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A crise da democracia na pós-modernidade: declínio, distorção e o abuso constitucional

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30/01/2023 às 15:40
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3.      A EROSÃO CONSTITUCIONAL NA VIDA REAL

No século XX, em vários países a democracia perdeu seu lugar perante a insurgência de regimes autoritários. “para a maior parte do mundo, a democracia tem sido um fenômeno infrequente ou recente”, o que tem acarretado a aplicação inadequada de seus fundamentos (IAZZETTA, 2013, p. 140).

Durante a Guerra Fria, golpes de Estado foram responsáveis por quase três em cada quatro colapsos democráticos. As democracias em países como Argentina, Gana, Grécia, Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Tailândia, Turquia e Uruguai morreram dessa maneira. Mais recentemente, golpes militares derrubaram o presidente egípcio Mohamed Morsi em 2013 e a primeira-ministra tailandesa Yingluck Shinawatra em 2014. Em todos esses casos, a democracia se desfez de maneira espetacular, através do poder e da coerção militares. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018).

As ditaduras latino-americanas, na segunda metade do século XX, mesmo com a adoção de mecanismos mais democráticos e de eleições competitivas e periódicas com as redemocratizações, influenciaram certamente o desenvolvimento do desenho de textos e discussões constitucionais nas décadas de oitenta e noventa do século passado, ou seja, as ditaduras produziram fortes impactos, infelizmente, no novo constitucionalismo regional (GARGARELLA, 2013, p. 148).

Entretanto, o declínio das autocracias a partir dos anos 80 coincidiu com o aumento dos países democráticos no mesmo período. Não obstante, assim como houve o crescimento da democracia, houve também o crescimento da ´´anocracia``. Dessa forma, faz-se importante trazer a definição desse termo, a palavra anocracia é um neologismo, oriundo do inglês anocracy. Consiste num regime de governo marcado por instabilidade política e ineficácia governamental, tendo em vista a existência de um regime democrático, com traços autocráticos. Comumente, uma anocracia é um tipo de regime em que o poder não está investido apenas em instituições públicas, mas se espalha entre grupos de elite que estão constantemente competindo entre si pelo poder. Anocracias são consideradas um regime intermediário entre a autocracia e a democracia. Por ser um regime intermediário, é natural que haja uma transição gradual à anocracia, partindo de uma democracia ou de uma autocracia, como afirma Marcelo Valença (2006, p. 570), segundo o qual é comum a mudança do regime do Estado de autocracias para democracias, de autocracias para anocracias (nível intermediário de liberdade política) ou de anocracias para democracias.

No mesmo sentido, Colomer, Banerjea e Mello (2016, p. 2) afirmam que a democratização tem sido associada a transições relativamente curtas de regimes autocráticos. No entanto, 40 das 89 democracias existentes atualmente não foram estabelecidas por meio de uma transição direta ou curta de um regime autocrático, mas por um processo de abertura de um regime intermediário ou “híbrido” de longa duração, ou seja, anocracia. Esse tipo de regime tipicamente envolve liberdade significativa, juntamente com direitos limitados ao sufrágio, restrições à competição eleitoral ou responsabilização restrita dos governantes eleitos. Uma anocracia não é uma breve situação de transição, mas um tipo de regime que tende a viver tanto quanto as democracias ou as ditaduras autocráticas.

Assim, nos últimos trinta anos, houve um considerável aumento do número de países identificados como democráticos. Isso se deu por vários fatores, dentre eles a transição política dos países comunistas do Leste europeu o fim de várias ditaduras latino-americanas, bem como a democratização de países africanos recém-independentes (MARTINS. 2019, p. 29-41).

Sobre estes casos, temos apontamentos específicos: Gustavo Müller (2011, p. 15), diz que o processo de democratização dos países do Leste europeu não é homogéneo. Segundo ele:

“Enquanto os países recém-incluídos na União Europeia apresentam um nível elevado de democratização do processo eleitoral, […] as ex-Repúblicas Soviéticas apresentam níveis críticos. Uma segunda observação relevante a ser feita, ainda em relação aos dois grupos de países acima citados, é que os novos membros da União Europeia demonstram uma tendência geral de consolidação da esfera eleitoral. Já no caso dos países ex-soviéticos, a tendência é de forte corrosão da arena eleitoral, o que significa um distanciamento da democracia e uma aproximação dos autoritarismos”.

