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Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira:

visão teórico-dogmática e crítico-metodológica

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15/07/2007 às 00:00
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Capítulo II - Da analogia em direito penal

Sumário: 1. Conceito e fundamento 2. Natureza jurídica da analogia 3. Analogia em face da lei penal brasileira 3.1. Analogia in malam partem. 3.2. Analogia in bonam partem.

1.Conceito e fundamento

Os vocábulos gregos ana (entre) e logos (razão) deram origem à expressão analogia, utilizada nas ciências físicas e matemáticas, e bem assim na filosofia, onde é entendida como espécie de raciocínio "que consiste em passar de semelhanças verificadas a outras não verificadas", como ensina Armand Cuvillier (Manual de filosofia [trad.]. Porto: Educação Nacional, 1948, p. 319).

A necessidade de sua inclusão no campo de aplicação do direito sentiram-na os próprios romanos, sob o fundamento de que deve prevalecer o dispositivo correspondente onde se depare razão igual à da lei: ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio.

De fato, a analogia se baseia na semelhança de elementos existentes nas situações contempladas e não contempladas em lei.Vale, pois, como recurso ou método de integração jurídica, destinado à solução dos casos omissos.

Tem por função precípua o preenchimento das lacunas do direito positivo. O legislador, por mais hábil e cauteloso que seja, não pode prever todos os fatos da vida social. Sua limitação e impotência ele mesmo as reconhece, donde o motivo pelo qual prescreve, inclusive, formas de suprimento dos espaços vazios. Sobressai entre essas formas a analogia, porquanto retira da lei a regra jurídica adaptável a uma hipótese dada.

Existem autores que apontam um outro tipo de analogia, dita jurídica, que não recorreria à lei, e sim, aos princípios gerais de direito, em face da ausência de norma expressa capaz de abranger, por identidade de razão jurídica, o caso omisso de que se cogita. Por tratar-se de hipótese destituída de importância prática, a distinção é, não raro, criticada. É muito mais provável que ocorra a simples subsunção do fato ao princípio geral de direito, circunstância que dispensa e elimina o processo analógico.

Na verificação das similitudes procede-se por indução, mas indução incompleta, que vai do particular para o particular coordenado. É o que ensina Del Vecchio, citado por Alípio Silveira (Analogia, Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v. 3, p. 222). Já em sua fase final a analogia implica, para muitos, raciocínio por dedução, revelado pela extensão da lei, ou de seu princípio geral fundamental, mais geral e elevado, como prefere Coviello, ao caso omisso cuja solução se procura.

Compreende-se, pois, o papel importante da lógica na utilização da analogia. Assevera, no entanto, Alípio Silveira, e com razão, que o método analógico "não se reduz a uma cadeia de silogismos ou a uma indução imperfeita. Entra na analogia o elemento valorativo, político-social" (Analogia, cit., p. 228).

É que o direito, visível no texto ou latente no sistema, está longe de circunscrever-se a construções geométricas de pura lógica. Ao revés, se o propósito das regras jurídicas, na expressão de Balthazar Barbosa, estribado em Pontes de Miranda, é "regular o entrechoque dos interesses, de modo que haja paz e, pois, ordem" (A jurisprudência e as transformações sociais. Revista da Faculdade de Direito de Caxias do Sul, nº 1. 1964, p. 129), na própria realidade objetiva se haverá de procurá-lo, pois que aí ele nasce e se desenvolve, como processo de adaptação social. Por isso se diz que as semelhanças devem ser encaradas sob o ponto de vista de uma verdadeira valoração jurídica. Fatores indiferentes ao direito, embora idênticos, não podem autorizar o emprego da analogia. Esta somente se justifica depois de constatada a mesma ratio juris, que lhe serve de fundamento.

2.Natureza jurídica da analogia.

