O presente trabalho tem como meta realizar uma associação entre a crise vivida pelo sistema carcerário do Brasil e o modelo econômico neoliberal por este País adotado.
Por primeiro, cumpre ressaltar que a falência da prisão é verificável sem maiores dificuldades, em face da possibilidade por parte de todos de se enxergar evidências que comprovam esta crise, tais como rebeliões, fugas e superlotações. A mídia, séria ou sensacionalista, não deixa de notar estes fatos.
De outra parte, é nítida a opção do Estado brasileiro pelo modelo neoliberal de economia. Tal se verifica pelo crescente absenteísmo do Estado na vida econômica, o que se dá principalmente através de privatizações mas também por meio de uma fuga legislativa, com uma produção de leis minimizadas em algumas áreas do Direito. Cumpre lembrar que, quando lhe é interessante, deixa o Estado neoliberal de legislar. Tal ocorre, por exemplo, com o Direito do Trabalho, pois como o neoliberalismo e sua característica excludente traz como fruto o desemprego, é interessante para o Estado afastar as normas protetivas do trabalhador (isto é, o Direito do Trabalho, uma vez que a característica principal deste é a guarda jurídica dos empregados), para que os empresários contratem com menos encargos (e assim enriqueçam ainda mais, reforçando a concentração de renda e a exclusão) e o Estado consiga, durante mais algum tempo, evitar o caos total e a miséria absoluta que podem advir do desemprego generalizado 1.
Essa escassa atividade legislativa do Estado não é repetida quando se põe em tela o Direito Penal. Este, como se sabe, é o ramo do Direito que estipula quais as condutas que são consideradas crimes e, como tal, devem ser punidas de modo mais severo. Percebe-se que, historicamente, em épocas como a atual, em que o modelo econômico é excludente e miserabiliza muitos, tende o corpo social (a maioria) a ficar mais inquieto, mais intranqüilo, menos subordinado. É aí que começa a realizar comportamentos os quais desagradam o Estado (que representa e serve à minoria dominante), de modo que este se vê compelido a reprimi-los através de seu enquadramento como crime. É uma forma de evitar que o status quo seja perturbado pelo comportamento desobediente dos cidadãos que deste mesmo status quo não fazem parte.
Como se vê, a intensidade legiferante do Estado varia de acordo com seus anseios, que se confundem com os interesses da minoria pertencente à classe dominante. Inegável, pois, que a norma jurídica 2 tem fortes vínculos com a chamada ideologia da classe dominante.
De lembrar que o modelo neoliberal de Estado, o qual nada mais é que a repetição do liberalismo outrora existente, tem como característica maior uma intervenção minimizada na economia. Esta peculiaridade traz como conseqüência uma diminuição das condições materiais dos indivíduos, levando-lhes à miserabilidade e, por vias transversas, ao cometimento de crimes. Os indivíduos ficam "lançados à própria sorte", ou seja, livres para viver igualmente em sociedade, sem nenhuma predileção a um ou a outro por parte do Estado. Esse quadro faz com que os que têm mais posses e condições materiais sobrepujem os despossuídos 3, os que não têm nada, relegando-os à miséria, retirando-lhes tudo.
Não se pode esquecer que aqueles que têm posses, apesar de as condições materiais não significarem tudo na existência humana, refletem mais antes da prática de crimes. Sabem que, delinqüindo e sendo punidos, perderão aquilo que têm. Nesse contexto é que condições materiais mínimas (aqui compreendidas a educação, saúde, alimentação) afastaria grande parcela dos hoje delitentes da criminalidade, porquanto esta parcela só adentra a marginalidade da sociedade porque, sob outro prisma, já está marginalizada, destarte de uma forma institucionalizada, oficializada pelo Estado que se nega a lhes dar o mínimo. Esta parcela dos hoje criminosos, que se afastaria do ilícito se pudesse, se enquadra naqueles "que não têm nada a perder".
