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A crise da democracia na pós-modernidade: declínio, distorção e o abuso constitucional

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30/01/2023 às 15:40
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2.      O CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO E A CRISE DEMOCRATICA

Aristóteles (apud Pagotto, 2021) em seu livro “A Política”, vai dizer que a melhor forma de governo é a politeia; a politeia é a forma como se organizava a política na Cidade/Estado. No entanto, também irá dizer que cada forma de governo, tendem a ter um lado de degeneração. A monarquia, que é o governo de uma pessoa só, pode tender que esse rei se transforme em um tirano; a aristocracia, que é o governo de alguns (notáveis, pessoas ricas ou nobres), pode se transformar em uma oligarquia e fechada em si tender a uma tirania; agora, a politeia, que é o governo de muitos, que se desenvolvia na Grécia Antiga, pode se transformar em uma democracia como forma de degeneração. Ou seja, algumas pessoas podem acabar transformando a democracia em um processo em que a multidão pode estar fora. Entretanto:

“Muitas formas de governo foram tentadas, e serão testadas neste mundo de pecado e aflição. Ninguém finge que a democracia é perfeita ou onisciente. De fato, diz que a democracia é a pior forma de governo exceto todas as outras formas que foram testadas de tempos em tempos”. Winston Churchill.

“A pior democracia é preferível à melhor das ditaduras.” Rui Barbosa.

(apud Pagotto, 2021).

Dalla Corte (2018, p. 178-201) aplica no presente o que Aristóteles afirmou no passado, que em razão de um somatório de fatores inter-relacionados e que se retroalimentam, como o neoliberalismo, a globalização, a simplificação das complexas diferenças sociais, a invisibilidade de grupos de pessoas, a crise dos partidos políticos, o terrorismo, a imigração, o déficit ambiental, a corrupção, entre outros, a democracia esvaziou-se enquanto forma de poder. E, talvez, os países em desenvolvimento (ou subdesenvolvidos) sejam os que mais sofram com a crise da democracia.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2010, p. 44) propõe-se a verdadeiramente dissecar a receita democrática e promove uma análise da trajetória histórica das democracias. Adverte que o referencial clássico atribuía à democracia a peculiaridade de alojar o supremo poder no povo – ou à maioria – o seu legítimo titular, “Não há democracia se o povo não se governar a si próprio”. Mas, prosseguindo, aponta a democracia contemporânea assumindo contornos diferenciados para atenuar a imagem do povo como titular, produtor e executor do poder político. Nesta concepção, que se alastra e fortalece nos últimos cinquenta anos, ao povo restaria consignada a postura de fonte do poder político (princípio da soberania popular), cometendo-se sua execução a representantes (princípio representativo) que atuam dentro de limites impostos por intermédio de sistema de freios e contrapesos e mais que isto sob as barreiras estabelecidas pelos direitos fundamentais (princípio da limitação do poder).

Ferdinand Lassalle (2003, p. 90) no século XIX identificou a Constituição como a expressão última do poder numa sociedade. Os problemas constitucionais não são, primordialmente, problemas de direito, mas de poder: a verdadeira Constituição de um país reside nos fatores reais e efetivos de poder que regem nesse país, e as constituições escritas não têm valor e nem são duradouras a não ser quando dão expressão fiel aos fatores de poder vigentes na realidade social.

A noção mais ampla de constituição, “em que toda Lei Maior que se faz globalmente efetiva opera como atestado formal de soberania nacional” (BRITO, 2003, p.134), é onde se encontra a essência do questionamento levantado aqui: a Constituição moderna pode ainda assegurar a unidade suficiente para afirmar o Estado como soberano? Para responder é preciso resgatar a noção de soberania, que na sua evolução, conforme afirma Pallieri (1969), se diferenciou em soberania política, absoluta, incontrastável, como poder efetivo do Estado de fazer valer a sua vontade, e soberania jurídica, identificada por Kelsen (1992) como possibilidade exclusiva de um Estado de definir as normas de sua sociedade. (ROCHA, 2009, p. 377-385).

