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A crise da democracia na pós-modernidade: declínio, distorção e o abuso constitucional

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30/01/2023 às 15:40
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Apesar do declínio dos métodos tradicionais de derrubada democrática, predomina o uso de ferramentas constitucionais para criar regimes autoritários e semiautoritários.

Resumo: Este trabalho identifica um fenômeno cada vez mais recorrente: o uso de mecanismos de mudança constitucional para corroer a ordem democrática, nomeado de constitucionalismo abusivo. Embora os métodos tradicionais de derrubada democrática, como o golpe militar, estejam em declínio há décadas, o uso de ferramentas constitucionais para criar regimes autoritários e semiautoritários é cada vez mais predominante, consequentemente gerando deturpação em governos que se autodominam democráticos, porém não o são de fato. Dessa forma, são criados Estados híbridos, nos quais, apesar de sua Constituição apresentar uma aparência democrática, com elementos característicos de um Estado, como a separação dos poderes, sua sociedade não desfruta de uma democracia plena, e sim esvaziada de seus fundamentos. Surgiram novos agentes de poder global tanto públicos como privados que não se vinculam aos valores inspiradores do constitucionalismo. Estes agentes refazem a ordem constitucional com mudanças sutis, a fim de dificultar a sua substituição e retirar dos tribunais a capacidade de fiscalizar os seus atos. Os regimes resultantes dessas manobras continuam a ter eleições e não são totalmente autoritários, mas são significativamente menos democráticos do que eram anteriormente. Assim, para além dos efeitos visíveis da intervenção destes novos poderes globais, surgem alguns problemas estruturais que podem afetar a própria essência do constitucionalismo e da democracia, bem como, episódios de abusividade. A vista disso, o presente trabalho metodologicamente realiza uma análise crítica da literatura sobre democracia e constitucionalismo abusivo, por meio de revisão bibliográfica, com suas respectivas conceituação e explicação do fenômeno, apontando recentes casos de abusividade em diversos países, que não são internacionalmente vistos como corrompidos. Bem como, sugere elementos de identificação das ocorrências. Como resultado, conclui-se que se necessita repensar as práticas expostas em busca da efetivação do Estado de direito, e consequente mudanças.

Palavras-chave: Constitucionalismo abusivo. Democracia. Crise. Regimes autoritários.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. DEMOCRACIA E O CONSTITUCIONALISMO. 2. O CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO E A CRISE DEMOCRATICA. 3. A EROSÃO CONSTITUCIONAL NA VIDA REAL. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

Democracia, hoje desvirtuada em uma pós-modernidade globalizada, não mais em busca de seu inicial propósito: a efetivação do Estado de Direito, qual é comprometido pelas amarras do neoliberalismo e do constitucionalismo corrompido.

Para entender este fenômeno tão presente e atuante na vida de todos, inclusive os que se abstêm de sua participação como cidadão, é essencial e inevitável questionar o processo de ascensão e queda de um regime democrático, principalmente apurar se os estados que se autodenominam democracia agem a seu favor, pois, de acordo com as pesquisas académicas e doutrinárias feitas no presente trabalho, o que o mundo vive hoje são governos arbitrários camuflados por uma soberania popular não factual.

Alguns dos fatores, que provocam este fenômeno de esvaziamento da democracia no século XXI são: a terceirização das decisões, a burocratização dos partidos políticos, o governo de grandes empresas e a sobreposição da economia financeira sobre a realidade social, o neoliberalismo, a globalização - por acarretar a transterritorialização dos fluxos sociais do Estado nacional, a tecnocracia da política, terrorismo, imigração, corrupção, entre outros de acordo com Monedero (2012, p. 79, apud Corte, 2018, p. 185).

Por um parâmetro mais estrutural, o primeiro fator que torna possível o rompimento da democracia, é justamente sua base, o constitucionalismo. Visto que, o direito positivo é muito presente em nossa realidade, detendo a dominação das leis poderoso crédito, causando o rebaixamento da soberania popular, e a elevação do autoritarismo, o qual permite que quem detenha o poder de legislar faça alterações para benefício pessoal.

