Resumo. Trata-se de um paralelo e confronto entre duas visões da hermenêutica jurídico-penal no Brasil. A primeira, de cunho teórico, passa em revista as questões tradicionais de interpretação e analogia: conceito, importância, escolas, métodos, aplicações práticas. A segunda, de ordem crítica, se fundamenta na relatividade da dogmática e do direito em sua concretude histórica. As regras de hermenêutica jurídica, além de eventualmente contraditórias, conservam as mesmas virtudes e defeitos de qualquer sistema de linguagem articulada, à semelhança do que se passa com a linguagem utilizada pelo legislador. É impossível padronizar a conduta de um intérprete emocionalmente predisposto a indicar a solução compatível com suas próprias expectativas ideológicas e o clima de liberdade ocasionalmente desfrutado.
Palavras-chave: interpretação; analogia; hermenêutica; visão teórico-dogmática; visão crítico-metodológica; contradições jurídico-penais; força, poder, vontade, liberdade.
Introdução.
De início, nos dois primeiros capítulos, aporto algumas observações doutrinárias concernentes ao tema escolhido: interpretação e analogia em face da lei penal brasileira. Sirvo-me, como roteiro, de um texto mais antigo, acrescentando-lhe de passagem ou deixando para o final — Capítulo III — anotações atualizadas de caráter teórico-dogmático e crítico-metodológico.
Capítulo I - Interpretação da lei penal
Sumário: 1. Generalidades sobre interpretação 1.1. Conceito e importância 1.2. Classificação quanto ao sujeito 1.3. Classificação segundo o resultado 1.4. Métodos de hermenêutica jurídica 2. Hermenêutica e aplicação do direito através da história 2.1. Escolas hermenêuticas: antecedentes 2.2. Idade contemporânea: surgimento das escolas 3. Interpretação da lei penal brasileira 3.1. Importância da interpretação no direito penal 3.2. Métodos de hermenêutica aplicáveis 3.3. Interpretação analógica e interpretação extensiva 3.4. Interpretação benigna.
1. Generalidades sobre interpretação
1.1. Conceito e importância.
A palavra interpretação não pertence exclusivamente aos estudiosos do direito. Ao contrário, é empregada com freqüência nos múltiplos ramos do conhecimento e na própria vida comum. O mundo moderno não mais se espanta com a infinidade de intérpretes de filmes, de composições musicais, de obras científicas e literárias, e até de sonhos.
Há sempre alguém que traduz o pensamento de seus pares, de seus companheiros. E os homens parecem gostar da interpretação, porque mexe com o raciocínio, quebra a monotonia, empolga. Ainda hoje se toma conhecimento da escolha de um novo papa através de uma singela fumaça branca. Se a fumaça fosse escura, diria o repórter, erigido à posição de intérprete: "Por enquanto, não temos papa".
Para o filho pequeno ninguém é tão culto quanto seus pais, que sabem esclarecer os inúmeros fenômenos que excitam sua natural curiosidade.
É fácil, pois, compreender que o significado trivial do termo não sofreria radicais transformações no campo do direito. Interpretar é explicar, é precisar, é revelar o sentido. E outra coisa não se faz ao se interpretar um preceito legal, como medida indiscutivelmente útil e necessária.
Sua importância no direito não há quem a negue. É que a exegese, na expressão de Paulo de Lacerda, "toca inquestionavelmente na parte mais sensível, senão na mais vital, da ciência do direito, por interessar de modo capital à aplicação, isto é, ao lado prático da norma jurídica" (Manual do código civil, v. 1. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos,1918, p. 415).
Constitui temeridade incontestável a afirmação de que as leis são claras e precisas, podendo, portanto, dispensar qualquer exegese. Ao legislador, lembra Nelson Hungria, não foi reservado "o condão da impecável justeza da expressão" (Comentários ao código penal, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p. 48).
É preciso modificar o brocardo: com razão se diga "in claris non cessat interpretatio". Porque interpretar não implica necessariamente o fato de se tornar claro, mas requer a revelação do conteúdo e alcance da lei, independentemente até da vontade do legislador ou do significado puramente literal do texto.
1. 2. Classificação quanto sujeito.