Igualmente, afirma Jorge González Jácome (2015, p. 18. 12), que desde finais da década dos anos oitenta, diferentes países da América do Sul reformaram suas constituições no marco de transições de ditaduras militares a regimes modelados ao estilo das democracias liberais.

Continua Feferbaum (2012, p. 131), em obra específica sobre a proteção dos direitos humanos no sistema africano:

“A fragilidade do modelo estatal africano é um dos principais fatores que comprometem os direitos humanos na África. A forma da colonização africana, certamente, foi um dos responsáveis. E a emergência de governos autoritários não só impediu o desenvolvimento do continente, como também colocou a África em um círculo vicioso de estagnação, um moto-contínuo de violações dos direitos humanos. Dois processos, porém, têm tentado quebrar a inércia da África pós-colonial: o processo de democratização e o processo de integração econômica. Com o objetivo de fortalecer as instituições estatais, a implantação de democracias e de comunidades econômicas tem apresentado potencial para fomentar o desenvolvimento e os direitos humanos no continente”.

Dessa forma, com o fim da cortina de ferro, a queda do murro de Berlim, a independência dos estados africanos e a adoção de uma economia de mercado no mundo asiático, observa-se uma tendência clara da democracia de se transformar em regime político universal. (CAGGIANO, 2011, p. 5-19).

Explicitando em números, segundo o Polity Project (projeto que classifica o regime político de vários países cronologicamente[2]), em 1985 havia 42 países democráticos, nos quais habitavam 20% da população mundial. Por sua vez, em 2015, esse número passou para 103 países, onde habitavam 56% da população mundial. (NICOLAU, 2018, p. 7-11).

No gráfico abaixo elaborado pelo sobredito projeto, verifica-se o crescimento dos regimes autocráticos até a década de 1980, quando iniciou o seu declínio, estabilizando-se nos últimos 5 anos. O declínio das autocracias a partir dos anos 80 coincidiu com o aumento dos países democráticos no mesmo período[3]. Não obstante, assim como houve o crescimento da democracia, houve também o crescimento da anocracia. (MARTINS. 2019, p. 29-41).

Figura 2 – Global Trends in Governance, 1946-2016.

Fonte: Polity Project, 2017 – CSP.

O último grande movimento de crescimento dos regimes democráticos se deu com a Primavera Árabe, quando a partir de dezembro de 2010 houve uma onda revolucionária de manifestações e protestos no Oriente Médio e no Norte da África, destacando-se Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Argélia, Bahrein, Iraque, Jordânia e outros. O movimento começou na Tunísia, com a autoimolação de Mohamed Bouazizi, um jovem tunisiano, que ateou fogo ao próprio corpo como forma de protesto contra as condições de vida em seu país. Os protestos se espalharam por toda a Tunísia, fazendo com que o presidente Zine El Abidine Ben Ali, no poder desde 1987, fugisse para a Arábia Saudita dias depois. Em razão do sucesso dos protestos na Tunísia, o movimento se espalhou para Argélia, Jordânia, Egito e Iêmen15. 15 As manifestações deram ensejo à queda de três chefes de Estado: o Presidente da Tunísia, Zine El Abidine Bel Ali, o presidente do Egito, Hosni Mubarak, que renunciou em 11 de fevereiro de 2011, após vários dias de protesto, e na Líbia, com a morte em tiroteio do presidente Muammar al-Gaddafi. (MARTINS. 2019, p. 29-41).

Naquele momento seria difícil imaginar que, poucos anos depois, um dos temas centrais da reflexão política seria a “recessão democrática” – expressão cunhada pelo cientista político norte-americano Larry Diamond para descrever o fim do processo contínuo de ampliação de democracias no mundo. O fracasso da democratização nos países que promoveram a Primavera Árabe (apenas a Tunísia conseguiu fazer uma passagem bem-sucedida) e a reversão de experiências similares incipientes na África, no Leste Europeu e na Ásia ensejaram um novo ciclo de análises, em geral pessimistas, sobre os Estados democráticos. Inicialmente, a ideia de recessão democrática estava associada às dificuldades de surgimento de novos governos desse tipo desde meados da década de 2000. Nos últimos anos, porém, a preocupação dos estudiosos passou a ser a crise das democracias consolidadas. A pergunta agora é: democracias tradicionais entram em colapso? Há uma diferença fundamental entre saber por que ela não se consolidou no Egito e em que medida poderia entrar em colapso na Itália. Mas, de uma forma ou de outra, o termo recessão democrática passou a designar os dois processos. (NICOLAU, 2018, p. 7-11).