Discutem os autores a respeito da natureza jurídica da analogia. Ferrara, por exemplo, enquadra-a na noção de interpretação, tomada em sentido amplo, uma vez que o trabalho do jurista fica sempre vinculado à lei. Grispigni, por seu turno, considera-a como espécie sui generis de interpretação, porquanto não passa de "uma descoberta de uma disposição jurídica dentro do sistema, se bem que em forma latente" (apud Ruy da Costa Antunes. Da analogia no direito penal. Recife: 1953, p. 9).

Uma vez se atente para o próprio conceito de interpretação, ver-se-á que os fundamentos apresentados, corretos em princípio, porque destacam uma faceta do processo analógico, não são suficientes para a conclusão a que chegaram.

Se a analogia reclama necessariamente ausência de dispositivo legal que regule uma certa hipótese, não se deve falar em "interpretação analógica", tendo em vista que "é impossível interpretar uma norma inexistente" (Giulio Battaglini. Direito penal [ trad.] . São Paulo: Saraiva, 1964, p. 61). Poder-se-ia contra-argumentar que não é uma norma inexistente que se interpreta, mas justamente o preceito de lei que se adaptaria ao caso concreto. O disparate seria semelhante: concluir, por interpretação, que determinado preceito se estende a um caso omisso (!) é o mesmo que não interpretar, é subverter toda a estrutura da hermenêutica, minando-a em sua base, desmoronando-lhe o sistema.

A confusão de conceitos parece advir do fato de o magistrado, em sua atividade prática, primeiramente preocupar-se com a interpretação dos dispositivos que porventura se aplicariam a uma hipótese dada. Realmente, o processo exegético, neste mister, se torna indispensável. Todavia, desde que se constate a existência de uma lacuna, suscetível de ser preenchida pelo recurso analógico, não cumpre mais falar em interpretação. Esta já se exauriu, cedendo então lugar ao processo analógico propriamente dito. E isto é fácil de compreender-se, pois a fase interpretativa também se mostra independente da aplicação de um preceito a um caso previsto em lei. Antecede-a na simples verificação do alcance e conteúdo do texto, nada mais. Apenas se concebendo a aplicação no sentido amplo é que se pode enxergar a interpretação como uma fase ou etapa sua. No sentido estrito, particular, a aplicação é geralmente empregada "para exprimir a atividade prática do juiz ou administrador, o ato final, posterior ao exame da autenticidade, constitucionalidade e conteúdo da norma", como ensina Carlos Maximiliano (ob. cit., p. 22).

Eliminada, assim, a natureza interpretativa da analogia, cabe verificar se tem procedência a teoria que lhe imprime um genuíno caráter de criação do direito.

Considerando que o direito não se resume na lei, é de se reconhecer, logo de início, a possibilidade da afirmação, mormente quando se sabe que o magistrado, atento às circunstâncias especiais e mutáveis da vida social, não se pode eximir de proferir sentença, sob o pretexto de silêncio, obscuridade ou lacuna da norma escrita.

Fonte do direito não é apenas a lei: encontra-se-o também nos costumes, na jurisprudência e em seus próprios princípios básicos ou gerais.

Nelson Hungria é enfático: não estando prevista a hipótese nem explícita nem implicitamente, a analogia importa "criação ou formação de direito novo, isto é, aplicação extensiva da lei a casos de que esta não cogita. Com ela, o juiz faz-se legislador, para suprimir as lacunas da lei. É um processo integrativo e não interpretativo da lei" (ob. cit., p 73).

Também para François Gény a analogia possui caráter de verdadeira criação do direito. Separando-se da fonte formal, como instrumento independente de elaboração jurídica, ela constitui, aliás, o principal processo de indagação científica.

Forçoso é reconhecer a sutileza da matéria. Basta lembrar que considerável parcela da doutrina se inclina no sentido de negar essa função criadora, asseverando que o processo simplesmente revela um princípio latente no ordenamento jurídico. Alguns, como já foi visto, chegam inclusive a ampliar o conceito de interpretação, a fim de nela situarem a analogia.

