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Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira:

visão teórico-dogmática e crítico-metodológica

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15/07/2007 às 00:00
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Capítulo III - Síntese teórico-dogmática e visão crítico-metodológica

Sumário: 1. Síntese teórico-dogmática 2. Visão crítico-metodológica

1.Síntese teórico-dogmática

Pode-se resumir os capítulos anteriores, no plano teórico-dogmático, através dos itens seguintes:

I) A hermenêutica jurídica, pregando, em regra, a elasticidade da lei e sua harmonia com o fim do direito e o bem comum, afastou-se gradativamente da rigidez das palavras e do pensamento do legislador para erigir-se em sistema idôneo de interpretação, que atende, em regra, a seus elevados objetivos.

II) A interpretação é o processo de determinação do sentido e alcance da norma jurídica.

III) A analogia é o processo lógico que autoriza a criação de uma regra jurídica, derivada da lei, aplicável a um fato omisso. Situa-se, pois, no setor de aplicação do direito, onde opera como elemento supletivo da lei.

IV) A analogia difere, por seu próprio objeto e finalidade, da interpretação analógica e da interpretação extensiva.

V) A interpretação analógica não constitui espécie de interpretação extensiva, tendo em vista que não implica, necessariamente, maior amplitude do espírito da lei em relação à fórmula empregada. É o próprio texto que a indica e a permite. Logo, não faz sentido falar-se, no caso, em interpretação extensiva.

VI) A interpretação analógica e a interpretação extensiva são perfeitamente válidas no direito penal brasileiro. Extensiva, declarativa ou restritiva, a exegese, aliás, é sempre legítima, a menos que se pretenda amputá-la, desfigurar-lhe a substância.

VII) O princípio do in dubio pro reo não se acomoda ao processo interpretativo propriamente dito. Não vale como guia, ou ponto de partida. Ao intérprete é defeso, inclusive no direito penal, servir-se de conceitos apriorísticos que possam obliterar, mesmo eventualmente, a descoberta da verdade.

VIII) A analogia in malam partem é terminantemente vedada no direito penal brasileiro. Impedem-na o Código (art. 1º ) e a Constituição (art. 5º , XXXIX), que consagram o princípio da reserva legal, reflexo de comprovada maturidade político-jurídica dos nacionais.

IX) A analogia in bonam partem: a) não está proibida pela Constituição, nem pelo Código Penal; b) é expressamente permitida pelo artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, estendível ao direito penal pátrio, em face do silêncio do respectivo Estatuto; c) impõe-se como medida indispensável, destinada a conciliar a lei com a eqüidade, em atenção à justiça e aos reclamos da moral social.

2.Visão crítico-metodológica.

Nada obstante, há que se rever a matéria de um ponto de vista crítico-metodológico. Sob este prisma, o que mais interessa é o direito penal efetivamente positivado como verdade histórica.

Não basta afirmar, hodiernamente, o sentido de garantia das normas constitucionais e penais em face do poder constituído. Não basta dissecar o princípio da reserva legal e dele extrair certas conseqüências ditas irrefutáveis: proibição da retroatividade, da analogia e dos costumes em prejuízo do acusado; obrigatoriedade de clareza e objetividade na descrição do fato punível (ausência de vagueza e ambigüidade).

O penalista precisa se dar conta de que profere suas lições em linguagem natural (no Brasil, em língua portuguesa), o que significa dizer que não se liberta dos vícios que lhe são inerentes, mesmo quando se atém à terminologia técnica, especializada. E as regras de hermenêutica jurídica, além de eventualmente contraditórias, conservam as mesmas virtudes e defeitos de qualquer sistema de linguagem articulada, virtudes e defeitos que se encontram igualmente na linguagem utilizada pelo próprio legislador. Seria útil, por isso mesmo, a leitura do livro de Rosa Maria Cardoso da Cunha, em que procura mostrar o caráter retórico do princípio da legalidade. Lê-se na própria capa, como subtítulo: "ou como a lei penal retroage em prejuízo do acusado; a lei escrita não é a única fonte do direito penal; existe analogia in malam partem; as palavras da lei penal são vagas e ambíguas" (O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979).

E mais. A lógica que vale para o direito tem tudo a ver, desde o início, com o processo ou mecanismo de busca das premissas. São muitos os dispositivos legais, ou extra-legais, à disposição do operador jurídico. É dele o ponto de partida. É dele que depende, em última instância, o acerto ou desacerto da escolha efetuada.

Por exemplo: cabe ou não cabe analogia in bonam partem na hipótese de aborto praticado por médico em mulher cuja gravidez é derivada de violência diversa do estupro? Já vimos que Magalhães Noronha opinava pela afirmativa. A grande maioria dos penalistas, por sinal, concorda com ele. Mas Heleno Cláudio Fragoso, ainda na edição de 1985, nos apontava um impedimento de ordem técnica, relacionado com o caráter excepcional da regra do artigo 128, II (Lições de direito penal: a nova parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 88).