Tal recuo encontra justificativa nas ideias de muitos pensadores e estudiosos que defendem a existência, na política, de movimentos cíclicos de tipo pendular. Dentre eles, podemos destacar os historiadores norte-americanos Arthur Meier Schlesinger e seu filho Arthur Meier Schlesinger Jr., esse último autor do livro “The Cycles of American History”, 1999, obra na qual ele especula que fases extremamente liberais envolvem grandes esforços de reforma, que podem ser exaustivas, ensejando um retrocesso conservador. Por sua vez, fases mais conservadoras acumulariam problemas sociais não resolvidos, ensejando um movimento liberal superveniente. Sugere igualmente que esse ciclo se dá em aproximadamente 30 anos, aproximadamente a duração de uma geração humana. Na América Latina, por exemplo, governos que promoveram políticas sociais destinadas aos mais pobres caracterizaram-se por um discurso paternalista e pelo uso opaco de recursos públicos, que levaram ao enfraquecimento das instituições e dos partidos políticos. Ocorre que, diferentemente do que acontecia em outros momentos históricos, quando se dava um colapso do regime democrático, dá-se atualmente um movimento de lenta erosão, corrosão do modelo democrático, minando- o internamente, implodindo-o, através de instrumentos dotados de aparente legalidade. (MARTINS. 2019, p. 29-41).

Exemplos recentes de utilização do constitucionalismo abusivo podem ser frequentemente encontrados na América Latina, mas também em outras regiões. Na Colômbia, houve reformas constitucionais que possibilitaram a reeleição de Álvaro Uribe. Na Bolívia, o Tribunal Constitucional boliviano, aceitou pedido do Movimento para o Socialismo, partido do Presidente Evo Morales, para suspender artigos da Constituição que vedavam reeleições consecutivas. Na Turquia, houve uma reforma constitucional que favoreceu a estabilidade do Presidente Recep Tayyip Erdogan, com as mudanças operadas na Constituição, o Presidente ganha o direito de nomear e demitir ministros, indicar quatro dos treze juízes do Supremo Tribunal, bem como o poder de dissolver o parlamento. Na Hungria, sua nova Constituição, desenhada pelo primeiro-ministro conservador Viktor Orban, criticada internacionalmente, previa, dentre outros retrocessos, a aposentadoria de jornalistas que se mostrarem críticos ao governo. (MARTINS. 2019, p. 29-41).

Ainda que na Venezuela, a situação iniciou-se muito anteriormente, e de forma mais despercebida, pois quando Hugo Chávez lançou a sua prometida revolução, ele o fez democraticamente. Em 1999, realizou eleições para uma nova Assembleia Constituinte, na qual seus aliados conquistaram uma maioria esmagadora. Isso permitiu que os chavistas escrevessem sozinhos uma nova Constituição. Foi uma Constituição democrática, contudo, e, para fortalecer sua legitimidade, novas eleições presidenciais e legislativas foram realizadas no ano 2000. Chávez e seus aliados também as ganharam. O populismo de Chávez desencadeou uma intensa oposição, e, em abril de 2003, ele foi brevemente derrubado pelos militares. Mas o golpe falhou, permitindo que reivindicasse para si uma legitimidade ainda maior. Foi somente em 2003 que Chávez deu seus primeiros passos claros rumo ao autoritarismo. Com o apoio público enfraquecendo, ele postergou um referendo liderado pela oposição que o teria destituído – adiando-o para o ano seguinte, quando os preços do petróleo, em forte alta, impulsionaram sua posição o bastante para que ele ganhasse. Em 2004, o governo fez uma lista negra dos que tinham assinado a petição para o referendo e aparelhou a Suprema Corte, alterando sua composição, mas a reeleição esmagadora de Chávez em 2006 permitiu que ele mantivesse um verniz democrático. O regime chavista se tornou mais repressivo depois de 2006, fechando uma importante emissora de televisão, prendendo ou exilando políticos, juízes e figuras da mídia oposicionistas com acusações dúbias e eliminando limites aos mandatos presidenciais para que Chávez pudesse permanecer indefinidamente no poder. Quando Chávez, então morrendo de câncer, foi reeleito em 2012, a disputa foi livre, mas não justa: o chavismo controlava grande parte da mídia e desdobrou a vasta máquina do governo em seu favor. Após a morte de Chávez um ano depois, seu sucessor, Nicolás Maduro, ganhou outra eleição questionável, e, em 2014, seu governo prendeu um dos principais líderes da oposição. Ainda assim, a vitória acachapante da oposição nas eleições legislativas de 2015 pareceu desmentir a afirmação dos críticos de que a Venezuela não era mais democrática. Só quando uma Assembleia Constituinte unipartidária usurpou o poder do Congresso em 2017, quase duas décadas depois de Chávez ter sido eleito presidente pela primeira vez, a Venezuela foi amplamente reconhecida como uma autocracia. (JONES, 2007, p. 225).