Neste ponto é interessante registrar a hipocrisia daqueles que dizem que "pobre não é criminoso", que "pobre é honrado", que "pobre que tem vergonha na cara, que não é marginal, trabalha" e que "se fosse assim, todo pobre era bandido" (alguns dos que o dizem o fazem para ser populistas). Trata-se de pensamento oriundo da ideologia capitalista, que quer passar a idéia de que até aqueles que não têm nada devem trabalhar e se adequar ao sistema, ainda que este lhes vire o rosto. Afirmam que não se é bandido apenas porque se é pobre mas sim porque se é "ruim", se é de má índole, e por isso a saída é a repressão, a cadeia.
É até despiciendo dizer que nem todos os pobres são criminosos, ou, ainda, que nem todos os criminosos são pobres. Contudo, é inegável que o Direito Penal (e, consequentemente, o crime) é estruturalmente, estatisticamente, historicamente até 4, ligado às camadas menos favorecidas da sociedade 5.
Nesse contexto social (determinado pelo econômico) é que surgem as prisões e seus defeitos, uma vez que servem para conter aqueles que, não adequados ao modelo econômico excludente que os torna miseráveis, atentam, por meio da delinqüência, contra os "homens de bem" e contra os interesses da parcela dominante da sociedade. Como o número de cidadãos que não consegue resistir à pobreza se eleva mais e mais, as mazelas do sistema prisional se apresentam a cada dia que passa de forma mais explícita. O Direito Penal, assim como as prisões, passam a se encaixar na doutrina de Karl Marx, segundo a qual o Direito é instrumento que serve às classes dominantes.
Não se quer neste texto em tudo concordar com os ideais marxistas acerca das funções do Direito. O conceito marxista de Direito é equivocado desde seu berço porquanto assevera que o Direito só surgiu após o capitalismo, como forma de servir a este modelo econômico. Esta afirmação, entretanto, não é verídica porque o Direito existe desde que o homem passou a se viver junto de seus iguais, mesmo de forma rudimentar, longínqua do regime capitalista.
Contudo, não se pode negar que muito do que Karl Marx doutrinou tem validade para o contexto sócio-jurídico brasileiro atual, principalmente se se puser em destaque o Direito Penal.
Por fim, urge salientar que a causa (delinqüência em massa em virtude da exclusão egressa do neoliberalismo) para a falência prisional aqui mostrada não é única, embora seja a principal. Merece lembrança também que o aqui escrito se aplica ao Brasil tão-somente. Outros países, mesmo os ricos, podem enfrentar problemas semelhantes em seus sistemas carcerários e não obstante as causas serem outras. Os problemas brasileiros, assim como seu modelo econômico, podem não ser similares aos de outros países.
Notas
1 Adiante se dirá que o contexto jurídico atual se aproxima das lições de Karl Marx. Vale salientar, então, neste ponto, que uma das características que o economista atribuía ao capitalismo era a suposta liberdade e igualdade de que gozavam os cidadãos. É interessante, pois, para os capitalistas afastarem o Direito do Trabalho porque assim os trabalhadores ficam em posição "igual" à dos empregadores, sem benefícios jurídicos que lhes favoreçam e lhes desigualem, pondo-os em melhor situação. A desigualdade existente na realidade (empregador-dominante e trabalhador-dominado) é desconsiderada pelo Direito do capitalismo.
2 A noção de norma jurídica não pode ser confundida com a de Direito. Direito não é norma assim como também não é lei. Trata-se de ciência que em tudo se confunde com Justiça, esta encarada como valor e não como sinônimo – costumeiramente utilizado de forma equivocada – de Poder Judiciário.
3 Mais correto seria o termo "despossuidores".
4 Já que as primeiras leis penais apareceram para proteger o direito de propriedade.
5 "Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas (as exceções, além de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a reafirmação do caráter igualitário)" Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal, 1 ed., p. 25.