Temos então, uma democracia incompleta, em que não há tomada de decisões do povo, apenas a escolha de uma representante, o qual deveria ser fiscalizado, entretanto, não o é, criando assim o cidadão eleitor-espectador. Sem fiscalização, abre-se espaço para a atuação arbitrária dos governos, ainda que os métodos tradicionais de derrubada democrática, como o golpe militar, estejam em declínio há décadas, o uso de ferramentas constitucionais para criar regimes autoritários e semiautoritários é cada vez mais predominante. Poderosos regimes presidencialistas e seus partidos podem projetar mudanças constitucionais de modo a tornar difícil a substituição no poder, além de desarmarem instituições, como os Tribunais de Justiça, que teriam o papel de fiscalizar seus atos enquanto governo. As constituições resultantes desses processos ainda parecem democráticas à distância e contêm muitos elementos que não são diferentes daqueles iniciais, mas, de perto, elas foram substancialmente retrabalhadas para minar a própria ordem democrática (Landau, 2020, p.18).

Exemplificando essas alterações, primeiramente, temos a “rigidez seletiva” na qual baixas exigências formais permitem modificações pontuais, mas significativas na carta magna de um Estado. Isto pois, os conjuntos de regras formais encontrados nas constituições estão se demonstrando meras folhas de papel contra regimes autoritários e quase autoritários. Evidenciando que os mecanismos de proteção às democracias existentes no direito constitucional comparado e no direito internacional se mostraram ineficazes contra essa nova ameaça (Landau, 2020, p. 19).

Esse fenômeno, de graduais alterações desvinculadas com o propósito democrático é descrito como constitucionalismo abusivo originariamente por David Landau (2013, p. 191), significando a utilização de institutos do direito constitucional e do Estado de Direito para violar e minar a democracia liberal por meio especialmente de emendas constitucionais e da substituição de constituições por novas leis fundamentais. A deturpação constitucionalista auxilia na efetivação de novas modalidades de governos ditatoriais ou semiditatoriais sem a necessidade de utilização de golpes de Estado para chegar ou manter-se no poder estatal.

Logo, por não haver mudanças bruscas, não se observam reações globais tão severas, passando-se até por regimes pautados no modelo do Estado Democrático. O imaginário da existência de uma democracia substancial somente faz com que essa situação se perpetue porque as medidas tomadas apenas mascaram interesses alheios a vontade da população sem encontrar soluções para o bem comum.

Entretanto, apesar de não haver forte oposição, as ações abusivas geram uma crise de representatividade. Segundo Gerbaudo (2017, p. 48‑53, apud Andrade, p. 116), essa crise política internacional seria atestada pela crescente falta de confiança em governos e partidos, pela alta abstenção em eleições e pela falta de representatividade das minoras, além das organizações da sociedade civil, como sindicatos, ongs e mídia. Ela se expressaria também pelo descontentamento crescente com a corrupção, com a vigilância e a repressão estatal a manifestantes, e com a erosão da cidadania. E dessa forma, vive-se uma democracia esvaziada de povo.

O segundo fator influente é o liberalismo. Importa lembrar que o Estado social surgiu como resposta ao capitalismo, tentando democratizá-lo, tornando-o mais acessível ao povo que o mantém, assim, as origens do Estado do bem-estar estavam vinculadas aos crescentes conflitos sociais gerados pela economia liberal, que propugnava a não intervenção do Estado nas atividades produtivas.

Dessa forma, devido à penetração do poder corporativo no interior da própria formulação da política há declínio da capacidade democrática. Ocorre assim um sequestro da democracia, que, segundo Streck (2012, p. 55, apud Barboza, Robl, 2018, p. 77-97), também seria promovido pela pressão dos mercados financeiros (credores e agências de classificação de risco) e de organismos internacionais (Fundo Monetário Internacional – FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu – BCE).

Entendemos então que o liberalismo não remete a essa concepção do Estado constitucional como universal representativo do povo. A função do Estado liberal é promover mercados e competitividade, criando condições favoráveis para o investimento capitalista. Com essa função específica, o Estado transfere a responsabilidade pelos direitos sociais para o investimento individual, reduzindo a cidadania a níveis mínimos.

Para o liberalismo a contenção da democracia, de modo a esvaziá‑la da soberania popular, pode ocorrer por meio de uma Constituição que impeça a mudança de política econômica e limite a intervenção estatal, leia-se constitucionalismo abusivo; ou por meio de uma reforma do Estado em conformidade com o modelo da empresa, de modo que se transfira o poder popular para agentes que não foram eleitos.