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Acerca do tema dizem Huq e Ginsburg, 2017:

“O retrocesso democrático hoje começa nas urnas. A via eleitoral para o colapso é perigosamente enganosa. Com um golpe de Estado clássico, como no Chile de Pinochet, a morte da democracia é imediata e evidente para todos. O palácio presidencial arde em chamas. O presidente é morto, aprisionado ou exilado. A Constituição é suspensa ou abandonada. Na via eleitoral, nenhuma dessas coisas acontece. Não há tanques nas ruas. Constituições e outras instituições nominalmente democráticas restam vigentes. As pessoas ainda votam. Autocratas eleitos mantêm um verniz de democracia enquanto corroem a sua essência. Muitos esforços do governo para subverter a democracia são “legais”, no sentido de que são aprovados pelo Legislativo ou aceitos pelos tribunais. Eles podem até mesmo ser retratados como esforços para aperfeiçoar a democracia – tornar o Judiciário mais eficiente, combater a corrupção ou limpar o processo eleitoral. Os jornais continuam a ser publicados, mas são comprados ou intimidados e levados a se autocensurar. Os cidadãos continuam a criticar o governo, mas muitas vezes se veem envolvidos em problemas com impostos ou outras questões legais. Isso cria perplexidade e confusão nas pessoas. Elas não compreendem imediatamente o que está acontecendo. Muitos continuam a acreditar que estão vivendo sob uma democracia”.

Entretanto, engana-se quem pensa que tais fatos não ocorrem nas chamadas democracias tradicionais, o Estados Unidos cedeu em novembro de 2016, ao eleger um presidente cuja sujeição às normas democráticas é dúbia. A surpreendente vitória de Donald Trump foi viabilizada não apenas pela insatisfação das pessoas, mas também pelo fracasso do Partido Republicano em impedir que um demagogo extremista em suas próprias fileiras conquistasse a indicação. Muitos analistas se fiam na Constituição americana, que foi projetada justamente para frustrar e conter autoristaristas como Donald Trump. O sistema madisoniano de freios e contrapesos do país já durou mais de dois séculos. Sobreviveu à Guerra Civil, à Grande Depressão, à Guerra Fria e a Watergate. Então, com certeza será capaz de sobreviver a Trump. Hoje, contudo, as grades de proteção da democracia nos Estados Unidos estão se enfraquecendo. A erosão das normas democráticas começou nos anos 1980 e 1990 e se acelerou nos anos 2000. Na época em que Barack Obama foi eleito presidente, muitos republicanos questionaram a legitimidade de seus rivais do Partido Democrata e abandonaram a contenção em nome de uma estratégia de ganhar por quaisquer meios necessários. Donald Trump pode ter acelerado esse processo, mas não o causou. Os desafios que confrontam a democracia norte-americana são de um nível mais profundo. O enfraquecimento das normas democráticas está enraizado na polarização sectária extrema – uma polarização que se estende além das diferenças políticas e adentra conflitos culturais. E, se uma coisa é clara ao estudarmos colapsos ao longo da história, é que a polarização extrema é capaz de matar democracias. (ZIBLATT, 2017).

