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O controle de constitucionalidade nas Constituições de 1891, 1934 e 1946:

breve anotação acerca da evolução do processo constitucional brasileiro

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4. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1891

4.1. Critérios que a encartam como democrática

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, coroava juridicamente a implosão da forma monárquica de governo e a instauração da forma republicana. O golpe que destronou a monarquia não foi legitimado por uma intensa participação da sociedade civil, posto que urdido nos quartéis militares, conquanto crescente fosse a insatisfação de alguns setores com o governo monárquico, sobretudo o rural, uma vez que a plena e irrestrita libertação dos escravos - pondo cobro a odiosa situação de milhões de negros no Brasil - lhes trouxe substanciais prejuízos, sem que o governo procurasse minorar os problemas econômicos de modo imediato, só interferindo serodiamente e sem alcançar os resultados perseguidos.

Quedada a monarquia em 15 de novembro de 1889, o cetro do poder deveria pertencer ao povo que o delegaria aos seus legítimos e eleitos representantes, como sói acontecer nas repúblicas democráticas. Convocou-se um Congresso Constituinte para ofertar ao País uma nova Constituição que consagrasse os valores informadores do levante que expungiu a monarquia do Brasil: o republicanismo e o federalismo. Estes dois valores foram positivados na Constituição de 1891, tornados que foram os princípios supremos do sistema.

A Constituição de 1891 pode ser encartada como democrática pelas seguintes razões: 1ª) originou-se de uma Assembléia Constituinte eleita para o fim de promulgá-la, não obstante houvesse um projeto ofertado pelo Governo Provisório; 2ª) o sistema eleitoral usado para a escolha dos constituintes não agasalhou o modelo censitário da monarquia, de modo que maior foi o número de homens na categoria de cidadãos; 3ª) salvo os cânones republicano e federalista, os constituintes tinham liberdade para dar a forma e o conteúdo que quisessem para a Constituição; 4ª) o texto adotou os cânones da tripartição dos poderes, da supremacia e rigidez da Constituição; 5ª) influenciados pelo modelo americano de separação dos poderes, os constituintes dotaram o Poder Judiciário da faculdade de fiscalizar a legitimidade constitucional dos atos do Executivo e do Legislativo, ficando reservada ao órgão de cúpula do Judiciário a competência para proferir a última "palavra" nas controvérsias constitucionais.

4.2. O modelo de controle de constitucionalidade

O regime constitucional do Império (1824 a 1889) não conheceu do mecanismo de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, visto que, naquele regime, ao poder judiciário competia aplicar a lei nas demandas suscitadas, sem sindicar-lhes a legitimidade constitucional. Seguindo o modelo francês de separação dos poderes, a Carta Imperial reservou ao Poder Legislativo (designado como Assembléia Geral) a competência para interpretar as leis e velar pela guarda da própria Constituição. (33) Outrossim, a Carta Imperial agasalhou o modelo de separação de poderes defendido pelo jurista franco Benjamim Constant (34), que em vez de tripartição dos poderes, propôs uma quatripartição, com a introdução do poder moderador ou neutro. Esta quatripartição foi adotada pela Carta de 1824. (35) Com o poder moderador, o equilíbrio dos poderes ficava nas mãos do Imperador, uma vez que detinha os poderes executivo e o moderador. Ou seja, qualquer controvérsia entre os poderes deveria ser dirimida pelo Imperador, no uso das atribuições constitucionais cabidas ao poder moderador. (36) Não havia espaço para um controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e dos atos executivos no regime constitucional do Império. (37)

Se no regime imperial não cabia - como não coube - um sistema jurisdicional de constitucionalidade, no novel regime implantado - o republicano - foi incorporada mais uma contribuição norte-americana, além do federalismo, ao sistema jurídico-político brasileiro: o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis (judicial review). Na república norte-americana, a fiscalização da legitimidade constitucional das leis surgiu do processo de "construção" jurisprudencial da Suprema Corte dessa República. Foi o labor interpretativo dos juízes (justices) norte-americanos que fixou a competência do Poder Judiciário para declarar de inconstitucional ou não uma lei. O caso célebre foi a demanda "Marbuy vs. Madison" (1803), no qual se firmou a competência do judiciário para defender a Constituição de normas inconstitucionais. (38)

No Brasil republicano dispôs a Constituição de 1891:

"Art. 59. Ao Supremo Tribunal Federal compete:

(...)

‘2. Julgar, em grau de recurso, as questões resolvidas pelos juízes e Tribunais Federais, assim como as de que tratam o presente artigo, § 1º, e o art. 60.

(...)

‘§ 1º Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal:

‘a) quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contra ela;

‘b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.

(...)

‘Art. 60. Compete aos juízes e Tribunais Federais processar e julgar:

‘a) as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal;

‘b) todas as causas propostas contra o Governo da União ou Fazenda Nacional, fundadas em disposições da Constituição, leis e regulamentos do Poder Executivo, ou em contratos celebrados com o mesmo Governo;

‘Art. 72, § 22. Dar-se-á habeas-corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder."

No sentido de fortalecer a competência do poder judiciário em conhecer da legitimidade constitucional das leis, tinha-se a Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, versando acerca da organização da justiça federal da República, que dispunha em seu art. 13, § 10, o seguinte: "Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição".

Registre-se a opinião autorizada de Ruy Barbosa acerca desses dispositivos constitucionais (mormente o art. 59, § 1, a):

"Esta disposição constitucional é o abrigo da Constituição, das leis federaes e dos tratados interncionaes, celebrados pelo Brasil, contra as leis dos Estados, os actos dos seus Governos e as sentenças dos seus tribunaes.

‘É a declaração da supremacia da Constituição Federal a respeito de todos os actos estadoaes (legislativos, administrativos, ou judiciarios), e da superioridade geral das leis e tratados da União ás leis, actos executivos e sentenças dos tribunaes dos Estados.

‘Quer o tribunal de um Estado sentenceie contra a validade ou applicação de tratados ou leis federaes; quer julgue válidas as leis (no que se incluem as constituições), ou os actos dos Governos de Estados, quando arguidos, em juizo, de contrarios á Constituição da Republica, ou ás suas leis, - intervem, mediante recurso de julgados estadoaes em ultimo gráu, a suprema justiça da União, para manter a legalidade nacional, na sua lei suprema, nas suas leis ordinarias, ou nas suas convenções internacionaes contra os erros ou abusos dos Estados, na sua legislatura, na sua administração e na sua justiça.