Coisas do passado? Nem sempre. Servindo-se de especialistas em hermenêutica, inclusive na área jurídico-penal, Luiz Regis Prado entende "que a regra do art. 128, II, do Código Penal, é norma penal não-incriminadora excepcional ou singular em relação à norma não incriminadora geral (art.23, CP). Pelo que, como se trata de jus singulare, em princípio, não é de ser aplicado o procedimento analógico, ainda que in bonam partem" (Curso de direito penal brasileiro: parte geral, 2ª ed. São Paulo: RT, 2000, p. 103).

O curioso dessa negativa reside no fato de se tratar de obra moderna, bem escrita, atualizada. Nela há todo um capítulo dedicado aos princípios penais de garantia: da legalidade ou da reserva legal; da culpabilidade; da exclusiva proteção de bens jurídicos; da intervenção mínima; da fragmentariedade; da pessoalidade, da individualização e da personalidade das penas; da humanidade; da adequação social; da insignificância (p. 77/90). São princípios que procuram preservar o indivíduo de abusos do legislador ou do operador jurídico, em matéria de crime e pena.

Note-se que cidadãos, no Brasil, são também as vítimas de crimes legalmente tipificados; mas o princípio garantista vale, de modo particular, para os possíveis réus de processo criminal.

Contudo, a lei penal, mesmo nos dias de hoje, não oferece nenhuma garantia ao cidadão se dela divergir o intérprete ou juiz convencido da validade ou legitimidade de seu ponto de vista pessoal. Assim, a par das ambigüidades dogmáticas, há que se levar em conta a discricionariedade do julgador, que "somente encontra limites em sua própria concepção pessoal da criminalidade e nos estereótipos que orientam a possibilidade de separar o joio do trigo", na expressão de Alessandro Nepomoceno (Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 228).

A verdade é que em todos os tempos se opina e se decide eventualmente contra a lei, em determinadas matérias, mesmo em prejuízo do acusado. Por exemplo, excelentes penalistas dispensam a ocorrência de perigo concreto de dano (dano potencial) na hipótese do crime de embriaguez ao volante, in verbis: "Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem [ grifei]. Penas — detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (Código de Trânsito Brasileiro, art. 306). Contentam-se com a direção irregular na via pública, independentemente de existir ou não, nas proximidades, em estradas vazias, uma única pessoa sequer ("outrem", na expressão da lei). Transformam ilícitos administrativos em crimes de trânsito, apesar de negarem, em tese, a possibilidade jurídica de crimes de perigo abstrato. E há os que, mais radicais ainda em prejuízo do réu, falam justamente em perigo abstrato associado ao simples fato de se dirigir veículo automotor na via pública em estado de embriaguez. Haveria crime mesmo se não se percebesse, além da própria embriaguez, qualquer outra conduta indicativa de infração de trânsito. Nessa hipótese, e muitas outras, como já tive a oportunidade de lembrar, institucionalizou-se a anarquia exegética. E sem nenhuma surpresa para os que guardam para si um mínimo de espírito crítico (Crimes de trânsito: interpretação e crítica. Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 25. São Paulo: RT, 1999).

Se essa liberdade exegética é possível em crimes de trânsito, nem sempre ligados a pessoas previamente carimbadas como criminosas, imagine-se o que pode ocorrer com o latrocínio consumado. Ainda que este, por definição legal, implique subtração (CP, art. 157, § 3º ), considerável parcela da doutrina e da jurisprudência a dispensa, em prejuízo do réu. Lê-se na Súmula 610 do STF: "Há crime de latrocínio quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima".

Outro exemplo: a lei só admite infanticídio (CP, art. 123) se a conduta visando à morte do filho ocorre durante o parto ou logo após. Ainda assim, muitos criminalistas dispensam o "logo após" e acomodam o delito a qualquer momento após o parto, desde que haja influência do estado puerperal. Percebe-se, no caso, benefício para a mãe. Esta, no entanto, é flagrantemente prejudicada quando procede com simples imprudência ou negligência. Parte da doutrina lhe aponta a prática do crime de homicídio culposo, em detrimento do princípio da reserva legal. Ora, admitida essa possibilidade, teríamos que imputar-lhe, igualmente, a lesão corporal seguida de morte, com pena de reclusão de quatro a doze anos (CP, art. 129, § 3º). E o infanticídio, que só existe na forma dolosa (dolo de matar: CP, art. 123 c/c art. 18, parágrafo único), além da pena de detenção, tem limites bem menores, de dois a seis anos... Conclusão: a visão lógico-sistemática do Código Penal, em parceria e consonância com o método hermenêutico da ponderação dos bens e valores, ou da lógica do razoável, só poderia nos indicar a visível atipicidade do "homicídio culposo" eventualmente cometido sob a influência do estado puerperal.