Assim, foi diagnosticado o fenômeno da dependência institucional com o passado ditatorial, o qual manteve, ainda que com a maior democratização e a adoção de eleições periódicas, o hiperpresidencialismo, sendo reconhecido como uma das causas da ascensão do autoritarismo recente. Em verdade, as doutrinas de Carlos Santigo Nino e Juan José Linz já sustentavam, na década de noventa do século passado, a necessidade de repensar os limites do Poder Executivo para a garantia adequada de direitos e para a estabilidade democrática com a nova estruturação dos Poderes constitucionalmente instituídos. O hiperpresidencialismo concede aos grupos corporativos e de interesses um campo propício para avançar na conquista de privilégios”, já que seria “mais fácil pressionar um órgão unipessoal de funcionamento não deliberativo, e obter benefício de alguns de seus funcionários subalternos que avançar sobre um corpo colegiado e deliberativo como o Congresso ou descentralizado como o Poder Judiciário (NINO, 1990, p. 43).

Deve-se atentar que, em tempos de prosperidade, “praticamente qualquer organização da democracia funciona” (NINO, 1990, p. 39), mas quando ocorre uma crise econômica que implica numa crise social, é necessário determinar qual seria o melhor sistema de governo para resistir a tais pressões com o menor custo político e mantendo a estabilidade política mesmo em momentos de crise. Gargarella (2013, p. 150), no mesmo sentido, entende que, como consequência do hiperpresidencialismo, qualquer mudança abrupta das atitudes do povo em relação ao presidente, bem como qualquer queda repentina em sua popularidade, permite a instauração de uma crise que pode colocar todo o sistema político sob tensão. Os sistemas institucionais são parcialmente responsáveis pela produção das crises, porque “não estão bem preparados para processar e canalizar a crise de forma não dramática e institucional” (GARGARELLA, p. 153). Assim, embora não tenham ocorridos golpes formais de Estado perante crises econômico-financeiras, é possível a constatação de diversas crises institucionais gerando processos de impeachments:

“A combinação da crise económica com estes processos de protesto popular gerou graves consequências que incluíram a queda do Presidente Color de Mello no Brasil em 1992 e Carlos Andrés Pérez na Venezuela em 1993 (ambos perderam as suas posições através de processos de impeachment), a remoção de Abdala Bucaram no Equador em 1997 (que perdeu a sua posição depois de ter sido, surpreendentemente, declarado mentalmente incapaz de liderar o país), a demissão de Raúl Cubas no Paraguai em 1999 (que se demitiu após um processo de impeachment ter sido iniciado), e a demissão de Alberto Fujimori no Peru (Fujimori decidiu fugir do país no ano 2000, quando estava prestes a entrar num processo de impeachment, embora depois tenha sofrido uma detenção no seu país). Ernesto Samper na Colômbia em 1996 e Luis González Macchi no Equador em 2001 foram também sujeitos a processos de impeachment, embora tenham sido finalmente absolvidos. Outras situações dramáticas, incluindo as de Lucio Gutiérrez no Equador (Gutiérrez deixou a presidência do país em 2005), Fernando de la Rúa na Argentina (os seus sucessores imediatos foram obrigados a demitir-se, um após o outro, em consequência da profunda crise social de 2001), Gonzáles Sánchez de Losanda e Carlos Mesa na Bolívia em 2003 e 2005, respectivamente (ambos foram obrigados a demitir-se após longos períodos de protesto social). Por outras palavras, a região foi radicalmente afetada por uma crise social que atingiu o topo do sistema institucional”.[4] (KANAYAMA; TOMIO; ROBL FILHO, 2017).

A figura abaixo, mostra a porcentagem de “tomadas de controle” pelo Executivo — as chamadas subversões da democracia comandadas pelo Executivo — no intervalo de cinco anos, em relação ao total de rupturas democráticas no período de 1973 a 2018. O autor, Svolik (2019) informou que para construir esse gráfico, primeiro identificou todos os casos nos quais a Freedom House rebaixou a nota de um país anteriormente livre ou parcialmente livre em seu levantamento anual sobre o estado da democracia no mundo e, então, classificando esses rebaixamentos de acordo com a natureza dos eventos por eles representados.

Figura 3 - Tomadas de Controle pelo Executivo enquanto porcentagem de todas as rupturas democráticas 1973-2018.

Fonte: elaboração por Svolik por dados de Freedom House: “Freedom in the World, 1973-2019”.