Com isso deram ensejo à formação de uma teoria mista, que se propôs a conciliar as duas correntes (Windscheidt, Coviello). Afirma Ruy da Costa Antunes: "Reunindo certos elementos comuns a ambas as hipóteses, melhor será que aceitemos, com Coviello, constituir a analogia um meio-termo entre o processo interpretativo e a criação da lei pelo juiz" (ob. cit., p. 27).

No entanto, se há uma natureza mista, esta não transparece através da simbiose interpretação/criação do direito. A interpretação difere, em essência, da analogia. Pouco importa que juristas de renome ainda confundam os dois processos. Das divergências e divagações doutrinárias sempre se pode retirar algo de útil e de verdadeiro, mas o que é impreciso ou contraditório... deixa-se de lado!

Muito mais consentâneo com os conceitos usuais é o reconhecimento de que a analogia, servindo-se indiretamente de um preceito legal determinado, não cria, a rigor, o princípio jurídico que informa a lei: apenas o revela ou descobre, eis que ele já se encontraria latente no sistema.

Por outro lado, em face da ausência de norma e conseqüente existência de lacuna, sua integração se realiza mediante a criação — expressão tomada em sentido relativo — de uma regra específica, individualizada, válida exclusivamente para o caso concreto. De outro modo seria impróprio falar em função integrativa, de vez que a analogia não iria integrar à lei um princípio preexistente. Isto é mais compreensível quando vem à lembrança a necessidade da elaboração de um novo dispositivo pelo próprio legislador, se quisesse regular a hipótese imprevista. Não o fazendo, deixa a tarefa ao magistrado.

Por sinal, a interpretação das leis, em face da complexidade e variabilidade das relações sociais, pode possuir "uma função até certo ponto de recriação do direito", conforme assinala Aníbal Bruno (ob. cit., p. 207). E Carlos Maximiliano: "O juiz, até certo ponto, exerce função relativamente criadora, como as câmaras, desde que não se pode abster de decidir, com alegar obscuridade ou silêncio da lei" (ob. cit., p. 95). É neste sentido que Victor Nunes Leal se refere ao "fluxo criador da jurisprudência" (Atualidade do Supremo Tribunal. Revista da Faculdade de Direito de Caxias do Sul, nº 1. 1964, p. 145)

Em suma: conforme o prisma pelo qual se examine a questão, pode-se falar em revelação de um princípio superior, ínsito no sistema legal, ou em criação de uma regra jurídica especial para a situação anômala. "Nada há de contraditório nisto, explica Alípio Silveira, pois um mesmo princípio jurídico pode informar vários dispositivos legais" (Analogia, cit., p. 228). Assim, a regra aplicável ao caso omisso já estaria compreendida no princípio geral, mais elevado, latente no sistema.

Podemos, agora, examinar o assunto à luz da lei penal brasileira.

3. Analogia em face da lei penal brasileira

3.1. Analogia in malam partem.

Entendeu o legislador pátrio (e isto persiste em pleno século XXI) de consignar, na Lei de Introdução ao Código Civil, diretrizes sobre o preenchimento das lacunas. Dispõe o art. 4º : "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito".

Se o princípio se estende aos demais ramos do direito não mais se discute na doutrina. A Lei de Introdução ao Código Civil, em razão da natureza de seus dispositivos, interessa a todos os setores do direito e a eles se aplica indistintamente, a menos que norma específica estabeleça de forma diversa.

Assim é que, na conceituação de crime e imposição de pena, legítimo seria o emprego da analogia se não o vedasse o art. 1º do Código Penal: "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal".

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Trata-se de norma básica, síntese do moderno direito penal. Já apregoava Franz von Liszt: "Segundo a intuição moderna, a lei é a única fonte do direito penal. Todas as disposições penais pertencem, pois, ao direito estatuído" (Tratado de direito penal alemão, [trad.], t. 1. Rio de Janeiro: F.Briguiet, 1899, p.132).

É bem verdade que já se procurou desmentir o valor do apotegma para a época presente. Alega-se que o crime em si, como fato nocivo e anti-social, existe independentemente de qualquer construção legislativa, não sendo justo que o respectivo autor permaneça impune.