‘Dest’arte o Supremo Tribunal Federal encarna em si, nessa funcção incomparavel, a Constituição da Republica, exercendo juridicamente a força de manutenção do equilibrio entre a soberania da Nação e a autonomia dos Estados.

(...)

‘A redacção é clarissima. Nella se reconhece, não só a competência das justiças da União, como a das justiças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição. Sómente se estabelece, a favor das leis federaes, a garantia de que, sendo contraria á subsistencia dellas a decisão do tribunal do Estado, o feito póde passar por via de recurso, para o Supremo Tribunal Federal. Este ou revogará a sentença, por não se procederem as razões de nullidade, ou a confirmará pelo motivo opposto. Mas, numa ou noutra hypothese, o principio fundamental é a autoridade, reconhecida expressamente no texto constitucional, a todos os tribunaes, federaes, ou locaes, de discutir a constitucionalidade das leis da União, e applical-as, ou desapplical-as, segundo esse criterio." (sic).

(39)

Estava, assim, timbrada a competência do Poder Judiciário para dispor acerca da legitimidade constitucional das leis, desde que fundadas em uma demanda concreta. Ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, cabia a última decisão acerca das controvérsias constitucionais, que poderiam ser suscitadas originariamente ou em grau de recurso, segundo as partes envolvidas na demanda.

4.3. Os "casos principais" (leading cases)

Neste tópico, tratar-se-ão, sucintamente, de algumas questões que foram levadas ao conhecimento do Poder Judiciário. Segundo a boa cepa da doutrina brasileira, seriam nossos casos principais e paradigmáticos (leading cases), vez que trouxeram ao debate judicial problemas até então insindicáveis pelos juízes, em vista do "antigo" regime quedado. São os seguintes: 1º) o Habeas Corpus nº 300, de abril de 1892, impetrado em favor de cidadãos que tiveram tolhidas as suas liberdades de locomoção (enquadrados na categoria de presos políticos), por força do estado de sítio decretado pelo Vice-Presidente Floriano Peixoto; e 2º) o Habeas Corpus nº 1073, de abril de 1898, por motivos similares ao HC nº 300, sendo importante em virtude da modificação de jurisprudência do Supremo Tribunal acerca da matéria.

Com a república, os juízes que serviram no regime imperial se defrontaram com uma nova e para muitos desconhecida realidade: a possibilidade de declarar nulos os atos do Legislativo e do Executivo. O órgão de cúpula do novo Poder Judiciário era - e ainda é - o Supremo Tribunal Federal (STF), em cuja primeira composição estavam presentes magistrados que compuseram o Supremo Tribunal de Justiça, que durante o império era o órgão de cúpula do judiciário reinol, mas sem a competência e elastério de seu sucessor. Mudou-se um sistema constitucional, e permaneceram velhas mentalidades. Significativa e precisa é a lição de Aliomar Baleeiro, em opúsculo publicado em 1968:

"A primeira década republicana foi o período tormentoso e difícil de tomada de consciência da missão constitucional pelo próprio Supremo.

‘Visto ao longo de 76 anos de distância pela geração de hoje, o problema poderá parecer de somenos e causar espanto. Mas há a considerar que os juristas da época se formaram sob outras instituições, em contraste com as quais era novidade um Tribunal competente para recusar execução a uma lei, porque em contradição com os mandamentos constitucionais. Leve-se em conta a predominância dos velhos juízes da mais alta Côrte do Império, o caráter áulico desta, que ainda conservava os estilos coloniais, a ponto de os recursos terem tido como vocativos ‘Senhor’ ou ‘Majestade’, no pressuposto de que cada Tribunal fazia justiça em nome d’el-rei. O Govêrno Provisório expediu o decreto nº 25, de 30-11-89, duas semanas após a proclamação da República, para abolir os tratamentos de ‘Majestade’ e ‘Senhor’, impostos pelo Alvará Régio de 20 de maio de 1769, e proibir a menção de títulos, honrarias e condecorações dos juízes e serventuários nos atos do ofício, como incompatíveis com a modéstia republicana.

‘Medite-se, mais uma vez, que os ‘bacharéis formados’, sequando a tradição coimbrà, transplantada para a Faculdade de Olinda, depois Recife, e de São Paulo, eram fortes na legislação portuguêsa ainda vigente no Brasil até 1917 e faziam algumas incursões na literatura jurídica francesa, um pouco de alemã em Pernambuco, mas não tinham familiaridade com a americana, conhecida apenas de Rui, Amaro Cavalcânti e poucos iniciados.

‘É certo que vários estadistas do Império imitavam estilos constitucionais e parlamentares britânicos, lendo discursos e obras de homens d’Estado do Reino Unido. Mas isso nada tinha de comum com as peculiaridades da Côrte Suprema dos Estados Unidos, cuja divulgação no Brasil parece ter tido como veículo a tradução da obra de Cooley.

‘Daí a vacilação dos primeiros juízes do Supremo quando, após o golpe d’Estado de Deodoro e a semiditadura de Floriano, em à guerra civil e à reação sangrenta do Govêrno, foram chamados ao papel fundamental de guardas juramentados dos direitos e garantias individuais dos cidadãos.

‘Menos do que a idade, o traumatismo político deve ter sido a causa das sucessivas aposentadorias, que renovaram rapidamente a composição humana do primeiro Supremo Tribunal Federal. Os anciãos respeitáveis não resistiram à prova de fogo a que foram submetidos e para a qual não estavam mentalmente aptos.

(...)

‘Vacilou. Errou. Tergiversou. Mas, dentro de pouco tempo, o Supremo Tribunal imbuiu-se de sua missão e aos poucos, tenazmente, constituiu-se realmente o guardião do templo das liberdades ameaçadas".