Outras causas notáveis são o terrorismo e a imigração, muito temida nos países desenvolvidos, e devido a insegurança não só do governo como também dos nativos, abre-se a brecha e com o endosso da população para que medidas extremas sejam tomadas.

Tendo em mãos esse compilado de fatores, é crível e explicável o declínio, distorção e queda da democracia. Contudo, ao questionar o futuro que aguarda o povo, fica nítido que os que se autodenominam ser governos democráticos não o são de fato. Em razão do sistema corruptivo estar há décadas em evolução, com veredito das organizações mundiais e dos cidadãos de cada país, não se pode esperar mudanças a fim de efetivar um Estado de direito, a probabilidade é ir sempre mais em direção o abuso e assim ao autoritarismo decorrente da perda da soberania popular.

Fatos estes que ocorrem na vida real, as mais recentes imagens da democracia no século 21: na Espanha, o Podemos, projetado por pares acadêmicos, é taxado de populista. A Grécia buscou saída de sua grave crise financeira polarizando-se na extrema-esquerda de Syriza Alexis Tsipras, enquanto o Reino Unido viu crescer o Ukip, sigla de extrema-direita, em ascensão semelhante à da Frente Nacional na França. Nos EUA, Trump e sua tentativa de reeleição figuraram como grave risco ao futuro da democracia.

Como mencionado, o que torna tudo isso possível foi a mudança radical das agendas políticas para se amoldarem ao processo constitucional, consolidando, desse modo, uma cultura política de reformas constitucionais, principal meio do constitucionalismo utilizado contra o próprio constitucionalismo e a democracia. Existindo assim uma camuflagem aos atos de abuso garantindo, desse modo, o apoio popular necessário para concretização das manobras necessárias para a manutenção de governos com feições claramente antidemocráticas. (KANEGAE, 2019, p. 278)

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O resultado dessas práticas, provavelmente, não será um autoritarismo completo, mas um regime híbrido em que, as eleições continuam sendo realizadas, mas as forças da oposição enfrentam sérias desvantagens na tentativa de vencê-las. (LANDAU, 2020, p. 21-22). Além das decorrências listadas, que são validadas pelo povo.

Portanto, considerando o alcance mundial do movimento antidemocrático, a desvirtuação das Constituições e seus direitos fundamentais, e as visíveis consequências, com os danos ocorridos e direitos perdidos, esta é uma temática que necessita de imediata atenção, em vista da credibilidade internacional cada dia mais ludibriada, a fim de que não se perca a forma de governo que idealiza ser do povo para o povo. Nas palavras de Reinhold Niebuhr “A capacidade do homem para a justiça faz a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça faz a democracia necessária.”, entendemos, por fim, a real necessidade de estudo do tema.

Com o propósito geral de teorizar a problemática de uma democracia camuflada e seus efeitos, não só em âmbito de nação, mas também os impactos diretamente ao cidadão, em matérias de direitos e autonomia na tomada de decisões. Além da finalidade de proporcionar ao leitor informações, não só a gravidade da crise, mas também fornecer as ferramentas de reconhecimento da queda da soberania popular, analisar o processo de declínio e rompimento da forma de governo democrática, e por meio destes, alcançar a compreensão do que é a crise em sua essência, e se é possível desvendar um método de solução a fim de tornar palpável, e não mais utópico.


1.      DEMOCRACIA E O CONSTITUCIONALISMO

Antes de adentrar a temática do constitucionalismo abusivo e suas consequências frente a democracia faz-se necessário conceituar os vocábulos apresentados.

Primeiramente, a democracia, a qual carrega larga divergências, visto que cada conceito possui uma história, ou seja, uma conexão temporal entre as circunstâncias e sua formulação (KOSELLECK, 2004, p. 30). Iniciando com a etimologia da palavra, qual vem do grego “Demos”, que significa “Povo” e “Kracia” que significa “Governo”, proferida pela primeira vez no século quinto a.C., na Cidade/Estado de Atenas, na Grécia, por Péricles, qual foi primeiro a dizer a máxima “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”. O pensamento era de que a democracia significa que quem tem poder, quem possui soberania, é o cidadão, mas aqui este cidadão é um sujeito de direitos. O importante que se desdobra nesse contexto são dois princípios fundamentais que originam a democracia: a Isonomia, que é a igualdade perante a lei; e a Isegoria, que é a igualdade de participação, criando estes sua base, com os princípios da liberdade de pensamento, expressão, associação e decisão frente a sociedade em que se vive (PAGOTTO, 2021).