Do total de 197 rebaixamentos, tomadas de controle (das instituições do Estado e da sociedade) pelo Executivo representam 88 casos — a maioria. Algumas das mais proeminentes tomadas de controle recentes incluem as subversões da democracia por Hugo Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro na Venezuela, por Vladimir Putin na Rússia e por Recep Tayyip Erdoğan na Turquia. A segunda categoria de ruptura democrática, o golpe militar, representa 46 dos casos. Os demais rebaixamentos correspondem ou a casos de enfraquecimento do liberalismo em regimes onde o Executivo não havia sido eleito (15 casos) ou ao fenômeno mais bem caracterizado não como ruptura democrática, mas como deterioração da autoridade do Estado devido à instabilidade política (21 casos) ou à escalada de conflitos civis (14 casos). (SVOLIK 2019).

O autor ainda explica que as tomadas de controle pelo Executivo constituem a forma mais comum de ruptura democrática nos últimos 45 anos. Além disso, como a Figura deixa claro, o mais impressionante é sua proliferação após o fim da Guerra Fria. Antes dos anos 1990, tomadas de controle pelo Executivo foram apenas ligeiramente mais frequentes que os golpes militares. Após os anos 1990, no entanto, a frequência relativa de tomadas de controle pelo Executivo disparou, passando a representar quatro de cada cinco casos de ruptura democrática a partir dos anos 2000. Precisamente por serem conduzidas internamente, as tomadas de controle pelo Executivo costumam acontecer de maneira gradual, normalmente ao longo de diversos ciclos eleitorais, e seguindo um processo constitucionalmente legítimo. As mudanças resultantes — especialmente quando consideradas isoladamente — raramente constituem uma violação explícita de princípios democráticos fundamentais. É essa natureza gradual e legalista das tomadas de controle pelo Executivo que explica a mudança no léxico dos estudos contemporâneos da democracia de termos como ruptura democrática, revés autoritário ou autogolpe para retrocesso, erosão e degradação da democracia.

Surpreendentemente, muitos governantes detêm apoio popular significativo quando começam a subverter a democracia em seus países — e até mesmo após concluir o processo. Chávez (Venezuela), Viktor Orban (Hungria) e Erdoğan (Turquia), por exemplo, contavam com esse apoio. Foram populares tanto em termos relativos como absolutos, geralmente superando seus principais adversários por margens de dois dígitos em eleições e em pesquisas de opinião pública. Parece ser esse o caso mesmo descontando-se o possível inflacionamento desses números por meio do mau uso dos recursos públicos, intimidação dos adversários e outras formas de manipulação. As análises mais rigorosas desse fenômeno vêm da Rússia: usando experimentos de lista, Timothy Frye e colegas constataram que o apoio a Vladimir Putin no início de 2015 estava em torno de 80% — isso após descontar os cerca de 10 pontos percentuais que Putin recebe em pesquisas tradicionais devido à relutância de alguns respondentes de declarar abertamente sua desaprovação (FRYE, 2017, e TREISMAN, 2011).

Quando a Freedom House rebaixou a Hungria para parcialmente livre em 2019, Orban já havia governado por dois mandatos; Erdoğan havia ocupado o cargo de primeiro-ministro e depois de presidente por mais de uma década antes que a Freedom House classificasse a Turquia como não livre em 2018. Tanto na Hungria como na Turquia, esse período foi marcado por uma crítica aberta às tendências iliberais de seus líderes pela oposição e pela imprensa. Colocado de outra forma, os eleitores em ambos os países tiveram ampla oportunidade de observar as ambições autoritárias desses líderes e de tirá-los do poder por meio do voto antes que fosse tarde demais, entretanto não aproveitaram a oportunidade. (SVOLIK 2019).

Uma provável razão são as clivagens sociais profundas e tensões políticas agudas — leia-se polarização — minam a capacidade das pessoas de refrear as tendências iliberais de políticos eleitos. Em eleitorados fortemente polarizados, até mesmo os eleitores que valorizam a democracia estarão dispostos a sacrificar a competição democrática justa em nome de políticos eleitos que defendam seus interesses. Quando punir as tendências autoritárias de um líder exige votar em uma plataforma, partido ou pessoa que seus apoiadores detestam, muitos acharão que o preço é alto demais. A polarização, portanto, oferece uma oportunidade estrutural a potenciais autocratas: podem enfraquecer a democracia e, ainda assim, ficar impunes (SOMER e MCCOY, 2018, pp. 3-15).