Esta noção permite identificar a constituição como a face jurídica do Estado democrático e de direito, pois a sociedade constituída com a revolução liberal se fundou nos ideais iluministas de racionalismo, democracia e Estado de Direito. A impessoalidade da lei e a confusão entre legalidade e legitimidade garantiram a coesão necessária para costurar o tecido social moderno: o ordenamento jurídico deve ser um sistema racional no mesmo sentido que o é toda a sociedade e a natureza, e sendo assim é legítimo para estabelecer as regras para o convívio social. Mas mais do que isto, este sistema se funda em um poder originário de um pacto social entre os que compõem a sociedade, caracterizados como povo, e legitimadores do sistema pelo princípio de que se auto-governam em regime democrático. O Estado de direito garante a democracia e esta se efetiva com a consciência individual do sentimento coletivo de cidadania. (ROCHA, 2009, p. 377-385).

Assim, constituição é inerente à sociedade, mas no sentido identificado tanto por Lassalle quanto por Kelsen, não necessariamente. O problema está na identificação da constituição com o Estado democrático e de direito. É possível identificar alterações na ordem jurídica e nos fundamentos do direito contemporâneo que podem ser relacionados com este movimento: a mudança de uma sociedade política para uma sociedade organizacional, pautada na eficiência, excludente da sociedade civil organizada; a exacerbação do individualismo, que esvazia o debate sobre a promoção da cidadania; a solução cada vez mais negociada dos conflitos sociais, em detrimento, muitas vezes, dos limites éticos, ideológicos, ou dogmáticos, aliada a uma crise sistêmica, cada vez mais aguda, do judiciário e da polícia; temos uma interpretação cada vez mais elástica dos princípios constitucionais nos tribunais superiores para atender às demandas sociais; uma ingerência cada vez mais intensa da iniciativa privada nas decisões públicas relevantes. (ROCHA, 2009, p. 377-385).

Principalmente no século XX, no período em que a Europa viveu uma fase de intensa conturbação, abalada por dois conflitos bélicos, a Constituição e o constitucionalismo moderno serviram como arma de defesa das democracias, hoje se percebe um nítido avanço nos questionamentos acerca do velho constitucionalismo e sua conformização às novas demandas de prática democrática (DIPPEL, 2007).

Impositivo reconhecer que a sociedade do século XX e a que aporta no presente apresenta-se muito diferente quanto às expectativas em relação ao Estado. A cidadania sofreu profunda remodelação. E o Estado ganhou a responsabilidade direta e irrefutável de amoldar as políticas públicas de forma a atender as perspectivas da cidadania no complexo mundo contemporâneo pigmentado pelos fenômenos da globalização e do multiculturalismo (CAGGIANO, 2011, p. 5-19).

Callejón (2019, p. 681–702) afirma que a permeabilidade que atua no plano financeiro e comunicativo, determinou as duas grandes crises do constitucionalismo frente a globalização neste século XXI, o que por correspondência, são crises democráticas no que tange ao seu resultado, porque ambas dão lugar a processos de involução democrática. Porém, enquanto uma delas gerou uma involução democrática “externa” no sentido de que se produz externamente em relação aos processos políticos estatais, mediante a imposição de condições econômicas limitadoras da capacidade de ação do Estado, a outra gerou uma involução democrática “interna” porque afeta o próprio núcleo dos processos políticos estatais, mediante a interferência em processos eleitorais e no debate público em geral de grandes plataformas.

Por um lado, cronologicamente, a primeira foi a crise financeira, que deu lugar a uma exteriorização do poder estatal, submetido a condições econômicas ditadas de fora (BALAGUER, 2012a). Sob o pretexto da crise, tentou-se implantar uma “interpretação econômica da Constituição” que debilitou os valores inspiradores do constitucionalismo, afetando em grande medida a legitimidade das constituições nacionais. A economia tentou usurpar o espaço não só da política, como também o da própria Constituição, marginalizando-a e convertendo-lhe numa instituição residual no espaço público, perdendo em grande medida sua força normativa, seu caráter pluralista e sua condição de fator regulador da dinâmica social (BALAGUER, 2013c).

Por outro lado, a crise mais recente foi a de caráter democrático, interna, e gerada pelas redes sociais, que se manifestou a partir do referendo sobre o “Brexit” e das últimas eleições presidências dos Estados Unidos, com a incidência que tiveram as grandes agências provedoras se serviços de internet sobre os processos eleitorais. A involução democrática gerada por ocasião da crise financeira é muito grave porque altera as condições estruturais básicas do constitucionalismo (direitos fundamentais, direitos sociais, descentralização política, normatividade da Constituição, divisão de poderes na relação entre Executivo e Legislativo). Porém, a involução democrática interna é ainda mais grave por afetar os processos políticos de formação da vontade estatal internalizando o poder dos grandes agentes globais. (CALLEJÓN, 2019, p. 681–702).