Considerando o órgão que a pratica, a interpretação pode ser autêntica ou legal, judicial e doutrinária. Somente a primeira tem força de lei. Exemplos corriqueiros: o sentido da expressão casa , no crime de violação de domicílio (Código Penal, art. 150, § 4º); o conceito de funcionário público, para os efeitos penais (art. 327, § § 1º e 2º ); o conceito de vias terrestres, para os fins de aplicação do Código de Trânsito Brasileiro (arts. 1º e 2º , parágrafo único, da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997).
Por sua vez, as duas últimas (interpretação judicial e doutrinária), principalmente quando reiteradas, servem de auxílio e apoio ao hermeneuta ou operador jurídico.
1.3. Classificação segundo o resultado.
Se o exegeta conclui pela existência de locução inadequada, incapaz de abranger, por si só, todo o conteúdo do preceito, diz-se que a interpretação se torna extensiva, porque confere ao texto maior alcance. Neste caso o legislador "minus dixit quam voluit", isto é, disse menos do que desejou.
Magalhães Noronha (Direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 83) e Aníbal Bruno (Direito penal, t. 1. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1956, p. 221) entendem que a interpretação analógica constitui espécie de interpretação extensiva. A rigor, no entanto, a exegese se denomina extensiva apenas quando se observa, em relação ao texto, um conteúdo mais amplo. A exegese analógica, por sua vez, não toma este nome em razão de confronto entre a letra e o espírito. Pode até ocorrer uma perfeita harmonia entre ambos, pois é o próprio texto que autoriza a aplicação analógica a hipóteses tipicamente previstas. Veja-se, por exemplo, a hipótese de homicídio qualificado porque cometido "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido" (Código Penal, art. 121, § 2º ,IV). Como tantas outras, traduz uma analogia visivelmente prevista e determinada em texto específico: outro recurso que, à semelhança do que se passa com a traição, emboscada ou dissimulação, dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
A interpretação restritiva diminui o alcance que o texto, à primeira vista, parece apresentar, em face de sua linguagem impropriamente excessiva.
E a interpretação declarativa, por fim, se coloca exatamente entre as duas mencionadas e, por isso mesmo, não estende nem restringe a aplicação do texto. Conclui-se, então, que o legislador consignou o que desejou consignar; que o sentido encontrado condiz precisamente com a fórmula por ele empregada. Em regra, se faz acompanhar ou preceder de conhecido apelo retórico, relacionado com a tese da exclusividade e soberania da lei: "Se o legislador não distingue, não cabe ao intérprete distinguir".
1.4. Métodos de hermenêutica jurídica.
Segundo os elementos ou recursos utilizados na interpretação, costumam os autores distinguir dois métodos ou processos fundamentais: gramatical e lógico.
O primeiro, também chamado literal ou filológico, se atém exclusivamente às palavras da lei. O hermeneuta, com base nos conhecimentos de gramática, examina, por exemplo, os sinais de pontuação, a posição dos vocábulos na frase e o seu significado técnico e comum. Leva em conta, exclusivamente, a fórmula verbal usada pelo legislador.
O processo lógico preocupa-se essencialmente com o espírito da norma, que pode contrastar, algumas vezes, com o texto frio. Em face dos meios adotados toma o nome especial de processo lógico propriamente dito (sentido estrito); sistemático (lógico-sistemático); histórico (lógico-histórico); finalístico (lógico-teleológico); sociológico (lógico-sociológico). Trata-se de visão esquemática, relativamente falha e incompleta. Basta considerar que o método lítero-gramatical não abandona a lógica pròpriamente dita e envolve o exame em conjunto das palavras e frases do sistema normativo (interpretação lógico-sistemática).
O processo lógico em sentido estrito pede à lógica geral as regras necessárias ao fim colimado. Importa unicamente o raciocínio, desdobrado em deduções e induções, com as quais o processo se exaure. Apresenta muitíssimas vantagens, mas é insuficiente por si só, uma vez que esquece as mutações da vida, a diversidade das circunstâncias, os inúmeros fatores sociais, enfim, que ao direito não podem passar despercebidos.