Desconhecem os que assim pensam o receio, aliás natural, de uma justiça autoritária e hipertrofiada. Para eles, "as razões históricas, quanto a esse temor, seriam eventuais, como os excessos do arbítrio judicial do século XVIII" (Roberto Lyra. Direito penal, v.1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1936, p. 250).

Demonstrou o contrário a legislação nacional-socialista, que permitiu se identificasse a analogia, em suas aplicações práticas, com a política destruidora do Führer. Embora menos severa, também a prescrevia o código penal da então URSS, de 1926. A analogia era baseada na idéia de defesa social, de caráter político. Depois, com a reforma de 1958, adotaram os soviéticos o princípio da reserva legal.

Pouco vale o argumento de que países legalistas tenham ilidido o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege. Muito menos serve de apoio o precedente do Tribunal de Nuremberg, considerado por Ruy da Costa Antunes o maior tribunal da história, que "não vacilou em recorrer à analogia" (ob. cit., p. 130).

Se erros foram cometidos, nenhuma culpa se pode atribuir ao apotegma. Serviram até para despertar a atenção dos juristas contemporâneos, os quais, longe de abandoná-lo, se têm preocupado em garantir-lhe a eficácia, mediante uma formulação condizente com seu elevado significado político.

Quanto ao Tribunal de Nuremberg, convém lembrar que para muitos "é indefensável, uma vez o apreciemos sob o aspecto jurídico. Basta invoquemos, para essa afirmativa, a regra tradicional do nullum crimen, nulla poena sine lege, que, no caso, foi absurdamente supressa" (José Rocha Ferreira Bastos. O problema da criminalidade de guerra. Revista Jurídica, n.19. Porto Alegre: Organização Sulina, 1956, p.33).

O Brasil não abre mão daquela máxima. Sua inclusão nas constituições e códigos penais já denota uma tradição altamente dignificadora do senso jurídico dos nacionais. Já advertia Filinto Bastos: "Temerário e anti-social seria entregar aos caprichos da tirania, às paixões ou à ignorância do executivo, ou ao arbítrio dos juízes e tribunais, a liberdade e a vida do cidadão, deixando-lhes a faculdade de, a seu talante, qualificar delitos e prescrever penas que a estes fossem aplicáveis" (Breves lições de direito penal. Bahia: Tipografia Almeida, 1906, p. 41).

Há um caráter essencialmente político, que logo se denota: é a certeza do respeito aos direitos do homem. Com isso, desaparece o medo de uma justiça duvidosa. São palavras de Bento de Faria: "Ninguém pode viver na incerteza do que é ou não é punível, perdendo, assim, a garantia de tranqüilidade" (ob. cit., p. 74).

Deve-se ainda recordar que o raciocínio por analogia pertence ao magistrado, mas "pode não ser o do criminoso — e o que importa, em direito penal, é a intenção do criminoso"(Alcino Pinto Falcão, As garantias individuais como limite ao arbítrio da repressão penal, Revista Jurídica n.º 18. Porto Alegre: Organizações Sulinas, 1957, p. 61). Sob este aspecto, segundo Nelson Hungria, a supressão do princípio da reserva legal afetaria a própria noção de culpabilidade, que não pode existir sem a consciência da violação do dever jurídico, ou sem a possibilidade dessa consciência.

Por tudo isso, e especialmente em nome do ideal de liberdade, tem plena justificativa a total consagração do aforismo, com a conseqüente vedação da analogia in malam partem.

3. 2 Analogia in bonam partem.

Entretanto, não se pode estender a proibição da analogia a hipóteses que se não relacionam com o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege. Contanto que a analogia nenhum prejuízo acarrete ao réu, mas venha em seu auxílio, lícito será seu emprego. Não o proíbem a Constituição, nem o Código Penal — antes o permitem.

O silêncio do Código, neste particular, não deve ser interpretado sob o signo da intransigência. Ao revés, reclama uma análise mais acurada de todo o ordenamento jurídico brasileiro, assim como um exame cuidadoso das conseqüências da analogia in bonam partem.

