôr a perder todo o sistema. Entre elas, talvez a mais recente sejam alguns representantes do Ministério Público que têm recusado denunciar crimes contra a ordem tributária nas circunstâncias dos refinanciamentos do débito tributário, com fundamento principalmente em três premissas conjugadas: 1) a teoria da imputação objetiva; 2) o processo-penal não pode ser manipulado pelo Poder Executivo a seu bel-prazer; 3) a inutilidade do procedimento.
Ao argumento – tão conhecido dos doutrinadores contemporâneos – de que a teoria da equivalência dos antecedentes ou da conditio sine qua non está superada, uma vez que ampliaria demasiadamente o campo da responsabilização criminal, e que a teoria da causalidade adequada [06] não é suficiente, porque se centra em aspectos subjetivos, nem segura do ponto de vista normativo, abraça-se com entusiasmo [07] a teoria da imputabilidade objetiva, cujo grande sistematizador, Claus Roxin [08], arrolou a autocolocação dolosa em perigo entre os casos em que há exclusão da imputação, em razão da falta de alcance do tipo no crime doloso.
Antes disso, aliás, lembre-se que pela teoria da imputação objetiva não poderá ser objetivamente imputado o resultado quando o risco estiver nos limites do socialmente permitido ou tolerado [09].
Com suporte nesses aspectos, já ocorreu de certos crimes contra a ordem tributária de pouca monta, ou ainda de menor potencial ofensivo, não serem denunciados pelo Ministério Público, em razão do verdadeiro estímulo ao não-recolhimento de tributos causado pela expectativa – no mais das vezes, certeira – de que virá logo adiante uma nova oportunidade de parcelamento, incremento transitório de caixa que é nada mais nada menos que explícita renúncia de receita tributária [10].
Não há dúvida de que ao reprisar incessantemente leis concessivas de parcelamentos o Estado estimula a sonegação e desestimula o pagamento pontual do tributo. Não raro é muito mais vantajoso apostar que a sonegação não será pega e, se for, aguardar o parcelamento, freqüentemente acompanhado do perdão de multas e redução de juros (quando não do principal!), do que adimplir em dia a obrigação tributária.
Em que pese essa situação de absurda desordem tributária, no entanto, é sabido que a teoria da imputação objetiva não pretende a princípio suprimir a teoria do nexo causal [11], apenas complementá-la. Diz Luiz Flávio Gomes que a teoria da imputação objetiva "não é propriamente uma teoria, senão um conjunto de princípios elaborado para cumprir a função de delimitar e corrigir o nexo de causalidade" [12]. A teoria do nexo causal está expressamente confortada em nosso ordenamento jurídico pelo art. 13 do Código Penal: "Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido".
Desse modo, por exemplo, aquele que não efetua o pagamento dos débitos tributários devidos dá causa a princípio a um crime contra a ordem tributária, presente o nexo causal entre ação e resultado. O fato de existir um ou vários programas de refinanciamento dos tributos, muito embora denote incompetência e falta de coerência administrativa, não quer dizer necessariamente que o não-pagamento do tributo, algo universalmente compreendido em qualquer sociedade humana atual, possa ser a priori entendido como "risco socialmente permitido", ou qualquer outra categoria, ao ponto de evitar até mesmo a própria instauração da ação penal que há de apurar as reais circunstâncias do fato. A legislação brasileira coíbe essa conduta, que é considerada criminosa.
Não bastasse, o parcelamento dos débitos não é compulsório, mas uma oportunidade ao que não age de acordo com a lei, pois o correto obviamente é que os tributos sejam pagos na forma e no prazo estipulados.
Nos crimes contra a ordem tributária, como de resto em qualquer crime, há de ser apurada a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade como pressuposto de aplicação da pena.
Assim como a reparação dos danos em regra não proíbe a persecução penal, não se pode aceitar, em novo exemplo, que um parcelamento frustrado evite que o agente sofra sequer a instauração da ação penal, e em primeiro lugar porque é clamoroso que lhe foi assegurado o prazo para pagar os tributos, posteriormente foi beneficiado pelo refinanciamento e acabou deixando novamente de cumprir com suas obrigações.