Explica Dalla Corte (2018, p. 178-201), que a democracia – no que se refere aos seus conceitos, atores e práticas – alterou-se, não mais correspondendo ao seu regime antigo supracitado de Atenas exercida na ágora, para um regime moderno, principalmente no que concerne à democracia liberal que insurgiu no século XX, momento entre guerras, na Europa, e que foi imposta à América Latina. Portanto, o conceito de democracia é dinâmico, pois altera-se conforme especificidades espaciais (sejam elas culturais, sociais, econômicas etc.) e temporais (época, fatos marcantes etc.), o que ocasiona complexidade em relação ao seu objetivo. Apesar que, convém destacar que na democracia antiga e na democracia moderna “o princípio da legitimidade é o mesmo, contudo todo o restante é distinto” (SARTORI, 2008, p. 57).

Ou seja, a democracia é um processo histórico e cultural, relacionado a vários fatores. Assim, a despeito de existirem atributos comuns, não há um único modelo e significado de democracia em todos os Estados. (DALLA CORTE, 2018, p. 178-201).

Um dos maiores desafios, é que a qualidade democrática não seja, apenas, mais uma adjetivação da democracia, uma vez que nos países latino-americanos ainda há ausência de qualidade democrática. Nesse sentido, para a investigação da “democraticidade da democracia”, a grande pergunta é: “quão democráticas são as nossas democracias?” (IAZZETTA, 2013, p. 140).

Faz-se importante explicar que a qualidade da democracia é um conceito que deriva da própria democracia, ou melhor do objeto que ela qualifica, o que exige “um conceito de democracia claramente especificado e que se ajuste à ideia de qualidade de democracia”. Acontece que, como já dito, a democracia é um conceito aberto e em construção, sendo da sua natureza política a conflituosidade (ou o controvertimento), de forma que sua definição, por possuir carga subjetiva e ideal, não será sempre consensual ou completa. Em outras palavras, há uma indefinição inerente à definição de democracia. Nesse sentido, diz que “há dois elementos que distinguem o conceito de democracia: seu caráter essencialmente debatível (ou disputável) e sua inevitável variabilidade” (IAZZETTA, 2013, p. 142), os quais estão estritamente relacionados com a qualidade da democracia.

Atualmente, entende-se que são três as dimensões da qualidade da democracia que lhe dão significação: procedimentos (regras), conteúdos (direitos) e resultado (políticas públicas) (CALVO, 2010, p. 32). Segundo essa lógica, a qualidade democrática, enquanto um método, não é composta somente por elementos procedimentais (pois eles são insuficientes), necessitando-se avaliar seu conteúdo e seus resultados (IAZZETTA, 2013, p. 142-143).

Nessa linha de raciocínio, com base no modelo de análise de Calvo (2010, p. 32- 44), são os seis fatores que necessitam ser observados para que se alcance a qualidade da democracia: a legalidade ou o império da lei; a responsabilidade ou accountability[1] (prestação de contas vertical e horizontal); o respeito às liberdades sociais e políticas ou à autonomia pessoal; a igualdade ou a justiça social (por meio da implementação de políticas públicas; a legitimidade ou a confiança cívica em relação à democracia.

Abaixo segue tabela que exemplifica os fatores hexagonais da qualidade da democracia:

Figura 1 - Os aspectos negativos e positivos dos seis fatores que compõem a qualidade democrática.

Elaborado por Calvo (2010, p. 44).

Ainda, a qualidade democrática, inserta no contexto de esvaziamento da democracia no século XXI, é complexa e tem relação com diferentes temas: igualdade de capacidades, questões de gênero, (in)cumprimento do contrato social, acesso a bens básicos, direitos civis e suas garantias, representação política (especialmente das minorias que são sub-representadas), direitos trabalhistas e previdenciários, capital e densidade social, partidos políticos, compromissos internacionais, participação popular, comportamento humano, pluralismo de informações, acesso à justiça, soberania econômica e alimentar etc. (MONEDERO, 2009, p. 270). Nesse sentido:

“A democracia com qualidade exige um Estado de Direito verdadeiramente democrático que assegure direitos políticos, liberdades civis e mecanismos de responsabilidade que, por sua vez, afirmem a igualdade política de todos os cidadãos e limitem possíveis abusos do poder do Estado” (DALLA CORTE 2018, p. 178-201).