Intimamente ligado a esse processo se encontra o método lógico-sistemático, que "nos leva a confrontar a disposição em análise com outras da mesma lei, ou outras leis, referentes ao mesmo assunto, e, às vezes, com os princípios gerais do direito" (Magalhães Noronha, ob. cit., p. 82). O hermeneuta serve-se das rubricas, do exame de determinado instituto, ramo do direito e até do direito comparado. Trata-se, a meu ver, de método obrigatório. Todo e qualquer dispositivo legal há de ser analisado e compreendido no contexto maior do sistema normativo. Assim, o homicídio doloso (CP, art. 121) cede a vez para o infanticídio (art. 123), que é espécie daquele. E subsiste na forma tentada (art. 121 c/c art. 14, II) precisamente porque não pode ser interpretado isoladamente, apartado do plano geral do legislador.
Valioso subsídio para o intérprete constitui, também, o elemento histórico. Útil é conhecer do povo os caracteres e cultura, de que fazem eco os próprios institutos jurídicos, ora efêmeros, ora perenes, atestando assim, na trajetória do tempo, sua subordinação às exigências e transformações ético-sociais. Os projetos e discussões parlamentares, as circunstâncias de momento (occasio legis) e exposições de motivos interessam de perto à pesquisa histórica.
Outrossim, não podem ser esquecidos os elementos extra-jurídicos, porquanto é comum procurar o exegeta, nas outras ciências e artes, o correto sentido do dispositivo legal.
Adota-se ainda, com muito entusiasmo, o método lógico-sociológico. Não se perquire obrigatoriamente a vontade do legislador, como o fazia a Escola Dogmática, no campo da hermenêutica. Inúmeras são as dificuldades supervenientes e o legislador não anteveria as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais. A letra da lei fica inerte; entretanto, o direito sobrevive, através de uma interpretação realmente genuína e sensível às contingências do presente. A lei, por certo mais sábia que o legislador (Wach), abraça hipóteses por ele imprevistas, amoldando-se no tempo e rejuvenescendo no labor construtivo do magistrado.
Reconhece Benjamin de Oliveira Filho: "Método sociológico é, hoje, a expressão mágica, que espanca as brumas, dissipando as incertezas. Pois seja. O direito não é senão um fato social" (O problema da aplicação da lei. Rio de Janeiro: Haddad Editor, 1957, p. 21).
Fala-se igualmente em processo teleológico ou finalístico, considerado por Carlos Maximiliano "o melhor, o mais seguro na maioria das hipóteses" (Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1941, p. 19).
Realmente, supõe-se que todo preceito tenha um escopo, em que se denote, como lembra Espínola Filho, inspirado na melhor doutrina, justiça e utilidade prática – o bem comum, em suma (Código de processo penal anotado, 3ª ed., v. 1. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 182/183). Essa vontade da lei, uma vez divisada, se sobrepõe à letra fria do texto, mero instrumento verbal do direito, muito vezes injusto se mecanicamente aplicado.
Assim, a delimitação do campo de atuação da norma jurídica tendo em vista o motivo (ratio legis), ou fim prático que a impulsiona, constitui tarefa inadiável do hermeneuta. Exemplo bastante claro: a forma qualificada de lesão corporal se ocorre "aceleração de parto" (Código Penal, art. 129, 1 º , IV). Ora, o termo "aceleração" implica, em regra, alguma coisa já em andamento que é submetida a maior velocidade. Se inexiste, ainda, processo de parto, este não pode ser "acelerado". Vale, então, o espírito da lei, que não quer evitar propriamente uma "aceleração" de parto, mas o próprio parto, antecipado e prematuro.
Apesar da atualidade dos dois últimos processos (sociológico e finalístico) não se pode abandonar os demais, por obsoletos ou inúteis. O ideal é combinar todos os meios indicados. Já ensinava Paulo de Lacerda, profundo estudioso da matéria, que os métodos se apóiam e se completam mutuamente, podendo, porém, em certos casos, "um prevalecer ou vir em socorro do outro, para esclarecimento da norma jurídica em relação à sua aplicação prática" (ob. cit., p. 383).
A interpretação, afinal, é uma só, diferenciando-se apenas os seus métodos. Existirá mais de uma verdade só porque vários caminhos podem ser utilizados? Não, evidentemente.