Para além dos efeitos visíveis da intervenção destes novos poderes globais, estão surgindo problemas estruturais que podem afetar a própria essência do constitucionalismo em sua última fase de desenvolvimento até o momento, aquela representada pelas constituições normativas e pela democracia pluralista. No plano econômico, estão sendo minadas as bases do Estado social e deterioradas suas raízes culturais. No plano comunicativo, apesar da potencialidade participativa das redes sociais, está se produzindo um crescente isolamento e encapsulamento da coletividade em grupos e uma mudança de padrões de conduta nos partidos políticos e nos meios de comunicação, que dificultam cada vez mais os processos comunicativos reflexivos, orientados à formação de consensos, que eram típicos da democracia pluralista. (CALLEJÓN, 2019, p. 681–702).

Em verdade, a legitimação do poder político nas democracias requer, de fato, o suporte da opinião pública. Esta não apenas atua legitimando o seu exercício, como age, a seu turno, na plataforma do controle incidente sobre este mesmo poder e a imposição de seus limites. E este é o papel da oposição, sem a qual não há democracia. Foi Robert Dahl (1973) a apontar a relevância dos fatores participação política e oposição na configuração democrática. Ressalta a evidência, aliás, que a mera participação se afigura insuficiente. Esta não conduz necessariamente a um regime democrático, podendo, ao invés, implicar na instalação do populismo e não há que ignorar, também, que a mobilização de massas é tática característica do totalitarismo. Demanda-se, assim, como contraponto, a livre atividade da oposição, porquanto só assim estará assegurada interveniência no cenário decisório às maiorias e às minorias, estas inexpulsáveis da plataforma política em ambientes democráticos (CAGGIANO, 2011, p. 5-19).

Caso essa mudança se consolide, estaríamos ante um constitucionalismo isolado, residual, que não poderia cumprir as funções históricas que lhe caracterizam. Um constitucionalismo sem legitimidade diante das demandas históricas e tecnológicas de nosso tempo, tendente a permanecer marginalizado em relação aos processos políticos reais, e que seria incapaz de controlar os autênticos poderes de nossa época e de garantir os direitos fundamentais diante destes poderes. Isto acontece justamente quando o constitucionalismo havia logrado controlar o essencial no poder do Estado através de mecanismos políticos e jurídicos de cobrança de responsabilidade estabelecidos nas constituições normativas. (CALLEJÓN, 2019, p. 681–702).

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O que é descrito por Callejón no âmbito financeiro e de comunicação, será ainda mais agravado pelo o que foi nomeado por Landau como constitucionalismo abusivo, o instrumento mais poderoso para chegar a essa crise. Essa prática pode ser definida como a elaboração ou a reforma de uma Constituição pelos grupos detentores do poder, com o claro propósito de nele se perpetuarem, reduzindo a oposição, enfraquecendo as instituições e, por consequência, danificando a democracia. Dessa forma, são criados Estados híbridos, nos quais, apesar de sua Constituição apresentar uma aparência democrática, com elementos característicos de um Estado, verdadeiramente, democrático, como a separação dos poderes, sua sociedade não desfruta de uma democracia plena. Assim, tais procedimentos se revestem e se protegem por meio da Constituição a fim de atribuir legalidade e legitimidade aos seus abusos constitucionais. (COSTA JUNIOR 2020, p. 60).

Poderosos presidentes e partidos podem projetar mudanças constitucionais de modo a tornar difícil a sua substituição no poder e desarmar instituições, como os Tribunais de Justiça, que possam fiscalizar seus atos enquanto governo. As constituições resultantes desses processos ainda parecem democráticas à distância e contêm muitos elementos que não são diferentes daqueles encontrados nas constituições democráticas liberais, mas, de perto, elas foram, substancialmente, retrabalhadas para deteriorar a própria ordem democrática. (LANDAU, 2020, p. 18)

No mesmo sentido, Barbosa e Filho (2019, p. 84) dizem que esse fenômeno utiliza de institutos do direito constitucional e do Estado constitucional para violar e minar a democracia liberal por meio, especialmente, de emendas constitucionais e da substituição de constituições por novas leis fundamentais. O modelo deturpado de constitucionalismo auxilia na efetivação de novas modalidades de governos autoritários ou semiautoritários sem a necessidade de utilização de golpes de Estado para chegar ou manter-se no poder estatal. O partido majoritário, as coalizões de partidos e os Presidentes da República fortes podem utilizar de emendas constitucionais para manterem-se no Poder Executivo com, por exemplo, a aprovação de reeleição do Chefe do Executivo, além de alterarem mecanismos de controle sobre os demais Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos.