A lei menciona o "emprego de arma" em uma das formas de roubo qualificado (CP, art. 157, § 2º, I). Nada obstante, em homenagem à subjetividade (temor) da vítima, era comum reconhecer a mesmíssima figura delituosa se o agente se servia de meio fraudulento (arma de brinquedo) para intimidar o ofendido. A matéria chegou a constar da súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: "No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena". A súmula foi cancelada em novembro de 2001. Não é difícil perceber, no entanto, a enorme diferença que existe entre a lei penal, como projeto de direito, e a realidade jurídica efetiva e contraditoriamente construída pelos operadores do sistema.

Na receptação imprópria, que ocorre quando o agente influi para que terceiro, de boa-fé, adquira, receba ou oculte coisa produto de crime (CP, art. 180, caput, 2ª parte), fala-se em consumação mesmo que o terceiro manifeste de imediato seu total desinteresse pela proposta. Rogério Greco, acertadamente, não compartilha do lugar-comum. A consumação do crime pressupõe o efetivo recebimento, aquisição ou ocultação da coisa por parte desse terceiro de boa-fé (Curso de direito penal, v. 3. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 377). Contudo, alguém afirmou, pela primeira vez, que o delito é formal, ou que independe para seu aperfeiçoamento da conduta da pessoa de boa-fé. Resultado: é raro encontrar, ainda hoje, um jurisconsulto que se lembre da Lei, e da Constituição Federal, como garantia do réu contra as "liberdades" de uma exegese que, ao descartar a tentativa de crime, e insistir na consumação, transforma seu artífice (o jurisconsulto), com exclusividade, em fonte direta ou indireta do direito penal.

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Daí que a lei, em verdade, jamais será fonte exclusiva do direito, em termos objetivos. A par de sua vagueza e ambigüidade, ela concorre com a paralela produção teórico-doutrinária dos juristas, que se encarregam, assim, de convalidar por outras vias a faceta contraditória do direito. E essa convalidação por outras vias também ocorre diante de leis bastante claras, mas rejeitadas, em havendo interesse e clima para diferentes construções fático-normativas (Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 59/60)

É evidente que o grupo social também participa do contexto jurídico, em tema de conteúdo, pois legisla no "varejo", enquanto o poder público se restringe a legislar no "atacado". Aceitando e professando a ideologia dominante, a ideologia dos grupos encastelados no poder de persuasão; ou germinando, por sua conta e risco, outras idéias e valores, também os governados conseguem ratificar ou retificar o direito, inclusive o direito penal. E o fazem por ação e omissão, amalgamando sua cota de poder na decisão mais ou menos formal dos que se incumbem, em princípio, de agir em nome da comunidade: autoridades administrativas, delegados de polícia, promotores de justiça, juízes de direito, legisladores (idem, p. 61).

Visão crítico-metodológica: o direito penal é isso mesmo, ditado e construído pelas circunstâncias históricas. Delas participam, em maior ou menor intensidade, a lei penal em vigor; o decreto-lei em vigor; o ato institucional em vigor; as valorações sociais; a globalização jurídico-dogmática; a personalidade do operador jurídico; o nível de opção argumentativa ou decisória em face das condições políticas do país.

Ainda que modernas e atualizadas, as teorias jurídico-penais não conseguem padronizar a conduta do intérprete emocionalmente predisposto a indicar a solução compatível com suas próprias expectativas ideológicas e um certo grau de liberdade ocasionalmente desfrutado. Quer dizer: ele, o intérprete, as conhece muito bem, e sabe que, não raro, essas teorias apontam para caminhos divergentes; ou que, por sua vagueza e ambigüidade, ora permitem o sim, ora permitem o não — tal como ocorre com as leis, costumes, razão, justiça, eqüidade e bom senso.

Em suma, conforme registrado em outro contexto, nenhuma dogmática jurídico-penal consegue eliminar o que está fora do seu alcance: a dialética do tempo; a lógica jurídica de busca das premissas; a biografia do intérprete; o mistério das palavras; o poder econômico; a força política; os sentimentos éticos e preconceitos inseridos no grupo social. Estes ingredientes é que ajudam a forjar o direito em sua concretude (Ensino crítico de direito penal. Revista da ESMESC, v. 11, n.º 17. Florianópolis: Habitus, 2005, p. 168; igualmente em Jus Navigandi, Teresina, a. 9, nº 557, 15 jan. 2005).

Nada disso, entretanto, invalida o esforço de identificação e aperfeiçoamento das regras de hermenêutica jurídica. Construídas historicamente, elas permanecem válidas como subsídio retórico a quem se despe da força bruta para, com honestidade intelectual, contribuir com seu próprio gesto para o direito que repute possível e justo, em clima de liberdade e responsabilidade socialmente compartilhadas.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira:: visão teórico-dogmática e crítico-metodológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1474, 15 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10130. Acesso em: 10 mai. 2024.

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