Somente o caso concreto dará ensejo ao magistrado a preferir este ou aquele método de hermenêutica, se bem que melhor se apresente, para a segurança de suas decisões, a conjugação dos diversos procedimentos. Contudo, entre a letra e o espírito, na hipótese de contraste, não cabe vacilar: fica-se com o último.
2. Hermenêutica e aplicação do direito através da história
Os métodos de interpretação, há pouco mencionados, se consolidaram lentamente através da história. Eis, abaixo, rápida síntese da matéria.
2.1. Escolas hermenêuticas: antecedentes
É certo que os romanos não chegaram a construir um corpo sistemático de regras de hermenêutica jurídica. Apenas se empenharam em formular preceitos para casos determinados, sem se preocuparem com a apresentação de princípios gerais. Imperava a obsessão pelas formalidades, pelo rito solene, de importância capital.
O poder da palavra, revelado nas relações da vida pública e privada, haveria portanto de penetrar no direito e refletir sensivelmente em sua interpretação. Segundo Ihering, todavia, o exagerado apego à palavra e à formalística mais se verificava na interpretação dos atos jurídicos do que, propriamente, na interpretação das leis. Daí a afirmação de Carlos Maximiliano, baseada em estudos do referido jurista alemão, de que "já os primitivos jurisconsultos romanos praticavam habilmente a hermenêutica evolutiva" (ob. cit., p. 72).
Os glosadores da Idade Média, em sua faina incessante, buscavam no texto romano as regras de exegese, a que aditavam outras, de direito canônico e consuetudinário. Mas não chegaram a elaborar uma autêntica doutrina interpretativa.
Estava reservada aos juristas da Idade Moderna, tendo em vista mesmo o farto material casuístico fornecido pelos glosadores, a confecção dos primeiros arcabouços teóricos de hermenêutica.
Consoante depoimento de Joaquim Inácio Ramalho (Lições de hermenêutica jurídica, 2a ed. São Paulo: Tipografia Americana, 1872, p. 4), já se divisava na obra de Hugo Grotius, De jure belli ac pacis, capítulo 16, uma preocupação em reduzir a um sistema especial a hermenêutica jurídica. Seguiram-no Puffendorf, Thomasius e Eckardus.
2. 2. Idade Contemporânea. Surgimento das escolas.
Foi a Revolução Francesa, marco indelével da História, que permitiu o crescimento de uma verdadeira escola de hermenêutica, denominada Clássica, Tradicional ou Dogmática. Contra o arbítrio judicial, regra comum até ao Absolutismo, se insurgiram os seus adeptos, proclamando uma total subserviência ao texto da lei, expressão única do direito (Montesquieu, Laurent, Pescatore).
Se a lei é clara, improcede qualquer tentativa de interpretação: in claris cessat interpretatio. Sendo a lei incerta, ambígua ou obscura, é mister perquirir a vontade, o pensamento do legislador, com o auxílio do elemento lógico. Eis aí o seu erro, pois "da vontade primitiva, aparentemente criadora da norma se deduziria, quando muito, o sentido desta, e não o respectivo alcance, jamais preestabelecido, e difícil de prever" (Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 72). Aferrando-se ao pensamento do legislador e à rigidez das palavras, desconhecia a natural evolução dos fatos sociais, base do direito, que lhes segue os passos.
Daí a importância da Escola Histórica, fundada por Savigny, que negava a antítese letra/lógica. Em face de seus escopo, a interpretação haveria de ser uma só, desdobrando-se, isto sim, em métodos, entre os quais se incluiria o método histórico.
A interpretação, para Savigny, consistia na reconstrução do pensamento do legislador, expressão da consciência comum do povo. Impunha-se, então, o conhecimento dos costumes e dos fatos sociais ligados ao conteúdo da lei, já que o direito, produto da vontade nacional, não se poderia considerar originário da razão humana. Foi este, aliás, o grande mérito da Escola Histórica: o de haver afastado a concepção essencialmente racional da origem do direito.