Vale frisar que, Cláudio Lembo (2005, p. 63), em artigo que discute “O difícil aprendizado da democracia”, encontra, pois, ambiente efetivamente propício ao seu florescimento na linha evolutiva do constitucionalismo que lhe oferece a garantia da presença e perpetuidade das instituições. A ideia de Constituição, destarte, entendida como um documento a pré-modelar o poder, a assegurar governos moderados, limitados e o respeito aos direitos fundamentais, aparece indissociável da evolução democrática.

Neste momento, antes de seguir adiante com a problematização, faz-se necessário conceituar o constitucionalismo em si, e para isso, Callejón (2019, p. 681–702), diz que o constitucionalismo surgiu historicamente como um movimento de controle do poder, concentrando-se essencialmente no poder do Estado. O aperfeiçoamento de técnicas e instrumentos de limitação do poder culmina com as constituições normativas no seio do Estado nacional, através de instâncias políticas e jurídicas que submetem as instituições a regras destinadas a garantir os direitos da coletividade e proteger os das minorias. Assim foi durante a segunda metade do século XX para muitos países europeus (Alemanha, Itália, França, Espanha, Portugal...).

Já na perspectiva mais atual, Eduardo Capellari (2002, p. 45), explana que o constitucionalismo moderno corresponde, historicamente, ao que se chama Estado de Direito. Porém, é preciso que se diga que, embora havendo uma correspondência, os dois conceitos não são sinônimos: o constitucionalismo aparece mais como um movimento, um processo, uma tendência a um tempo doutrinária e institucional; o Estado de Direito, mais como um tipo, um modelo, uma estrutura a que o Estado moderno chegou. O Estado de Direito, compreendido como estrutura derivada do movimento constitucionalista, assume, diante das características filosóficas da Modernidade, a pretensão de universalidade, assim como seus aspectos constituintes: democracia, direitos fundamentais e garantias jurídicas contra o poder.

O autor continua dizendo que a Constituição democrática como norma fundamental do sistema jurídico constitui a própria reserva de justiça da comunidade política, na medida em que atua como mecanismo de autolimitação, ou pré-comprometimento, adotado pela soberania popular para se proteger de suas paixões e fraquezas. Ao estabelecer que certos direitos e instituições encontram-se acima do alcance dos órgãos ordinários de decisão política, ou mesmo fora de sua competência por força das limitações materiais ao poder de reforma da Constituição, as constituições também funcionariam como proteção contra aquelas inconsistências temporais, protegendo as metas de longo prazo que são constantemente sub-avaliadas por maiorias ávidas por maximizar os seus interesses imediatos. A supremacia da Constituição e sua compreensão como reserva de justiça está adequada à ideia de que determinadas condições devam ser observadas para a legitimação do direito. Tanto Rawls quanto Habermas argumentam sobre a necessidade de direitos fundamentais de liberdade e igualdade como fatores intrínsecos à participação popular no processo de elaboração do direito válido. Portanto, há um núcleo básico de direitos, protegidos constitucionalmente, que funcionam como pré-condição à formação da soberania popular.

Para se compreender a teoria constitucional de Rawls é importante notar que o autor estabelece uma hierarquia entre dois princípios, sendo certo que a Constituição abriga o primeiro e a legislação se responsabiliza pelo segundo: (a) O primeiro princípio da igual liberdade é o parâmetro primário para o poder constituinte. Suas exigências principais são de que as liberdades fundamentais das pessoas e liberdade de consciência e liberdade de pensamento sejam protegidas e que o processo político como um todo seja um procedimento justo. Assim a Constituição estabelece um status comum seguro de cidadania igualitária e realiza justiça política. (b) O segundo princípio entra em jogo no estágio legislativo. Dita as políticas sociais e econômicas sendo voltado a maximizar as expectativas de longo-termo dos menos favorecidos sob as condições de igualdade de oportunidade, submetido à manutenção das liberdades iguais (VIEIRA, 1997. p. 62-66).