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(40)

Para endossar a tese de que boa parte dos magistrados (mormente os do STF) e dos juristas brasileiros (ou mesmo da sociedade civil) não estava preparada para os novos desafios que se avizinhavam para a Justiça; e devido ao superior magistério do infatigável Rui Barbosa, aos poucos foi se sedimentando, no espaço jurídico-político brasileiro, a relevância do novo papel do Poder Judiciário nos destinos nacionais, Aliomar Baleeiro transcreve o seguinte depoimento de Castro Nunes:

"Nos primeiros tempos da República, o Tribunal não tinha consciência de seu papel no regime. Este representava, para muitos dos juízes que o compunham e que traziam do Império uma bagagem intelectual copiosa e até brilhante, mas inadequada à compreensão das novas instituições, um sistema pouco conhecido e que teria de receber na órbita judiciária uma aplicação perturbada pelos preconceitos da educação judiciária haurida nas fontes romanas, reinícolas, nas tradições do antigo regime e nos expositores do direito público francês.

‘Coube a Rui um grande papel na evolução do pensamento jurisprudencial da nossa Suprema Corte. Quando um dia se escrever a história do Supremo Tribunal Federal desde os seus primórdios indecisos e vacilantes em face da declaração de inconstitucionalidade de uma lei do Congresso, será preciso reservar à obra de doutrinação do insigne constitucionalista um lugar de honra.

‘Seria ele, com idêntica atuação e cultura incomparavelmente maior, o Marshall brasileiro".

(41)

O 1º Caso Principal (Leading Case)

Segundo o Ministro Edgar Costa, "na ordem cronológica dos grandes julgamentos já proferidos pelo Supremo Tribunal, - ou seja na sua fase republicana, - ocupa o primeiro lugar, incontestavelmente, o proferido em 23 de abril de 1892 no pedido de habeas corpus nº 300, de que foi impetrante Rui Barbosa, em favor de presos políticos, alguns deles desterrados por ordem do marechal Vice-Presidente da República, para Cucuí e Tabatinga". (42)

Antes, contudo, de adentrarmos o espaço relativo a esse julgamento, convém situarmos histórica e socialmente os fatos acontecidos.

O Marechal-Presidente Deodoro da Fonseca não conseguindo dobrar o Congresso Nacional na aceitação de algumas proposições, resolve dissolvê-lo e convocar eleição para a escolha de novos representantes. Esse ato dissolutório foi veiculado pelo Decreto nº 641, de 03 de novembro de 1891. O expediente da dissolução do Legislativo não se coaduna com as repúblicas presidencialistas. Dessa sorte, levantaram-se vozes e armas contra o ato praticado por aquele Presidente, visto que feria de morte o cânon da separação dos poderes, denunciando o "golpe de estado". No mesmo mês, não suportando as pressões, o Presidente Deodoro renuncia ao cargo. Assumi-o o Vice-Presidente Marechal Floriano Peixoto. Já no dia 23 daquele mês de novembro, o Vice-Presidente edita os Decretos nº 685 e nº 686, os quais convocam o Congresso dissolvido e anulam aquele decreto dissolutório.

O Vice-Presidente Floriano Peixoto passa a perseguir aqueles que apoiaram a tentativa frustrada de "golpe de estado", principalmente os Governadores aliados ao Marechal Deodoro. Em recesso estava o Congresso. Livre, portanto, a atuação do Chefe do Executivo. Este, não encontrando barreiras, foi cometendo abusos de poder contra os seus desafetos, provocando reações contrárias aos seus atos, inclusive dentro das forças armadas. Em 06 de abril de 1892, é publicado o "Manifesto dos 13 Generais" condenando as atitudes daquele Vice-Presidente. Logo no dia imediato àquela publicação (07 de abril), os signatários foram reformados pelo Marechal Vice-Presidente. No dia 10 daquele mês houve manifestações populares dissolvidas pelo Exército e foram presos alguns mais exaltados. Além dessas manifestações, descobriram-se algumas armas, considerando-se, por conseguinte, como tentativa de sedição e de incitamento à revolta das forças armadas. Com esses elementos, o Chefe do Executivo resolve decretar, por 72 horas, o estado de sítio, com a suspensão de garantias constitucionais. Antes do decreto e ainda depois dele, o Marechal mandou efetuar inúmeras prisões e desterrou vários presos para Rio Branco, Cucuí e Tabatinga, no Amazonas. Entre os presos encontravam-se altas patentes das armas, parlamentares e jornalistas. (43)

"Estes atos - segundo Lêda Boechat Rodrigues - iam dar ensejo a um julgamento de estrondo pelo S.T.F.. Espontaneamente, sem procuração dos presos e desterrados, vítimas dos decretos de 10 e 12 de abril, Rui Barbosa impetrou, a 18 de abril, com espetacular desassombro e admirável capacidade profissional, o famoso habeas-corpus a favor de Eduardo Wandenkolk e outros. Fê-lo, como contou mais tarde, apesar de instado ‘pela família de uma das vítimas a não no requerer, porque um dos ministros do marechal dera boas esperanças de que a coação não duraria’; recusou, porém, ‘entrar na transação, declarando que, advogado de um princípio sacrificado, advogado do interesse público, não podia pactuar com a pusilanimidade das conveniências particulares’. E contra, ainda, à pressão declarada da imprensa governista, que afirmava ser inoportuna a medida impetrada. Rui Barbosa, pelo O País, respondeu que a medida interessava, mais que aos pacientes atuais, ao país inteiro; ao suscitá-la, obedecera ao ‘dever de cidadão, de advogado, de republicano, de co-autor da Constituição, revogada pelos sofismas políticos, em que se pretende estribar a defesa desse estado de sítio’. (44) Replicou o Diário do Comércio condenando novamente o pedido de habeas-corpus, que viria ‘necessariamente instituir um exame prévio sobre os atos enérgicos de repressão a que em bem da ordem social e da segurança pública foi levado o Governo". (45)

"A intimidação - continua Lêda Boechat Rodrigues - não se restringiu, aliás, aos comentários da imprensa. Corria como verdadeira uma frase atribuída a Floriano: ‘Se os juízes do Tribunal concederem habeas-corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas-corpus de que, por sua vez, necessitarão’.

‘Foi num clima de geral ansiedade que se reuniram, a 23 de abril, os juízes do S.T.F., para julgar o habeas-corpus nº 300. Nessa mesma manhã O País publicara, na íntegra, a monumental petição do patrono dos pacientes, que um ano depois seria traduzida na Law Gazette, de Londres".