José Kohler, Coviello e outros introduziram o elemento sociológico. Nítida é a separação da lei, depois de publicada, do pensamento de seus artífices. As mutações e o progresso social, em suas manifestações infindas, não seriam antevistas pelo legislador. A lei, por seu turno, resiste ao tempo. Cumpre ao intérprete a tarefa de fazer com que atinja o seu verdadeiro escopo, eminentemente social.
Quer no final do século XIX, quer nos primórdios do século XX, as teorias proliferavam, ao sopro das novas idéias, sem dúvida revolucionárias.
Para Gény, por exemplo, a livre investigação científica passou a ser considerada como fonte do direito, ao lado da lei e do costume. Inexistindo norma escrita ou consuetudinária é lícito ao juiz criar o direito. O próprio Código Civil suíço, por influência de Huber, ofereceu guarida ao preceito. Permitiu ao magistrado, na falta do direito escrito ou consuetudinário, sob inspiração da doutrina e jurisprudência consagradas, decidir segundo a regra que ele próprio estabeleceria se fora legislador.
Kantorowicz, na Alemanha, chegava ao extremo. Compete ao juiz, de acordo com sua habilidade e consciência, procurar e aplicar o direito justo, superior à própria lei, especialmente se persistem dúvidas a respeito de seu conteúdo.
O exagero é manifesto. O arbítrio dos juízes, em termos tão dilatados, acarreta a mais completa insegurança jurídica e social; fere, aliás, o princípio da independência e harmonia dos poderes, apanágio das liberdades fundamentais, dogma insubstituível das constituições.
O afastamento da lei só é permitido em hipóteses excepcionais: somente quando sua aplicação, no caso concreto, não atender aos fins sociais a que se destina, tornando-se portanto injusta. É a conclusão do Supremo Tribunal Federal, que sempre repeliu, via de regra, a decisão contra legem. O que o juiz não poderá fazer, ensina Alípio Silveira, "é considerar uma lei como injusta em geral, em face do bem comum, da maneira por que ele o entende, e negar-lhe sempre aplicação" (O supremo tribunal e a decisão contra a lei, Revista Jurídica, v. 54. Porto Alegre: Sulina, 1961, p. 26). Hoje, todavia, com a percepção dos males do próprio direito penal como solução dos problemas sociais, fica mais fácil conciliar injustiça com inconstitucionalidade e, em conseqüência, aproximar o direito penal (em matéria de punição) às teses do direito justo.
A filosofia positivista influiu também na formação de uma teoria interpretativa. Vander Eicken, discípulo das idéias de Augusto Comte, chegou a afirmar que à interpretação se aplica a lei dos três estados — donde haver sido, no passar do tempo, literal (fase teológica); lógica (fase abstrata); e positiva (fase científica).
A corrente positivista, partindo do pressuposto de que o direito se constitui, fundamentalmente, em uma ciência prática, teleológica, que visa à felicidade social, faz do fim da lei o objeto primordial da interpretação.
Mesmo à revelia da concepção filosófico-jurídica de seus primeiros defensores, a doutrina ganhou numerosos adeptos e conserva, ainda hoje, ao lado da doutrina sociológica, a mais pujante vitalidade.
No Brasil, aliás, os autores modernos não escondem sua preferência pelos dois últimos processos, que nem um pouco se contradizem, mas se combinam, se completam, e até se confundem. A propósito, para Inocêncio Borges da Rosa "a interpretação evolutivo-sociológica é teleológica, porque se preocupa com a finalidade da lei, que outra coisa não pode ser senão a finalidade do direito, que é promover o bem comum e, dentro deste, o bem individual" (Dificuldades na prática do direito. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1939, p. 254).
A adoção de ambos os processos se tornou inclusive obrigatória. É que o juiz, segundo estatui o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, atenderá na aplicação da lei aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum. Com a mesma dose de razão assim também procederá ao examinar e aplicar as normas relativas aos demais ramos do direito.
Mais recentemente, com a Constituição Federal de 1988, redescobriu-se a fonte maior de todos os direitos: a liberdade, a igualdade e a dignidade do homem. Assim, só poderia haver direito penal que se limitasse, em caráter subsidiário, à proteção exclusiva de bens jurídicos; à efetiva lesão ou perigo concreto de lesão; a uma tipicidade ao mesmo tempo formal (centrada na lei escrita) e material, a exigir, em termos mais estritos (conteúdo ideológico), a produção de resultado desvalioso e intolerável, objetivamente imputável ao risco proibido inerente à conduta.