Ora, já ficou patenteado que o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil se aplica aos demais ramos do direito, desde que preceito especial não disponha em sentido diferente. São concordes, nesta assertiva, juristas do porte de Alípio Silveira, Carvalho Santos, Clóvis Bevilacqua, Eduardo Espínola, Espínola Filho, Frederico Marques, Magalhães Noronha, Pontes de Miranda, Serpa Lopes e tantos outros.

No caso do direito penal, só existe um dispositivo de lei que versa sobre o assunto. É o artigo primeiro, que de modo peremptório não admite a analogia no tocante à definição de crime ou imposição de pena. Refere-se, pois, única e exclusivamente, à analogia in malam partem.

Nelson Hungria, no entanto, contrapõe à analogia in bonam partem a circunstância de serem excepcionais os preceitos concernentes à exclusão de crime ou de culpabilidade, isenção ou atenuação de pena e extinção de punibilidade, concluindo que "não admitem extensão além dos casos taxativamente considerados" (ob. cit., p. 76).

De fato, segundo um velho preceito de hermenêutica, as exceções se interpretam estritamente — exceptiones sunt strictissimae interpretationes. Deste teor era o artigo 6º da antiga Introdução ao Código Civil.

Não obstante, a analogia benigna é defendida por enorme parcela da doutrina mundial, com a qual sintonizam acatados penalistas pátrios. Os que lhe são adversos constituem, no Brasil, flagrante minoria.

O assunto já fora debatido em conclaves internacionais, de que sai sempre vitoriosa a tese de sua legitimidade. Recorde-se o IV Congresso Internacional de Direito Penal (Paris, 1937) e o I Congresso Latino-Americano de Criminologia (Buenos Aires, 1938). Em 1963, em Santiago do Chile, foi convocada uma reunião de penalistas da qual participaram Nelson Hungria, Basileu Garcia e Heleno Fragoso, com o fim de se elaborar um Código Penal Tipo para a América Latina. A declaração de princípios, então aprovada, elimina unicamente a analogia in malam partem (Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal da UEG, nº 4, 1964, p 145 a 152).

Teria perdido o seu prestígio o provérbio da interpretação estrita?

Positiva seria a resposta, logo à primeira vista, uma vez se reconhecesse o caráter excepcional daquelas normas.

Em verdade, porém, nem o provérbio caiu em completo desuso nem é pacífica a doutrina na conceituação e determinação dos preceitos gerais e excepcionais.

Prova disso oferece Aníbal Bruno, para quem as normas que beneficiam o réu "não são exceções às normas incriminadoras, mas expressões, por si mesmas, de princípios gerais que se aplicam à matéria que delas se ocupam" (ob. cit., p 209).

Assim também pensa Ruy da Costa Antunes (ob. cit., p. 219). Não é absoluto o poder punitivo do Estado. Ao contrário, sempre se condiciona à prévia verificação de certas circunstâncias, atinentes à própria noção de crime e ao complexo de valores (vida, liberdade, etc.) considerados não isoladamente, mas em harmonia com o sistema que lhe cabe preservar. O que se observa, em outras palavras, é a existência sempre possível de determinadas condições (idade, saúde mental, necessidade, etc.) que concorrem para a limitação do poder punitivo do Estado.

O argumento é convincente. Determinadas normas não podem ser consideradas excepcionais apenas porque traduzem a abstenção punitiva do Estado. Os mortos e os animais não sofrem penas. Trata-se de princípio indiscutível (nos últimos séculos, pelo menos). Pois bem: tal afirmação implica exceção a alguma regra? Não, obviamente. O mesmo raciocínio é válido para o exame das normas que isentam de pena os loucos e os menores, por exemplo.

Ensina, outrossim, Carlos Maximiliano: "A disposição excepcional e aquela a que a mesma se refere devem ser de natureza idêntica; enquadram-se na mesma ordem de relações a exceção e a regra" (ob. cit., p. 276). Ora, punir e não punir são expressões que não possuem a mesma natureza, nem se enquadram na mesma ordem de relações, pois uma sempre nega a outra, inevitavelmente.