(46)

Extraídos da obra de Edgar Costa, traz-se à colação alguns dos argumentos desfilados por Rui Barbosa. Pela importância histórica, transcreveremos os principais entretrechos daquela petição manuscrita de mais de cinqüenta folhas:

"Srs. Juízes do Supremo Tribunal Federal.

‘A decisão que este requerimento vem suscitar de vós é a de maior gravidade cívica, a de mais vasto alcance moral, que jamais pendeu a Justiça brasileira. Prouvera a Deus que a questão se levantasse envolvida na grandeza de uma dessas reputações que iluminam o fôro e cativam a admiração e as simpatias da toga. Mas, ainda bem que a evidência da causa, a simplicidade, a força, a dignidade da sua Justiça compensam vantajosamente a inferioridade do patrono.

‘Ele obedece apenas, sem o menor interesse (em sua alma e consciência o declara), aos mais nobres deveres dessa profissão, que, entrelaçada pelas relações mais íntimas ao sacerdócio da Justiça, impõe ao advogado a missão da luta pelo direito contra o poder, em amparo dos indefesos, dos proscritos, das vítimas da opressão, tanto mais recomendável à proteção da lei, quanto mais formidável for o arbítrio que as esmague, quanto mais formidável for o vazio que a ignorância, a covardia de uns, o desalento de outros, a letargia geral abrirem de redor dos perseguidos. Nunca se justificou melhor aquela previdência dos cânones do processo judicial, que, para reivindicação da liberdade extorquida, reconhecem a todo indivíduo consciente e capaz o caráter de procurador nato dos opressos, compreendendo que, em tais casos, o mandato decorre do interesse social, e que um povo de condição livre deve conter em seu seio homens dispostos a pugnar desinteressadamente pela restituição do direito de seus semelhantes, expondo-se por eles às paixões dos poderosos.

‘No seio das nações que individualizam, para a civilização contemporânea, o tipo de liberdade, política ou civil - a Inglaterra e os Estados Unidos, - a palavra forense foi sempre um dos órgãos mais eminentes do desenvolvimento da consciência popular. Nenhum povo carece mais profundamente que este, de senso jurídico, essa qualidade suprema das raças livres, cuja expansão constitui o segredo das maravilhas da democracia americana, cuja fraqueza, entre nós, explica a ruína das instituições da Monarquia representativa, e cuja decadência crescente nos vai fazendo voltar, sob uma admirável constituição republicana, aos terrores que precipitaram o primeiro reinado para o seu ocaso tenebroso. E, ao passo que os mais altos espíritos vêem na educação legalista, no entranhado constitucionalismo dos americanos, o princípio da virilidade incomparável daquele povo, nós, que fomos buscar no seu exemplo as formas da nossa reconstituição liberal, iniciamos o novo regime por um eclipse total da consciência jurídica, de que não nos salvaremos, se a Justiça da República nos não oferecer, na organização e no papel deste tribunal, o órgão de reparação, que sob a Monarquia nos faltava.

‘É a primeira vez, senhores juízes, que esse órgão tem de funcionar solenemente, na mais delicada e na mais séria das suas relações com a vida moral do País, entre os direitos inermes do indivíduo e os golpes violentos do poder. Relevai, pois, ao impetrante a animação da linguagem, escutai-o com benevolência, através do extenso desenvolvimento a que o assunto o obriga. Sob a impressão de imediata responsabilidade, que o liga a essa Constituição, em cuja obra lhe coube uma das partes mais preponderantes e amplas, ele sente intensamente o alcance da sentença que ides proferir, na delineação da fisionomia deste Tribunal, no seu destino histórico para a consolidação da República Federativa, que, nos Estados Unidos, é, sobretudo, uma vitória do Supremo Tribunal Federal; é sentindo-o, o impetrante não pode encarar sem emoção a sorte deste requerimento.

(...)

‘Srs. Juízes do Supremo Tribunal Federal. - Onze membros do Congresso Nacional, arrebatados inconstitucionalmente às cadeiras que o povo e os Estados lhes confiaram nas câmaras legislativas, praticamente esbulhados do mandato popular, representam a abolição virtual da Constituição republicana pelo Poder Executivo. A concessão do habeas-corpus a que eles, como os seus companheiros de infortúnio, têm direito, será a reanimação da sociedade brasileira, esmorecida e desacorçoada.

‘Substituí, senhores juízes, o regime da violência pelo regime da lei, e tereis indicado ao País o caminho salvador, que é o da legalidade constitucional, servida pelos tribunais. Eis o que, com o habeas-corpus pedido, vos requer o impetrante, afirmando em sua honra a veracidade do que alega".

(47)

Três foram as teses sustentadas por Rui para a impetração daquela ação constitucional: 1ª) a inconstitucionalidade do estado de sítio, pelo que eram juridicamente inválidas as medidas de repressão adotadas na sua vigência; 2ª) dessa inconstitucionalidade era o Supremo Tribunal Federal o competente para conhecer; 3ª) findo o estado de sítio, começa para os detidos políticos o direito ao julgamento segundo as formas usuais do processo. (48)

O acórdão foi publicado com a data de 27 de abri. Ei-lo na íntegra (excetuando-se os nomes de todos os pacientes daquela ação constitucional):

"Vistos, expostos e discutidos os presentes autos de habeas-corpus requerido pelo Dr. Rui Barbosa em favor dos senadores Almirante Eduardo Wandenkolk e outros, uns detidos e outros desterrados por ordem do Marechal Vice-Presidente da República em razão dos acontecimentos que se deram nesta Capital e determinaram a suspensão das garantias constitucionais, como foi declarado pelos decretos de 10 e 12 do corrente mês, constantes dos documentos de fls. 138 e 139; e considerando que pelo art. 30 § 1º da Constituição Federal compete ao Presidente, no recesso do Congresso Nacional, a atribuição de declarar em estado de sítio qualquer parte do território da União, quando a segurança da República o exigir, em caso de agressão estrangeira ou de comoção intestina que coloque a Pátria em iminente perigo, supendendo-se por tempo determinado as garantias constitucionais;