Tudo isso não surgiu abruptamente. É fruto, justamente, do esforço dogmático de juristas nacionais e estrangeiros, preocupados com a reconstrução de um direito penal mínimo e garantista, válido para todos os membros do grupo social. Veja-se, a respeito do tema, dentre outros: Luiz Flávio Gomes, Teoria constitucional do delito no limiar do 3° milênio, Boletim IBCCrim n° 93, agosto de 2000, p. 3/4; também Direito penal, parte geral: introdução. São Paulo: RT, 2003, p. 27/166.
Por sinal, os que conhecem o direito em sua concretude histórica (de qualquer país ou região; de caráter penal ou extra-penal) sabem que o juiz, ainda que obrigado a aplicar a lei, na expressão de Chaïm Perelman, "dispõe, não obstante, de um conjunto de técnicas próprias do raciocínio jurídico que lhe permitem, o mais das vezes, adaptar as regras ao resultado buscado (grifos meus). A intervenção do juiz possibilita introduzir no sistema jurídico considerações relativas à oportunidade, à justiça e ao interesse geral que parecem, numa perspectiva positivista, alheias ao direito" (Ética e direito, [trad.]. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 426).
Examinemos agora, de modo perfunctório, a questão da interpretação da lei penal, no Brasil.
3. Interpretação da lei penal brasileira.
3.1. Importância da interpretação no direito penal.
Poder-se-ia pensar que o direito penal, por suas características preventivo-repressivas, prescinde de qualquer processo exegético, livrando-se assim, em sua aplicação prática, de possíveis enganos e contradições, que concorrem para o descrédito da justiça.
Cesare Beccaria, a propósito, foi bem incisivo, ao proibir qualquer tentativa de interpretação das leis criminais. Estas deveriam ser executadas segundo seu texto, a fim de que cada cidadão possa "calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime" (Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena Editora, 1954, p. 38).
Para a época do humanitário marquês (1764) a doutrina até certo ponto se explicava, pois tinha em mira preservar os homens da prepotência judicial, muitas vezes cruel e subserviente.
Os tempos mudaram. A hermenêutica jurídica, teoria sistemática da interpretação, já alcançou a maturidade. Vedá-la no campo do direito criminal não é apenas ignorar sua utilidade e importância, é atestar um diminuto horizonte de raciocínio, ou retroceder, voltar ao atraso de outras épocas, sem as escusas das velhas circunstâncias.
A legislação penal também constitui obra humana, suscetível de imperfeições, de obscuridades. Nem seria este o motivo que leva o jurista à pesquisa de seu espírito. Ao processo exegético, como já foi visto, se submete igualmente a norma cristalina.
Interpreta-se a lei penal porque também ela, como as demais, possui um sentido e alcance próprios, que não podem ser esquecidos. O texto frio, mero arcabouço verbal, abstrato e solene, com seus conceitos e advertências, precisa ser compreendido em seu conteúdo autêntico. Isto se obtém à custa de um consciencioso trabalho exegético, que impede se cometam injustiças, e das piores, porquanto atingem o homem em sua honra e liberdade.
3. 2. Métodos de hermenêutica aplicáveis
Ensina Aníbal Bruno: "Não se deve pensar que o direito penal exija um método particular de interpretação, que fuja à rotina da interpretação jurídica em geral. Qualquer processo idôneo de hermenêutica pode ser aí aplicado" (ob. cit., p. 213/214).
Neste particular, portanto, qualquer método é permitido. Pode-se indagar sobre o fim do preceito, sobre sua origem, compará-lo com outros, dissecar-lhe as palavras, analisá-las em si ou em conjunto.
Já se discutiu, por exemplo, a respeito da verdadeira exegese do art. 218 do Código Penal, assim redigido: "Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo. Pena — reclusão, de um a quatro anos".
A principal dúvida, logo removida, residia na expressão "ato de libidinagem", capaz ou não de comportar a própria cópula carnal. Os tribunais responderam afirmativamente e a matéria se tornou pacífica.