Oscar Vilhena Vieira (1997, p. 58-59) observa ainda que dessa perspectiva apenas aquelas expressões da vontade da maioria que violem os próprios fundamentos ou procedimento da democracia é que podem ser legitimamente bloqueadas. Qualquer tentativa de controlar decisões substantivas, que não estejam estritamente ligadas com a estrutura da democracia será considerada ingerência ilegítima no procedimento democrático. As constituições rígidas, principalmente aquelas que dispõem de um controle jurisdicional da constitucionalidade, e que, portanto, autorizam que autoridades não eleitas bloqueiem decisões tomadas pelos representantes dos cidadãos, constituem autênticos mecanismos anti-majoritários. Daí as tensões entre constitucionalismo, que privilegia a proteção de direitos, e democracia, que enfatiza a regra da maioria.

Uma das principais questões a se debater no desafio do constitucionalismo na pósmodernidade é a sua condição de instrumento formal e material da democracia e as implicações sobre a efetivação da cidadania em decorrência dos novos contornos democráticos. Os autores que discutem a transição para a pós-modernidade identificam uma crise na democracia liberal pela inoperabilidade de seus instrumentos de participação. O povo perde a sua identidade pela exacerbação do individualismo e o debate político perde o seu espaço para o pragmatismo da eficiência técnica. Esta crise afeta também a plenitude da cidadania, conforme foi edificada no Estado democrático e de direito. “A democracia passa, assim, a ser ameaçada em duas frentes principais: o individualismo extremo, que abandona a vida social aos aparelhos de gestão e aos mecanismos de mercado; e a desagregação das sociedades política e civil” (DUPAS, 2003, p. 11).

A questão principal em torno da cidadania é a perda da identidade coletiva, que hoje não se produz facilmente na sociedade, nem por uma ideologia, nem pelo dia a dia das pessoas, então a cidadania é reduzida à participação nas eleições. Os movimentos sociais, que sempre representaram um espaço de exercício da cidadania, se apresentam hoje reduzidos e fragilizados e a reivindicação por motivação coletiva se faz principalmente por massas despersonalizadas e mobilizadas ocasionalmente por interesses comuns específicos, depois elas se diluem na incapacidade de transformar a mobilização numa ação organizada e constante. Como afirma Dupas (2003, p. 75), “cidadania implica a existência de um espaço comum onde, as ações se orientam para a construção do bem público e conduzem a ampliação da consciência e às práticas do direito do cidadão”. Hoje os espaços coletivos são para decidir questões individuais. (ROCHA, 2009, p. 377-385).

Nesse contexto, a partir do uso de mecanismos, de instrumentos e de formas constitucionais para enfraquecer os controles e mecanismos de accountability, criam-se, ao mesmo tempo, novos modelos de autoritarismo no século XXI e formas de ataque à democracia constitucional. (BARBOSA e FILHO, 2019, p. 84). Assim, tais mudanças constitucionais permitem que atores autoritários removam membros da oposição política e os substituam por pessoas leais ao governo; enfraqueçam, desativem ou coloquem nos tribunais, assim como em outros órgãos de fiscalização, agentes leais aos titulares do poder; e estabeleçam controle governamental sobre a mídia e outras instituições importantes. (LANDAU, 2020, p. 21).

O controle promovido pela accountability vertical é democrático pela sua origem e pela sua função nos Estados de Direito contemporâneos, sendo a primeira e mais básica dimensão dessa forma de controle a existência de eleições periódicas, competitivas e pautadas no voto secreto. A accountability eleitoral sofre restrições ou é anulada nos governos autoritários. A existência de eleições é causa necessária, mas não suficiente para a configuração do Estado Democrático de Direito (O’DONNELL, 1998, p. 27-54).

São exatamente essas dimensões de controle nas democracias constitucionais brasileira e argentina atuais que merecem maior atenção e destaque, além de serem essenciais para lidar com questões relativas à efetividade dos direitos fundamentais, ao combate à corrupção nos moldes do Estado Constitucional e à atuação equilibrada e contida dos agentes, órgãos e Poderes instituídos. (BARBOZA e ROBL, 2018, p. 79-97).