‘Considerando que o durante o estado de sítio é autorizado ao Presidente da República a impor, como medidas de repressão, a detenção em lugar não destinado aos réus de crimes comuns e o desterro para outros sítios do território nacional;

‘Considerando que estas medidas não revestem o caráter de pena, que o Presidente da República em caso algum poderá impor, visto não lhe ter sido conferida a atribuição de julgar, mas são medidas de segurança, de natureza transitória enquanto os acusados não são submetidos aos seus juízes naturais, nos termos do art. 72 § 15 da Constituição;

‘Considerando, porém, que o exercício desta extraordinária faculdade a Constituição confiou ao critério e prudente discrição do Presidente da República, responsável por ela, pelas medidas de exceção que tomar, e pelos abusos que à sombra delas possa cometer;

‘Considerando que, pelo art. 80 § 3º, combinado com o art. 34, nº 21 da Constituição, ao Congresso compete privativamente aprovar ou reprovar o estado de sítio declarado pelo Presidente da República, bem assim o exame das medidas excepcionais, que ele houver tomado, as quais para esse fim lhe serão relatadas com especificação dos motivos em que se fundam;

‘Considerando, portanto, que, antes do juízo político do Congresso não pode o Poder Judicial apreciar o uso que fez o Presidente da República daquela atribuição constitucional, e que, também, não é da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo;

‘Considerando que, ainda quando na situação criada pelo estado de sítio, estejam ou possam estar envolvidos alguns direitos individuais, esta circunstância não habilita o Poder Judicial a intervir para nulificar as medidas de segurança decretadas pelo Presidente da República, visto ser impossível isolar esses direitos da questão política, que os envolve e compreende, salvo se unicamente tratar-se de punir os abusos dos agentes subalternos na execução das mesmas medidas, porque a esses agentes não se estende a necessidade do voto político do Congresso;

‘Considerando, por outro lado, que não está provada a hora em que as prisões foram efetuadas, nem o momento em que entrou em execução o decreto que suspendeu as garantias constitucionais, o qual pela sua natureza não obedece às normas comuns da publicação, mas encerra implícita a cláusula de imediata execução, pouco importando que as prisões tenham sido realizadas, antes ou depois do estado de sítio, uma vez que foram decretadas dentro dêle, como consta do decreto de 12 do corrente a fls. 139;

‘Considerando, finalmente, que a cessação do estado de sítio não importa, ipso facto, na cessação das medidas tomadas dentro dele, as quais continuam a subsistir, enquanto os acusados não forem submetidos, como devem, aos tribunais competentes, pois do contrário poderiam ficar inutilizadas todas as providências aconselhadas em tal emergência, por graves razões de ordem pública;

‘Negam, por estes fundamentos, a pedida ordem de habeas-corpus".

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Só houve um voto a favor da concessão do habeas-corpus, proferido pelo juiz Pisa e Almeida. Eis o que disse Rui Barbosa acerca dessa importante dissidência:

"Havia, no Tribunal, ao cair dos votos, que denegavam o habeas-corpus, a impressão trágica de um naufrágio, contemplado a algumas braças da praia, sem esperança de salvamento, de uma grande calamidade pública, que se consumasse, sem remédio, aos nossos olhos, de uma sentença de morte sem apelo, que ouvíssemos pronunciar contra a pátria, do bater fúnebre do martelo, pregando entre as quatro tábuas de um esquife a esperança republicana... Quando, subitamente, fragorosas salvas de palmas, seguidas ainda por outra, após a admoestação do presidente, nos deu o sentimento de uma invasão violenta de alegria de viver. Era o voto do Sr. Pisa, concedendo o que todos os seus colegas tinham recusado.

‘Para medir o valor desses aplausos, sua eloqüência, creio que possa dizer sua autoridade, convém recordar, como a imprensa o atestou no dia imediato, que o auditório do Tribunal, naquela data, não se compunha de curiosos, do profanum vulgus, ordinariamente agitado por impressões irrefletidas. Antes, notório é que ali se representava a flor da competência forense: advogados, juízes, desembargadores, tudo o que mais podia estremecer pelas delicadezas de uma questão jurídica, - auditório essencialmente profissional, qual nunca se reunira em solenidades da Justiça entre nós.

(...)

‘Sob a influência de uma emoção religiosa, que me recorda vivamente a da minha adolescência, aproximando-se, alvoroçada e trêmula, do altar, para receber, na primeira comunhão, o Deus de meus pais, eu me cheguei, depois da sessão, quase sem voz, ao Sr. Pisa e Almeida pedindo-lhe que me permitisse ‘o consolo de beijar a mão de um justo’.".

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Dispensam-se os comentários.

2º Caso Principal

O outro caso que merece ser trazido à colação tem uma coloração idêntica àquele primeiro. Tratava-se, também, de uma questão relativa aos efeitos produzidos pela decretação do estado de sítio. Mais uma vez, fulgura a inteligência das idéias de Rui Barbosa.

Os fatos: No dia 05 de novembro de 1897, voltavam as tropas militares da campanha de Canudos, na qual milhares de vidas foram ceifadas, com imensas perdas para as forças do governo e um verdadeiro genocídio contra os habitantes do povoado sitiado e combatido. Para receber as tropas que retornavam, foram o Presidente da República Prudente de Moraes e alguns de seus auxiliares, dentre esses o Ministro da Guerra Machado Bittencourt. O militar Marcelino Bispo disparou, à queima-roupa, um tiro contra o presidente. Erra. Couriscamente, os auxiliares do presidente atiraram-se contra aquele militar. Na luta corporal travada, sai ferido a faca o Ministro da Guerra, que logo depois viria a falecer. Generalizada foi a emoção social. Grupos exaltados passaram a perseguir jornais opositores ao Governo, depredando-lhes as instalações e atentando contra a vida de alguns jornalistas. O medo tomou conta da sociedade. Com esse clima tenso, o Presidente pede autorização ao Congresso para decretar o estado de sítio por 30 dias no Distrito Federal e em Niterói. No dia 12 daquele mês o Congresso autoriza o sítio, inclusive com o voto do Senador Rui Barbosa. (51)