Para a certeza desse entendimento foram utilizados os mais variados métodos de hermenêutica, conforme se depreende de trabalho apresentado por José Rocha Ferreira Bastos à Semana Comemorativa do Duodecênio do Código Penal (Sedução e corrupção de menores. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Rio de Janeiro, ano XXV, 1955):
1. Método literal: concluiu-se que a expressão ato de libidinagem, por si só, abrange a cópula carnal.
2. Método lógico: se a corrupção de consegue com o menos, também se conseguirá com o mais (cópula carnal).
3. Método sistemático: os artigos 214 (atentado violento ao pudor) e 216 (atentado ao pudor mediante fraude) se referem expressamente a "ato libidinoso diverso da conjunção carnal", reconhecendo a inclusão desta no conceito genérico de ato de libidinagem. O silêncio do artigo 218, neste ponto, autoriza a conclusão de que o legislador tacitamente apregoou a conjunção carnal como ato de libidinagem.
4. Método teleológico: a finalidade da lei é a defesa da vida sexual e da idoneidade moral do menor.
Note-se que a recente revogação do crime de sedução (Lei n.º 11.106/2005) reativou a importância do sentido e alcance do tipo legal concernente à corrupção de menores. Com efeito, nada impede que certas "seduções" se encaixem agora, em contrapartida, na figura delituosa do citado art. 218 do Código Penal em vigor.
3.3. Interpretação analógica e interpretação extensiva.
Não se confundindo a interpretação extensiva com a analogia propriamente dita, lícito se torna seu emprego em direito penal, mesmo que acarrete prejuízo para o réu. Seria um contra-senso fugir o hermeneuta do conteúdo da lei. Se esta o permite expressamente, como repudiá-la?
Ressalte-se, no entanto, que se deve atentar exclusivamente para a lei, para o seu espírito, nada mais. A adição de elementos estranhos à norma incriminadora, para enquadrá-la, assim adulterada, num caso concreto, não só compromete em sua essência a função interpretativa como fere acintosamente o salutar aforismo da legalidade dos crimes. O artigo 1º do Estatuto Penal consagra o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege, ainda hoje reverenciado, expressão e garantia que é (ou deveria ser) da liberdade jurídica, barreira intransponível à tirania e à prepotência.
Daí não se conclua que se proíbe a interpretação extensiva. Incorre em verdadeira ilusão quem afirma o contrário. É de espantar, aliás, o receio de Carlos Maximiliano (ob. cit., p. 383) a respeito do uso da expressão "exegese extensiva", especialmente no direito penal, preferindo falar em "interpretação estrita", visto que oferece, na sua opinião, menos margem a equívocos e divergências.
Basileu Garcia segue-lhe os passos: "Quanto aos resultados, a interpretação da lei que pune não deve ser extensiva. É uma decorrência do princípio contido no art. 1º do nosso Código. Não se pode dar ao texto penal interpretação que lhe confira maior amplitude do que a que resulta naturalmente da sua força compreensiva". E diz, mais adiante: "declarativa ou estrita deve ser a interpretação" (Instituições de direito penal, t. 1. São Paulo: Max Limonad, 1963, p. 159).
A exegese extensiva, afirme-se logo, não pode ser considerada, principalmente pelos estudiosos da matéria, um monstro de sete cabeças, sempre pronto a desvirtuar o genuíno sentido do texto.
Afinal de contas — e isto é elementar — ela não constitui método, ou processo. Revela-se apenas como efeito, conclusão, conseqüência. É simples resultado, inevitável ou não, conforme o caso, do trabalho desenvolvido pelo hermeneuta. No momento em que se proíbe a interpretação extensiva, inconfundível com a analogia, se proíbe em verdade o próprio mecanismo de interpretação e, como possível conseqüência, o respeito à vontade da lei ou do legislador.
O próprio art. 1º do Código Penal, referente à legalidade dos crimes e das penas, sempre foi interpretado em sentido amplo (lei e decreto-lei), a fim de que se evitasse o paradoxo de sua auto-anulação (autofagia), revelada por sua forma: decreto-lei (Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940). Não deixa de ser curioso um decreto-lei afirmar que não há crime sem lei...