Em suma, as constituições modernas se caracterizam então pelas declarações de direitos e pela separação de poderes, de onde nasce a moderna cidadania, que deixa de ser apenas a possibilidade de participação nas instituições públicas como parte do Estado e a serviço dele e passa a ser o sujeito da política, onde o Estado é que deve garantir a emancipação do indivíduo. Nos séculos XIX e XX a constituição foi o marco regulador do Estado, com o conceito de constituição material, que implica na existência não somente de um documento escrito, mas num conteúdo garantidor da sociedade liberal. (ROCHA, 2009, p. 377-385).

Essa visualização da democracia, a partir da mecânica do seu funcionamento, desvenda, contudo, delicadas questões no tocante ao constitucionalismo, um movimento que atravessa os dois últimos séculos, firmando-se e encontrando consagração no século XX, concomitantemente à expansão da democracia. Isto porque, com a conotação clara de “movimento político e jurídico”, no dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2018), o constitucionalismo direciona-se a “estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas”, ou seja, regimes democráticos.

Assevera Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2010, p.44) que “ninguém contestará, hoje, ser a democracia o princípio de atribuição do poder adotado pelo constitucionalismo”; a relevância da ordem constitucional para os ambientes democráticos, de sua parte é inquestionável. Foi intensamente cultivada por Hamilton, Madison e Jefferson e a própria Constituição norte-americana lhe oferece respaldo já desde as suas primeiras linhas, proclamado: “Nós o povo...”. Isto porque, passa a noção de constitucionalismo a impor a participação do povo na feitura da Lei Maior, deste Estatuto fundamental. E mais importa numa real limitação do poder, conformando o seu exercício a determinadas balizas. A Constituição assume, pois, o status de marco jurídico a preordenar a atuação dos atores no cenário político, perseguindo, neste desenho, a garantia da liberdade do indivíduo no âmbito da comunidade social. (CAGGIANO, 2011, p. 5-19).

Nesse sentido, desde o século passado, quando a democracia se insurgiu como um fenômeno de transição, de transformação dos regimes políticos no mundo, realiza-se a análise constitucional das democracias – ou seja, busca-se a relação entre as regras constitucionais e os processos políticos (uma vez que a política é considerada um processo jurídico). Contudo, foi somente no século XXI que a democracia, além de pressuposto de legitimação popular e de limitação do exercício do poder estatal, passou a ser considerada um método democrático, o que levou à ampliação de seu escopo para a averiguação de questões procedimentais, institucionais, entre outras (CARDUCCI, 2017).

Por um lado, Dalla Corte (2018, p. 178-201) afirma que a Constituição de cada Estado será a responsável por definir a democracia em seu ordenamento jurídico. Assim, separada da Constituição, a democracia é, apenas, um conceito incompleto e inseguro. Ainda, por derivar da política, a democracia, em sua essência, é conflituosa. Em razão de ser variável, é possível a manipulação de sua utilização com o intuito de mascarar intenções hegemônicas como se fossem decorrentes do poder do povo. Por outro, para Dahl (2001, p. 48), a democracia possui um conceito aberto e variável se interpretada abstratamente, isto é, apartada de uma Constituição. Portanto, a Constituição é a base positivada e racional da política e da democracia. Contudo, “mesmo entre países democráticos, as constituições diferem em pontos importantes”.

Independentemente do ponto de vista escolhido, conclui-se que:

“[...] a realização da democracia, [orientada segundo diretivas axiológicas e normativas,] tem como exigência necessária e inarredável a efetividade da Constituição, o respeito à Constituição, o acato da força normativa de suas regras e princípios”. Assim, desrespeitar a democracia é desrespeitar a Constituição e vice-versa (ESPÍNDOLA, 2003, p. 6).

Elementar a lição que nos coloca diante de um movimento, o constitucionalismo que impacta o século XVIII e, a passos largos, vai se alongando para, em todas as partes, recomendar e inspirar a presença de Constituições, documentos escritos, fundantes, que, do pedestal de lei suprema, obrigam o Poder, cingindo o seu exercício a balizas e limites pré-determinados, resguardando, pois, os direitos humanos fundamentais de ações arbitrárias e, pelo cerceamento do poder abusivo, salvaguardando a liberdade individual (CAGGIANO, 2011, p. 5-19).