Com o sítio decretado, o Executivo passa a investigar as causas e os envolvidos no atentado. Após várias prorrogações na duração do sítio, são apontados, segundo um inquérito policial, os responsáveis pelo atentado contra a vida do Presidente. Os envolvidos, dentre eles vários parlamentares, são presos e desterrados para Fernando de Noronha, por decreto de 21 de janeiro de 1898. Em 03 de março daquele ano, Rui Barbosa impetra, junto ao Supremo Tribunal Federal, um habeas-corpus em favor daqueles desterrados, vez que cessado o sítio e restabelecidas as garantias constitucionais, não era legal a restrição da liberdade que lhes era imposta. Em sua petição, Rui Barbosa sustentava a tese, já outrora esposada, de que nenhum dos efeitos do sítio pode exceder à sua duração. Em longa peça, de 84 laudas, concluía aquele indomável advogado:

"Decrete, prorrogue, reitere o governo o estado de sítio, quantas vezes o bem público lho aconselhar. Mas fique assinalado pela vossa jurisprudência que, uma vez levantado, por ato do próprio governo, esse embargo às garantias da liberdade, a reintegração delas é absoluta: o poder executivo recolhe-se aos seus limites constitucionais, o poder judiciário recobra a sua extensão ordinária, e o direito dos indivíduos constrangidos enquanto durava o arbítrio do primeiro, volta na sua inteireza, logo que ele cessa, à tutela absoluta do segundo".

O julgamento ocorreu no dia 26 de março, sendo negada a ordem de soltura, por 5 votos a 4, estando ausentes outros 4 juízes. (52)

Eis o acórdão (excetuando-se os nomes de todos os pacientes):

"Vistos, expostos e discutidos os presentes autos de habeas-corpus, em que é impetrante o advogado Senador Rui Barbosa, em que são pacientes os desterrados políticos Senador João Cordeiro e outros.

‘Alega o impetrante: que os pacientes foram presos e desterrados durante o estado de sítio ultimamente estabelecido; que essa medida de exceção, por decreto do Governo, terminou em 23 de fevereiro próximo passado: que, sem embargo, continuaram os pacientes a permanecer no lugar destinado para o seu desterro; mas, que os efeitos do estado de sítio podem se estender além da sua cessação, e que, portanto, os pacientes estão sofrendo constrangimento ilegal em sua liberdade; que a jurisprudência adotada pelo Supremo Tribunal, quanto às conseqüências dos atos praticados em estado de sítio, não pode continuar a vigorar; que o acórdão de 27 de abril de 1892, que a consagrou, toldando a transparência do direito, foi um erro judiciário, e que, assim, deverá ser concedida aos pacientes a soltura impetrada.

‘Mas, atendendo a que todas as constituições dos povos livres, ao mesmo tempo que proclamam regras garantidoras das liberdades individuais, autorizam também o estabelecimento de certas exceções pela indeclinável necessidade da salvação da ordem social, não se pode deixar de reconhecer que perfeitamente jurídica é a doutrina firmada por este Tribunal de que só ao Congresso compete o exame das providências tomadas pelo chefe do Poder Executivo, durante o estado de sítio (acórdãos de 27 de abril de 1892 e de 01 de setembro de 1894).

‘E esta proposição evidentemente ressalta das disposições dos artigos 34, nº 21 e 80 § 3º do novo Estatuto Político, que assim se exprime: ‘Compete privativamente ao Congresso aprovar ou suspender o sítio que houver sido declarado pelo Executivo ou seus agentes responsáveis. Logo que se reunir o Congresso, o Presidente da República lhe relatará, motivando-as, as medidas de exceção que houverem sido tomadas’.

‘Por conseguinte, se ao Congresso é que privativamente assiste a atribuição para conhecer de tais medidas, ‘na detenção em lugar não destinado aos réus de crimes comuns’ e no desterro para outros sítios do território nacional, claro está que não cabe ao Poder Judiciário, sem violência do sentido natural dessas palavras, apreciar semelhantes atos, até que o Congresso tenha sobre eles manifestado o seu juízo político.

‘E nem a circunstância de acharem-se vinculados direitos individuais às medidas que empregou o chefe do Poder Executivo para salvar o prestígio da lei e garantir a ordem pública, habilita o Poder Judiciário a intervir, por ser impossível separa esses direitos da questão política.

‘Esta é a única interpretação que se adapta ao nosso Direito Constitucional, que não permite ao Poder Judiciário dilatar a esfera da sua jurisdição para se imiscuir nas funções políticas do Presidente da República.

‘Assim, firmado este princípio, segue-se seu consectário de que os efeitos do estado de sítio não se extinguem, com relação às pessoas que por ele foram atingidas, senão depois que o Congresso conhecer dos atos praticados pelo chefe do Poder Executivo.

‘E esta doutrina, de que os efeitos do estado de sítio não desaparecem com a sua terminação, encontra-se também escrita na legislação de muitos países, e entre eles a França republicana, que incorporou na Lei de 3 de abril de 1878 o mesmo princípio da Lei de 9 de agosto de 1849, que preceitua:

‘Levantado o estado de sítio, os tribunais militares continuarão a conhecer dos crimes e delitos, cujos processos lhes tenham sido conferidos’.

‘A Constituição do Equador, em seu art. 60, § 21, igualmente prescreve que os presos sejam submetidos aos tribunais militares, ainda que tenha cessado o estado de sítio.

‘Nos Estados Unidos da América do Norte a Lei de 5 de fevereiro de 1867 proíbe ao Poder Judiciário conceder habeas-corpus aos cidadãos que se tenham envolvido em rebelião.

‘E depois, seria contrário à índole do estado de sítio, medida mais de caráter preventivo do que repressivo, que fosse lícito por meio do habeas-corpus anular os atos que praticou o Presidente da República, em bem do interesse e defesa social.

‘Neste caso, observa então o impetrante, - prorrogue-se o estado de sítio e não se suspenda a Constituição para uma ou mais pessoas.

‘Ora, não precisa grande esforço de raciocínio para desde logo se condenar um sistema que exige das liberdades públicas tão grande sacrifício, e que impõe às instituições democráticas o seu descrédito com a permanência do estado de sítio.

‘E não se objete que também a doutrina deste Tribunal deixa ao desamparo as liberdades individuais.