O tema do controle dos agentes públicos, das autoridades, dos Poderes instituídos e das instituições autônomas (como Ministério Público e Defensoria Pública no Brasil) é questão central do constitucionalismo e da democracia. A accountability (controle e prestação de contas) dos agentes e órgãos estatais deve ser pensada especialmente em uma dupla dimensão: a) responsividade das autoridades em relação à sociedade civil e aos cidadãos, sendo modalidade classificada como accountability vertical e b) controle e interação dos órgãos instituídos e especialmente dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o qual é designado como accountability horizontal. (ROBL FILHO, 2012, p. 97-129 e SCHEDLER, 1999, p. 13-28).

Isso, porque os detentores do poder, quando obtém uma maioria mais vultosa, comumente de forma democrática, podem engenhar uma mudança constitucional, de modo a se tornarem muito mais estáveis. Para tanto, praticam ações, a fim de neutralizar instituições (como Tribunais, por exemplo) que teriam a função de verificar o exercício do poder, dificultam a ação da oposição existente e operam mudanças constitucionais diversas, mas com o mesmo e espúrio intuito. As constituições resultantes, como já foi citado, ainda parecem democráticas à distância e contêm muitos elementos que não são diferentes daqueles encontrados nas constituições democráticas liberais, mas, de perto, elas foram, substancialmente, retrabalhadas para deteriorar a ordem democrática. (MARTINS, 2019, p. 29-41).

Nesse ínterim, segundo Mark Tushnet:

“O constitucionalismo abusivo tem várias características. Primeiro, envolve o uso de métodos constitucionalmente permissíveis para modificar uma constituição. Em segundo lugar, envolve a adoção de numerosas alterações à constituição existente. Em terceiro lugar, tomado individualmente, as emendas podem não ser inconsistentes com o constitucionalismo normativo, mas, finalmente, considerando-se em conjunto, as emendas ameaçam o constitucionalismo normativo”. (apud MARTINS, 2019, p. 29-41).

Como podemos ver, a situação do constitucionalismo é cada vez mais problemática neste contexto, determinado pelas duas grandes crises experimentadas no século XXI. A Constituição deixa de cumprir suas funções e se desloca a um lugar marginal em relação aos conflitos sociais e aos processos políticos, definidos agora por outros traços, externos e internos, diferentes daqueles que haviam impulsionado as constituições normativas a uma posição central na sociedade. Ao mesmo tempo, sua legitimidade se degrada juntamente com as políticas públicas, os direitos fundamentais e os parâmetros de constitucionalidade. (CALLEJÓN, 2019, p. 681–702).

Nesse sentido de ocultação da realidade Monedero (2012, p. 81) diz que quando a “democracia liberal” tornou-se “liberalismo democrático”, quando o “governo do povo” foi substituído pela “política do governo”, começou a haver um mal-estar que tomou forma na sua linguagem política. Essas carências substantivas da democracia tentaram ser resolvidas com adjetivos. Então, começou-se a falar de “défice democrático” e acompanhar o termo “democracia” com qualificações como “de baixa intensidade”, “incompleta”, “incerta”, ou, na exacerbação do paradoxo, “autoritária”. Estamos diante de sociedades formalmente democráticas e socialmente fascistas. Com nome de democracia, porém com práticas totalitárias que são medidas em uma exclusão que pode alcançar mais de metade da população.

O principal problema, então, consiste na razoável facilidade de se construir um regime aparentemente democrático, mas que, na realidade, não o é totalmente, pelo menos em duas dimensões importantes: fiscalizações verticais e horizontais dos líderes eleitos e proteção de direitos para grupos fora do poder. (LANDAU, 2020, p. 25)

Nesse sentido, afirma Ramiro (2012, p.358) que para que o princípio democrático seja efetivo e real, não é necessário apenas que os cidadãos votem mais vezes, mas sim devem as instituições responsáveis por sua representação e manifestação de vontade fazê-las realmente e não pelo fato de somar votos que lhes permitam chegar ao poder. Em caso contrário, desvirtua-se o princípio democrático e deixa-o vazio de conteúdo.