Não obstante, ainda que se reconheça o caráter excepcional daquelas normas, hão de existir outros motivos — e de fato existem — que justifiquem a analogia in bonam partem.

Não mais se concebe o Estado todo-poderoso, arbitrário, absoluto. O Estado é meio e, não, fim, com bem disse Ataliba Nogueira (O Estado é meio e não fim. São Paulo: Saraiva: 1955). Mormente quando se legitima no poder de punir, como instrumento do direito, não pode prescindir do elemento ético, que informa e estrutura, dentre tantas outras, a doutrina da responsabilidade, das causas justificativas, das circunstâncias atenuantes e agravantes.

A vontade (fonte de aferição do grau de culpa) e a necessidade (base da teoria da inexigibilidade de outra conduta) são conceitos que interessam não só à filosofia como ao próprio direito penal. Este vive de moral impregnado, tanto que do crime se diz comumente que constitui a violação do mínimo ético. De outra forma, não se poderia subentender que a lei é conhecida de todos. Onde buscar esta presunção, à vista de tantos analfabetos e leigos no direito? Só há uma resposta: na consciência de todos e de cada um. Na própria noção de sociabilidade. Na capacidade potencial de discernimento, inata no homem, entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto.

Por isso se há de convir, com José Frederico Marques, que são os mandamentos do bem comum que permitem a construção analógica "para considerar-se lícita uma conduta cuja punição viria ferir a consciência ética da coletividade, e contrariar suas normas de cultura moral e social"(Tratado de direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 143).

Percebe-se, pois, que o brocardo da interpretação estrita nunca foi erigido em dogma de hermenêutica, mesmo porque "se aplica com a maior circunspecção e reserva, e comporta numerosas exceções" (Carlos Maximiliano, ob. cit., p.285). Os brocardos, aliás, proliferam com facilidade, alguns são até antagônicos, outros surgem de casos isolados, não podendo estender-se a todas as situações da vida social. Na sua escolha se percebe, muitas vezes, o genuíno magistrado, de quem se deve esperar um lúcido espírito crítico, incapaz de se deixar seduzir por parêmias enganadoras.

A propósito, especialmente no direito penal, outros aforismos se levantam, em nome da eqüidade e do bom senso. Recorde-se o que serve de fundamento à própria analogia: Ubi eadem ratio ibi idem jus. Se existe a mesma razão jurídica, por que correr-se o risco de uma punição sumamente rigorosa? Acaso a liberdade do homem vale menos que uma pretensa e duvidosa defesa social? Não, em absoluto, pois não se compreende a defesa da sociedade sem a defesa do indivíduo: "Se cada cidadão for protegido individualmente a soma dessa proteção corresponde à proteção da coletividade. O erro é pensar-se que defender a sociedade significa esmagar o indivíduo. A parte não pode destacar-se do corpo sem que este se ressinta" (Américo Marco Antônio, Causas de exclusão de criminalidade no anteprojeto do código penal. Ciclo de conferências sobre o anteprojeto do código penal brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1965, p. 32).

Daí a justeza do velho adágio: Libertas omnibus rebus favorabilior est, ou seja, em todas as coisas maior favor se atribua à liberdade.

É bem significativa a advertência dos mestres de que existem ocasiões especiais que forçam o juiz a recorrer ao processo analógico em direito penal, sob pena de cometer palpáveis iniqüidades.

Magalhães Noronha assinala uma hipótese: a da mulher violentada em seu pudor que venha excepcionalmente a engravidar. O Código se refere à licitude do aborto médico da mulher estuprada (art. 128, II). A punição pelo abortamento será inevitável se a analogia deixar de ser invocada.

Pode-se acrescentar o aborto praticado por enfermeiro, diante da absoluta e previsível falta de médico no local, ou de sua expressa negativa em fazê-lo, mesmo em caso de estupro. É certo que se recorre, então, à figura do estado de necessidade. Mas também é certo que o raciocínio analógico reforça a convicção da injustiça de um tratamento diferenciado, nas circunstâncias há pouco referidas.