‘Em face do nosso atual regime, é indiscutível a competência do Poder Judiciário para manter a inviolabilidade da Constituição, que não pode ficar à mercê dos dois órgãos da soberania nacional.

‘Assim, pois, se as medidas discricionárias do Presidente da República, durante o estado de sítio, têm os seus limites no pacto fundamental que da mesma sorte indica, nesta grave emergência da vida social, qual o procedimento que compete ao Congresso, é manifesto que a inobservância de tais preceitos abrirá espaço à intervenção do Poder Judiciário.

‘Acordam, por estes fundamentos, negar a impetrada ordem de soltura. Paguem-se as custas".

(53)

No dia seguinte ao julgamento, segundo Leda Boêchat Rodrigues, o órgão governista O Debate escrevia, em tom exultante, que estava definitivamente firmada a jurisprudência nacional sobre a figura jurídica do art. 80 da Carta republicana. Enganava-se o articulista daquele órgão, pois já no mês seguinte o S.T.F. reformaria o seu entendimento acerca dessa matéria, acatando quase que totalmente as teses esposadas por Rui Barbosa.

Em 16 de abril daquele longínquo ano de 1898, o Supremo Tribunal Federal acolhe o habeas-corpus impetrado pelos advogados Joaquim da Costa Barradas e outros, em favor dos mesmos pacientes defendidos por Rui Barbosa. Vencido que fora o relator, foi designado para o acórdão o Ministro Lúcio de Mendonça (ausente no recentíssimo julgamento do HC impetrado por Rui), que o lavrou com os seguinte fundamentos:

"Considerando que um dos pacientes é senador e dois são deputados, e que os deputados e senadores, desde que tiverem recebido diploma até à nova eleição, não poderão ser presos, senão no caso de flagrância em crime inafiançável (Const., art. 20);

‘Considerando que a prisão de nenhum desses três pacientes se realizou em tais condições;

‘Considerando que a imunidade, inerente à função de legislar, importa essencialmente a autonomia e independência do Poder Legislativo, de sorte que não pode estar incluída entre as garantias constitucionais que o estado de sítio suspende, nos termos do art. 80 da Constituição, pois de outro modo, se ao Poder Executivo fosse lícito arredar de suas cadeiras deputados e senadores, ficaria à mercê de seu arbítrio, e, por isso mesmo, anulada a independência desse outro poder político, órgão, como ele, da soberania nacional (Constituição, art. 15), e o estado de sítio, cujo fim é defender a autoridade e livre funcionamento dos poderes constituídos, converter-se-ia em meio de opressão, senão de destruição de um deles (sentença, de 15 de setembro de 1893, da Suprema Corte Argentina, no recurso de habeas-corpus do Senador Além);

‘Considerando mais que os pacientes foram presos e desterrados durante o estado de sítio declarado pelo Decreto Legislativo nº 456, de 12 de novembro de 1897, e prorrogado pelos Decretos do Poder Executivo nº 2737, de 11 de dezembro de mesmo ano, e nº 2810, de 31 de janeiro deste ano, ocorrendo até que os pacientes Deputados Alcindo Guanabara e Barbosa Lima foram presos antes de publicado o decreto legislativo que o declarou o sítio;

‘Considerando que com a cessação do estado de sítio cessam todas as medidas de repressão durante ele tomadas pelo Poder Executivo, porquanto:

‘1º) essa extrema medida, medida de alta política repressiva, só pode ser decretada por tempo determinado (Constituição, art. 80), e fora dar-lhe duração indeterminada o prorrogar-lhe os efeitos além do prazo prefixado no decreto que restabelece;

‘2º) absurdo seria subsistirem as medidas repressivas, somente autorizadas pelas exigências da segurança da República, que determinam a declaração de sítio, quando tais exigências têm cessado pelo dasaparecimento da agressão estrangeira, ou da comoção intestina, que as produziram, pois seria a sobrevivência de um efeito já sem causa, e certo é, na hipótese ocorrente, que a comoção interna, motivo do decreto legislativo de 12 de novembro do ano passado e dos decretos do Poder Executivo que o prorrogue, desde muito terminou, pois desde 23 de fevereiro cessou o estado des sítio que a atestava, e pois, com ele, não podiam deixar de cessar as medidas de exceção que só ela legitimava;

‘3º) outro e não menor absurdo seria que pudessem durar indefinidamente medidas transitórias da repressão deixadas ao arbítrio do Poder Executivo, quando nas próprias penas, impostas pelo Judiciário, com todas as formas tutelares do processo, é requisito substancial a determinação do tempo que hão de durar (Rui Barbosa, O Estado de Sítio, pág. 178);

‘4º) já a Constituição do Império, no art. 179, § 35, dispunha que nos casos de rebelião ou invasão de inimigo, pedindo a segurança do Estado que se dispensassem por tempo determinado algumas das formalidades que garantiam a liberdade individual, poder-se-ia fazer por ato especial do Poder Legislativo; não se achando a esse tempo reunida a Assembléia, e correndo a Pátria perigo iminente, poderia o Governo exercer esta mesma providência, como medida provisória e indispensável, suspendendo-a imediatamente que cessasse a necessidade urgente que a motivara. E leis posteriores - a de 22 de setembro de 1835, que suspendeu no Pará por espaço de seis meses, a contar da data de sua publicação naquela província, os §§ 6º e 10 do art. 179 da Constituição, para que pudesse o Governo autorizar o Presidente da referida província ‘para mandar prender sem culpa formada e poder conservar em prisão, sem sujeitar a processo durante o dito espaço de seis meses, os indiciados em qualquer dos crimes de resistência, conspiração, sedição, rebelião e homicídio’; a de 11 de outubro de 1836, prorrogada pela de 12 de outubro de 1837, e o decreto do Poder Executivo de 29 de março de 1841, prorrogado pelo de 14 de maio de 1842, suspendendo as garantias no Rio Grande do Sul, e o de 17 de maio de 1842, suspendendo-as em São Paulo e Minas Gerais - todas declaram terminantemente que a faculdade que tem o Governo para mandar prender e conservar em prisão um cidadão sem ser sujeito a processo, é somente durante o tempo de suspensão de garantias, que deverá necessariamente ser fixo e determinado (voto vencido do Sr. Pisa e Almeida no acórdão deste Tribunal de 27 de abril de 1892);