Nesse âmbito, as “autocracias eleitorais” ou os “regimes híbridos”, que são aqueles países onde geralmente o constitucionalismo assume um feitio abusivo, costumam satisfazer a comunidade internacional, uma vez que são democráticos suficientes para não os apontar em seu radar. Isso porque eleições são realizadas e não são meras aparências, quer dizer, há competitividade eleitoral a ponto de o partido/candidato da oposição, ocasionalmente, até ganhar, bem como todos os direitos fundamentais são assegurados pela legislação. Ao mesmo tempo, contudo, há um enfraquecimento de várias instituições que deveriam estar fiscalizando os poderes estatais, tornando-as praticamente inexpressivas ou, então, suas fiéis correligionárias. O autor defende, logo, que esse fenômeno político se desenvolve em uma cultura política que admite sucessivas reformas em seu texto, bem como a promessa de efetivação dos direitos sociais e a suas elevações ao status de normas constitucionais, garantindo, desse modo, o apoio popular necessário para concretização das manobras necessárias para a manutenção de governos com feições claramente antidemocráticas. (KANEGAE, 2019, p. 274-275).

Outrossim, vale frisar: enfraquecimento ou a remoção dos oposicionistas é fundamental para a construção de regimes autoritários competitivos, pois confere aos seus titulares um poder muito maior para retrabalhar o Estado em proveito próprio. (LANDAU, 2020, p. 35).

Portanto, um olhar desatento ou distante não é capaz de identificar quaisquer irregularidades, pois aparentemente estão preenchidos os requisitos formais de um Estado de Direito, Social e Democrático. Não obstante, os detentores do poder se utilizam de inúmeros subterfúgios, jurídicos ou políticos, para minar pouco a pouco a democracia. Como profetizou Karl Loewenstein (1964, p. 219), a Constituição não retrata a realidade do país, mas funciona como um disfarce. Segundo ele, esse fenômeno é encontrado nas chamadas constituições semânticas, pois, no lugar de servir à limitação do poder, a Constituição é aqui o instrumento para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores fáticos na comunidade.

Isso tendo em vista que o constitucionalismo abusivo é muito mais difícil de detectar em comparação às ameaças autoritárias tradicionais, pois, no direito internacional golpes militares e violentos que redundam na derrocada da democracia já não são bem vistos internacionalmente já que as chamadas “cláusulas democráticas”, geralmente, punem regimes que chegam ao poder por meios inconstitucionais, estas existentes nos Tratados constitutivos da União Europeia e do Mercosul. São cláusulas que obrigam que os Estados adotem e respeitem princípios democráticos e de direitos humanos consagrados em vários tratados internacionais, sob pena de sofrerem restrições em relação aos direitos existentes e decorrentes dos tratados comunitários. Por exemplo, no ano de 1998, os Estados-membros do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, bem como Bolívia e Chile, celebraram o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso, que ficou conhecido como Protocolo de Ushuaia (Landau 2013, p. 193).

Dessa forma, essas cláusulas são eficazes na detecção de golpes militares tradicionais, abertamente inconstitucionais, mas muito menos efetivas na detecção do constitucionalismo abusivo, que utiliza meios constitucionais ou ambiguamente constitucionais para atingir esse objetivo. Esses regimes contemporâneos, de maneira geral, satisfazem os atores internacionais na medida em que são, suficientemente, democráticos para evitar sanções e outras consequências - as eleições são realizadas e elas não constituem completas fraudes. A experiência recente em Honduras, por exemplo, mostra como essas cláusulas não conseguem combater eficazmente o constitucionalismo abusivo (LANDAU, 2020, p. 19-20).

Em suma, como não há um momento único – nenhum golpe, declaração de lei marcial ou suspensão da Constituição – em que o regime obviamente “ultrapassa o limite” para a ditadura, nada é capaz de disparar os dispositivos de alarme da sociedade. Aqueles que denunciam os abusos do governo podem ser descartados como exagerados ou falsos alarmistas. A erosão da democracia é, para muitos, quase imperceptível (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018).

Conforme o exposto, o constitucionalismo abusivo é uma prática relativamente recente, entretanto com grande potencial lesivo, principalmente por sua principal característica que é a dificuldade de não só perceber quando ocorre, mas ainda mais, provar o que ocorreu. Fato este que, apesar dos empecilhos, não é impossível, como será mostrado no capítulo seguinte com casos reais e de diferentes épocas.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASSELO, Nathália Alves. A crise da democracia na pós-modernidade: declínio, distorção e o abuso constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7152, 30 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101409. Acesso em: 16 mai. 2024.

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Trabalho apresentado a Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, campus Taquaral, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas, à Banca Examinadora da Faculdade de Direito. Orientador: Prof.ª Ms. Vivian Galvão Milani.

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