Para Habermas (2001. p. 149) estes direitos humanos são uma compreensão da superação da dicotomia soberania popular e devem partir da seguinte questão: “cidadãos livres e iguais devem se conceder reciprocamente quais direitos fundamentais, se quiserem regulamentar a sua vida em comum por meio do direito positivo?” Se compreendermos o debate político como a forma de produção da vontade política racional, a suposição de resultados legítimos – fundados no procedimento democrático - tem de se apoiar, em última instância, em um arranjo comunicativo: as formas de comunicação necessárias para uma formação racional da vontade – e, portanto, garantidora da legitimidade – do legislador político devem ser, por sua vez, institucionalizadas juridicamente (CAPELLARI 2002, p. 110).

O nexo interno, procurado entre os direitos humanos e a soberania popular, consiste, portanto, no fato de que os direitos humanos institucionalizam as condições de comunicação para a formação da vontade política racional. Direitos que possibilitam o exercício da soberania popular não podem ser impostos a essa práxis como limitações de fora. Para Habermas (2001. p. 149), esse raciocínio é evidente de modo imediato apenas para os direitos políticos civis, ou seja, para os direitos à comunicação e à participação, mas não para os direitos clássicos à liberdade que garantem a autonomia privada dos cidadãos. Esses direitos – que devem garantir a todos chances iguais para conquistarem seus objetivos privados na vida e uma proteção jurídica individual abrangente – possuem, evidentemente, um valor intrínseco e não são como que absorvidos no seu valor instrumental para a formação democrática da vontade.

Em função da necessidade de legitimação e fundamentação do direito por meio de procedimentos democráticos, há uma percepção da pertinência da abertura constitucional, como fator de alargamento do consenso produzido pelo debate constitucional. Em função da importância da decisão constitucional como elemento vinculante a toda comunidade política, Häberle (1997. p. 09-10) enfatiza que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais devem ser ampliados e aperfeiçoados, especialmente no referente às formas gradativas de participação e à própria possibilidade de interpretação no processo constitucional.

Assim, temos que uma Constituição é a estrutura não apenas do Estado em sentido estrito, mas também da própria esfera pública, dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar, portanto, as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos. O Estado constitucional-democrático coloca-se, uma vez mais, a questão da legitimação sob uma perspectiva democrática (da Teoria de Democracia). Ordinariamente, os cidadãos e os grupos em geral não dispõem de uma legitimação democrática para a interpretação da Constituição em sentido estrito. Haberle (1997. p. 47-48,51) argumenta que a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação de responsabilidade formal do povo para os órgãos estatais (legitimação mediante eleições), até o último intérprete formalmente competente, a Corte Constitucional. Em uma sociedade aberta, ela se desenvolve também por meio de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana.

“Devem ser desenvolvidas novas formas de participação das potências públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição. [...] Consenso resulta de conflitos e compromissos entre participantes que sustentam diferentes opiniões e defendem os próprios interesses. Direito Constitucional é, assim, um direito de conflito e compromisso” (HÄBERLE, 1997. p. 47-48,51).

No percurso evolutivo do constitucionalismo moderno, um panorama comandado pelo ideal democrático e pelo ícone em que se transformou o modelo de estado de direito, firmou-se o consenso de que “não basta que a Constituição outorgue garantias; tem, por seu turno, de ser garantida.” (CAGGIANO, 2011, p. 5-19).

Explicado como seria uma ideal constituição em um regime democrata, é necessário dizer que muitos que adotam a forma de governo constitucional democrática, infelizmente, nem sequer são democracias de fato. Portanto, também se deve prestar atenção à qualidade da democracia apresentada. Diante dessa teorização, cabe, inclusive, reflexão se os países que constitucionalmente adotam a democracia são substancialmente/metodologicamente democráticos, e para isso, será explicado como a adoção errônea do constitucionalismo gera crises democráticas, criando assim, um constitucionalismo abusivo.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASSELO, Nathália Alves. A crise da democracia na pós-modernidade: declínio, distorção e o abuso constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7152, 30 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101409. Acesso em: 1 mai. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado a Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, campus Taquaral, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas, à Banca Examinadora da Faculdade de Direito. Orientador: Prof.ª Ms. Vivian Galvão Milani.

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