Veja o Estados Unidos — um país que é visto, ao menos desde a Democracia na América (1835) de Alexis de Tocqueville, como um modelo de cultura cívica democrática —, eleitores com fortes preferências partidárias puniram candidatos não democráticos a uma taxa menor do que aqueles com lealdades políticas mais moderadas. Ademais, apoiadores de ambos os principais partidos adotaram dois pesos e duas medidas: foram mais lenientes em relação a um candidato não democrático quando este pertencia a seu partido de preferência. Deparados com uma escolha que confronta princípios democráticos com interesses partidários, os eleitores parecem estar dispostos a trocar o primeiro pelo último. Uma proporção significativa de americanos colocou o partido em primeiro lugar e a democracia em segundo. (SVOLIK 2019).

Ao tentar entender o fenômeno, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, uma série de pesquisas acadêmicas perguntou à população das três maiores cidades do Chile se um governo militar era apropriado para seu país.[5] A vasta maioria dos respondentes, aproximadamente 70% ao longo desse período, respondeu “não”. De acordo com as mesmas pesquisas, quase todos os chilenos acreditavam que seu país era democrático e a maioria escolheu “liberdade e democracia” entre várias opções quando perguntados sobre o que mais os fazia “sentir orgulho do Chile”. Essas respostas são consistentes com o status do Chile à época como uma das democracias mais maduras e estáveis da América Latina. A última pesquisa a fazer esse tipo de pergunta foi realizada em Santiago em fevereiro de 1973. Mesmo então — entre as greves, protestos e hiperinflação que marcaram o mandato do presidente Salvador Allende —, 73% dos respondentes se opunham a um governo militar. Diferenças ao longo do espectro ideológico do Chile eram modestas: 80%, 71% e 62% daqueles à esquerda, centro e direita, respectivamente, e 77% e 73% daqueles que apoiavam os socialistas e os democratas-cristãos (os dois maiores partidos), respectivamente, opunham-se a um governo militar. Sete meses depois, em setembro de 1973, um golpe militar levou ao poder uma das ditaduras mais repressivas do século 20. Chilenos comuns não participaram diretamente da decisão pelo golpe militar de 1973 e, caso tentassem resistir a ela, certamente acabariam mortos, torturados ou presos. Outra coisa é a capacidade de pessoas comuns de influenciar o curso do retrocesso democrático. Diferentemente de golpes militares, aqueles que se opõem a uma tomada de controle pelo Executivo não precisam participar de manifestações, desobediência civil ou luta armada. Em uma democracia, pessoas comuns podem parar políticos com ambições autoritárias idealmente através do voto.

Importante frisar que Chávez, Putin e Erdoğan erodiram a democracia em seus países com o consentimento tácito e às vezes explícito de uma parte significativa — muitas vezes a maioria — de seus eleitorados. Que fique claro: isso não inocenta os autocratas. Apenas em raros casos pessoas comuns demandaram de fato a instalação de uma ditadura e, mesmo nesses casos, apenas uma pequena fração da sociedade. Mas, como o retrocesso democrático é um processo que começa a partir de uma democracia, pessoas comuns desempenham um papel central nisso. São partícipes indispensáveis, ainda que hesitantes. Potenciais autocratas conseguem subverter a democracia somente quando recebem essa oportunidade de um público sectarista. (BERMEO 2003).

Dessa forma, no século XXI, em linhas gerais, o que se evidencia é que a democracia, especialmente na América Latina, necessita ser (re)democratizada, pois ainda se encontra permeada de elementos autoritários e colonizadores, e, para tanto, faz-se essencial (re)pensar seu conceito, seus atores (pois está-se diante de “uma ideia de democracia carente de seu componente popular: uma democracia sem o povo” (MAIR, 2007, p. 23).

Portanto, diferentemente do que acontecia em outros momentos históricos quando se dava um colapso do regime democrático, dá-se, atualmente, um movimento de lenta erosão, corrosão do modelo democrático, minando-o internamente, implodindo-o, através de instrumentos dotados de aparente legalidade. Assim, as democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Alguns desses líderes desmantelam a democracia rapidamente, como fez Hitler na sequência do incêndio do Reichstag, em 1933, na Alemanha, outros caem aos poucos, em etapas que mal chegam a ser visíveis.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASSELO, Nathália Alves. A crise da democracia na pós-modernidade: declínio, distorção e o abuso constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7152, 30 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101409. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado a Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, campus Taquaral, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas, à Banca Examinadora da Faculdade de Direito. Orientador: Prof.ª Ms. Vivian Galvão Milani.

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