Extingue-se a punibilidade, segundo o inciso VIII do artigo 108 da antiga Parte Geral, pelo casamento do agente com a ofendida, nos crimes contra os costumes definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial. A "ofendida", na expressão literal do Código, só poderia constituir uma pessoa do sexo feminino. Lembrava, porém, Basileu Garcia que também a mulher é suscetível de sofrer a imputação do crime do art. 214 (atentado violento ao pudor) e do art. 218 (corrupção de menores). Se ela vem a casar com a vítima, que seria um homem, indubitavelmente, extinta se torna a punibilidade? Ele mesmo respondeu: "Não se pode dizer que não, mas a lei não é suficientemente flexível para a solução justa, em patrocínio da qual se terá de recorrer à analogia, a fim de evitar uma iniqüidade" (Instituições de direito penal, v. 2. São Paulo: Max Limonad, 4ª ed., 1963, p. 692 e 693).

Parece que a simples interpretação lógica, baseada na própria finalidade do texto, ampara da mesma forma a solução apontada por Basileu Garcia. Entretanto, serve o exemplo para denotar a importância da eqüidade no direito penal, muitas vezes inexistente quando a analogia é esquecida. A propósito, a nova Parte Geral (inciso VII, recentemente revogado pela Lei nº11.106/2005) passou a falar de casamento do agente com a vítima e, não, com a ofendida.

Fernando de Almeida Pedroso, dentre outros exemplos, lembra que o Código Penal isenta de pena, no crime patrimonial sem violência ou grave ameaça, ao agente que o pratique em prejuízo "do cônjuge, na constância da sociedade conjugal" (art. 181, I). Sustenta a aplicação da imunidade a quem vive como marido e mulher, em união estável. Motivo: analogia in bonam partem (Direito penal, 3ª ed. São Paulo: Leud, 2000, p. 48/49).

É também no campo da isenção de pena que João José Leal sustenta a validade da analogia em favor do acusado. Cita como exemplo "a aplicação da escusa absolutória prevista no § 2º do art. 348 (favorecimento pessoal) aos casos de prática do delito de fuga de pessoa presa (art. 351, caput do CP)", desde que a evasão se proceda sem ameaça ou violência e que o autor seja descendente, ascendente, cônjuge ou irmão do evadido" (Direito penal geral, 3ª ed. . Florianópolis, OAB/SC, 2004, p. 123.

Edmundo José de Bastos Júnior, fazendo remissão a Fabbrini Mirabete, alude à hipótese do co-herdeiro que destrói coisa fungível, cujo valor não excede à quota da herança a que tem direito. Entende cabível a aplicação analógica do § 2º do art. 156 (furto de coisa comum), atinente à ausência de punição (Código penal em exemplos práticos, 3ª ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2002, p.22).

Fabbrini Mirabete, há pouco citado, menciona, dentre outros, como caso de aplicação de analogia in bonam partem, "a punição por simples crime culposo, no excesso por culpa no estado de necessidade, exercício de direito ou cumprimento do dever legal, diante do que previa o artigo 21, parágrafo único, da lei anterior, referente à legítima defesa". E acrescenta que a lacuna já foi eliminada, haja vista a "disposição genérica do artigo 23, parágrafo único, da lei nova" (Manual de direito penal, v. 1, 6ª ed. São Paulo: Atlas, 1991, p. 48).

Em suma: desde que se vislumbre a mesma razão jurídica, a exigir a analogia, não se há de proscrevê-la para preferir-se a injustiça, pois esta não tem lugar na consciência nem nas decisões dos autênticos magistrados.

É hora de se rever a matéria no capítulo a seguir, em forma de síntese, e ainda com o acréscimo de observações de ordem crítico-metodológica.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira:: visão teórico-dogmática e crítico-metodológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1474, 15 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10130. Acesso em: 24 abr. 2024.

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