Ademais, ao supostamente violar a norma penal, o agente fere a ordem jurídica, que reage na forma da lei. Castrar essa reação mediante interpretação social do risco é absurdo e arbitrário, seja porque nenhum órgão do aparelho repressor tem esse poder, seja porque suas premissas são falsas. Não é porque o Estado possibilitou ao sonegador parcelar sua dívida, dando-lhe uma segunda chance, que renunciará ao seu direito de propor a ação penal diante da violação novamente consumada.
Vale lembrar que durante a instrução é que será verificada definitivamente a culpabilidade ou não do agente, não sendo correto fazer um juízo valorativo antes da ação penal. Caso a renúncia ao direito de ação passe a ser usual no processo penal, a impunidade – e todas as suas nefastas conseqüências – se somará à incompetência administrativa a que o Poder Executivo vem sendo sistematicamente submetido por seus titulares.
Acima de tudo, aliás, fica a certeza de que o entendimento contrário (absolutamente respeitável em tese) se encaixa com perfeição numa discussão de mérito, jamais como exame para propositura da ação penal. A Administração Pública possibilitar ao infrator o refinanciamento dos débitos não significa necessariamente que a vítima está incentivando a inadimplência, uma vez que é lícito ao Executivo (embora, é verdade, não com tanta demonstração de inaptidão administrativa) a tentativa de receber os tributos. Isso não pode retirar do Judiciário o poder-dever de repreender a conduta criminosa.
A polêmica legislação penal-tributária em vigor até aceita que o autor do delito acabe não submetido a sanções penais desde que efetue o pagamento do débito. Não ocorrendo, é somente após o término do processo-crime, que visa à busca da certeza enquanto reflexo da verdade, que o veredicto estabelecerá se houve infração à norma e se haverá punição penal.
Referências bibliográficas
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Notas
01 FROTA NETO, Francisco Chagas da. A extinção de punibilidade nos crimes de sonegação fiscal por meio do parcelamento do débito tributário. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1437, 8 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9990>. Acesso em: 15 jun. 2007.
02 STJ. Sexta Turma. RHC 9.962-SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 6-2-2001, v.u.
03 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 479.
04 HARADA, Kiyoshi. Crimes tributários. Extinção da punibilidade pelo pagamento a qualquer tempo. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1378, 10 abr. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9694>. Acesso em: 20 jun. 2007.
05 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 479-80.
06 A ação só é causa do resultado quando adequada a sua produção, verificada a adequação mediante o prognóstico objetivo ulterior.
07 JESUS, Damásio E. de. Imputação objetiva e ações a próprio risco. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2392>. Acesso em: 6 jun. 2007.
08 "Em sua forma mais simplificada, diz ela: um resultado causado pelo agente só deve ser imputado quando o comportamento do autor cria um risco não permitido (1), quando o risco se realiza no resultado concreto (2) e este resultado se encontra dentro do alcance do tipo (3)" (ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 104).
09 ZANONI, Fernando Henrique. Aspectos dogmáticos da(s) teoria(s) da imputação objetiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 973, 1 mar. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8021>. Acesso em: 23 jun. 2007.
10 AREND, Márcia Aguiar. Os planos de refinanciamento fiscal à luz da teoria da imputação objetiva implicam a não tipificação do crime descrito no art. 2º, inc. II, da Lei nº 8.137/90. Atuação. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, Florianópolis, v. 4, n. 9, maio/ago. 2006. p. 63.
11 SOUZA, Ricardo Antonio de. Imputação objetiva e suas modificações na teoria do crime. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1026, 23 abr. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8291>. Acesso em: 22 jun. 2007.
12 GOMES, Luiz Flávio. Crime culposo e teoria da imputação objetiva. Artigos. Disponível em: <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20041008100448382>. Acesso em: 19 jun. 2007.