‘5º) o próprio Regimento Interno do Tribunal, no art. 65, § 3º, consagra esta doutrina, quando dispõe que o Tribunal se declarará incompetente para conceder a ordem de habeas-corpus se se tratar de medida de repressão autorizada pelo art. 80 da Constituição, enquanto perdurar o estado de sítio;

‘Considerando mais que a esta interpretação do ponto constitucional não obsta a atribuição privativamente conferida ao Congresso Nacional, no art. 34, nº 21, da Constituição, para aprovar ou suspender o sítio que houver sido declarado pelo Poder Executivo, na ausência dele, e, no art. 80 § 3º, para conhecer das medidas de exceção que houverem sido tomadas e que o Presidente da República lhe relatará, pois tal atribuição, para o único efeito de decretar-se, ou não, a responsabilidade dos agentes do Poder Executivo (lei de 8 de janeiro de 1892, art. 33), não exclui a competência do Judiciário senão para esse julgamento político, que não para o diverso efeito de amparar e restabelecer os direitos individuais que tais medidas hajam violado, quando delas venha regularmente a conhecer por via do pedido de habeas-corpus;

‘Considerando que a ação judiciária, suspensa durante o estado de sítio para o habeas-corpus em relação aos atingidos pelos efeitos do mesmo sítio, como suspensas estão ou podem estar todas as garantias individuais, com elas se restabelece e revigora pela cessação daquele estado excepcional e transitório;

‘Considerando que, se a garantia do habeas-corpus houvesse de ficar suspensa enquanto o estado de sítio não passasse pelo julgamento político do Congresso, e de tal julgamento ficasse dependendo o restabelecimento do direito individual ofendido pelas medidas de repressão empregadas pelo Governo no decurso daquele período de suspensão de garantias, indefesa ficaria por indeterminado tempo a própria liberdade individual e mutilada a mais nobre função tutelar do Poder Judiciário, além de que se abriria abundante fonte de conflitos, entre ele e o Congresso Nacional, vindo a ser este, em última análise, quem julgaria os indivíduos atingidos pela repressão política do sítio, e os julgaria sem forma de processo em foro privilegiado não conhecido pela Constituição e pelas leis;

‘Considerando, finalmente, que os pacientes se acham desterrados para a ilha de Fernando de Noronha, hoje presídio do Estado de Pernambuco, criado pelo decreto de 6 de agosto de 1897, e, assim, para o sítio do território nacional destinado a réus comuns, o que é contrário à Constituição, art. 80, § 2º, cumprindo que ao nº 2, desse parágrafo se estenda a cláusula benigna expressa no nº 1, por identidade de razão, que é evitar-se a promiscuidade dos réus de crimes políticos com os réus de crimes comuns;

‘Acordam conceder a impetrada ordem de habeas-corpus para que cesse o constrangimento ilegal em que se acham os pacientes. Custas pela União".

(54)

Era uma decisão histórica e fundamental essa do Supremo, posto que fincavam os alicerces da separação e independência dos poderes e do controle judicial da legitimidade constitucional dos atos do Congresso e do Executivo. Sob o título "A lição dos dois acórdão", relativo às decisões de 26 de março e a de 16 de abril, assim se manifestou Rui Barbosa acerca desse último acórdão:

"Proferido contra os interesses do poder, na mais completa plenitude do tribunal e após a ventilação mais ampla da matéria, o acórdão de 16 de abril, fruto de seis anos de campanha liberal, tem o brilho, a solidez e a força dos grandes arestos, que valem mais para a liberdade dos povos do que as constituições escritas".

(55)

Sob a égide da Constituição de 1891, a magistratura nativa, especialmente o S.T.F., teve papel fundamental na consolidação do corolário mais importante do princípio da separação dos poderes: o controle judicial dos atos estatais. Tormentosas foram as trilhas palmilhadas, haja vista as tentativas de se imputar aos juízes o crime de responsabilidade por negar aplicabilidade às leis, inquinando-as de inconstitucionais. De modo sobranceiro, foram, essas tentativas, repelidas pelo STF. Durante a Constituição de 1891, sobre rocha, alicerçava-se um dos mais importantes e democráticos instrumento de controle do poder: a fiscalização judicial de legitimidade constitucional das leis e dos atos do executivo. Entretanto, a indiferença às crescentes demandas sociais por parte dos poderes públicos e um processo político viciado desde às suas origens, vez que o sistema eleitoral favorecia sempre ao grupo que melhor soubesse fraudar às eleições, coonestada pela ausência de uma efetiva participação da Justiça na fiscalização das eleições, levaram à derrocada da legalidade do regime da Constituição de 1891, com a "Revolução de 30". Durante o período revolucionário, como sói acontecer, garroteadas foram as liberdades individuais e diminuídas as garantias e atribuições do Judiciário, mormente as que dissessem respeito ao controle dos atos praticados pelo "Governo Revolucionário". (56) A desconfiança ante o Supremo Tribunal por parte do Governo Provisório teve como conseqüência a destituição de seis ministros de suas funções. Ato correto, pois uma "revolução" não pode conviver com os "guardiães" da legalidade do regime abatido. Em verdade, todos os membros do STF deveriam ter sido afastados de suas funções, pois ao permanecerem nos cargos coonestavam com a quebra de constitucionalidade imposta pela força bruta. Quedava a 1ª república e com ela o controle judicial da legitimidade dos atos do poder público, enquanto durou o Governo Provisório. Contudo, já estava inscrito na consciência nacional o cânon do controle judicial de constitucionalidade dos atos do poder, de modo que, todas às vezes em que se recobraram as liberdades e houve um sopro de democracia animando o regime político do País, garantia-se ao cidadão recorrer ao Judiciário contra as ilegalidades e abusos de poder cometidas pelas autoridades governamentais. Como demonstra a nossa história.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O controle de constitucionalidade nas Constituições de 1891, 1934 e 1946:: breve anotação acerca da evolução do processo constitucional brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Monografia referente à conclusão da disciplina Processo Constitucional, ministrada pelo Professor Doutor José Alfredo de Oliveira Baracho, nos cursos de Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado) da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, no primeiro semestre de 1998

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