Exemplos claros de interpretação extensiva nos fornece Nelson Hungria: "Quando o Código incrimina a bigamia (artigo 235) está necessariamente implícito que abrange na incriminação a poligamia; quando incrimina o rapto (artigo 219), sem outra distinção que a referente aos meios executivos, compreende não só o rapto per abductionem (com remoção da vítima de um lugar para outro) como o rapto per obsidionem (com arbitrária retenção da vítima em lugar aonde fora por sua livre vontade); quando um fato é incriminado por criar uma situação de perigo (v.g.: o fato previsto no art. 130 do Código Penal), também o é, não obstante o silêncio da lei, quando cria uma situação de dano efetivo (crime exaurido)" (ob. cit., p. 70).
Outros exemplos de exegese extensiva: o reconhecimento da prática do crime de racha (Código de Trânsito Brasileiro, art. 308) não apenas através de "corrida automobilística", mas também de outros veículos automotores (motocicletas, caminhões etc.); a inclusão das armas impróprias (chave inglesa, bisturi, foice, etc.) no conceito de arma, para efeito de majoração da pena do crime de roubo (CP, art. 157,§ 2º , I); a admissão, como vítima do crime de omissão de socorro, de qualquer pessoa, mesmo válida ou sem ferimentos, desde que em grave e iminente perigo de vida; a forma qualificada de lesão corporal mesmo quando não ocorra, propriamente, aceleração de parto (já tratei do assunto no capítulo anterior), mas sua inesperada e perigosa antecipação, por força da violência sofrida pela gestante (CP, art. 129, § 1°, IV); a forma qualificada de receptação não só na hipótese em que o agente "deve saber" mas, como parece óbvio, na hipótese em que efetivamente "sabe" que a coisa receptada é produto de crime (CP, art. 180, § 1º).
A exclusão desse tipo de exegese, do exposto, mesmo em face do direito criminal, é de todo indefensável. O máximo que se pode aceitar é a advertência de que "em matéria penal só deve ser admitida nos casos estritamente necessários" (Nelson Hungria, ob. cit., p. 70). Isto porque a exegese extensiva, dizendo mais do que as palavras do texto, pode caracterizar uma conclusão injusta, por defeito de técnica ou má-fé do aplicador da lei. Mas só nestas hipóteses é mister repudiá-la, em razão do vício de origem, que nega sua própria finalidade. Inexistindo qualquer falha ela se torna pura, inatacável. E por quê? Porque se cumpre a lei, por seu espírito, diversamente do que pode acontecer quando se invocam outros princípios à revelia de seus limites lógico-dogmáticos, ou seja, dos limites lógico-dogmáticos da lei pertinente à hipótese.
E não se alegue, para se tentar impedir a interpretação ampliativa, que os preceitos penais são de ordem pública, proibitivos ou imperativos, e limitam a liberdade do homem. Tudo isso faz lembrar, tão somente, a necessidade de maior cautela na sua interpretação, e que se deve adotar, na hipótese de dúvida, a solução mais benigna.
3.4. Interpretação benigna
Quer isto significar que a incerteza em relação ao espírito da norma não deve ocasionar prejuízo para o réu, no momento da opção. Ao revés, é de boa política favorecê-lo, por uma questão mesmo de consciência, quando falta convicção ao magistrado a respeito da melhor exegese — e única "verdadeira". Neste caso, sim, resolve-se o dilema com uma exegese restritiva ou declarativa, sendo a norma incriminadora; e com uma exegese extensiva, se o preceito beneficia o réu.
A rigor, porém, como assevera Bento de Faria, "não existe interpretação benigna ou severa; há somente interpretação verdadeira, desde que a falsa não poderia ser considerada" (Código penal brasileiro comentado, v. 1. Rio de Janeiro: Record, p.70).
Assim, a adoção do princípio do in dubio pro reo apenas é consentida depois de esgotados todos os recursos de hermenêutica, isto é, exclusivamente depois que a interpretação se mostrou insegura, impotente, duvidosa.
Vejamos, em seguida, no próximo capítulo, um tema correlato: analogia em direito penal.