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Um estudo sobre o art. 16 da Lei de Tóxicos

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01/11/2000 às 00:00
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"... o simples usuário de um produto entorpecente não é um delinqüente e não pode ser tratado como um bandido. Aliás, sob este aspecto, é bom lembrar que, na maioria das vezes, adolescentes tornam-se delinqüentes para saciar a ânsia da dependência que, por certo, os atormenta." (Brayan Akhnaton)


A Lei n.º 6.368, de 21 de outubro de 1976, mais conhecida como Lei Antitóxicos, oferece em seu bojo um tema cada dia mais atual e preocupante, exigindo seriedade no seu tratamento por parte das nossas autoridades pátrias. Este diploma legal, de maior interesse no cenário jurídico e político contemporâneo deve ser discutido à luz das crescentes tratativas dispensadas pelos nossos tribunais e a necessidade de uma maior atenção e dedicação do Poder Público no controle do tráfico e uso de substâncias entorpecentes.

Este tratado legal dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica.

Grande objeto de discussão doutrinária passou a ser o artigo 16 desta lei, que devido a sua redação pouco esclarecedora e porque não dizer, confusa, leva às pessoas as mais variadas interpretações, inclusive, levando os doutrinadores mais renomados defender posições completamente diferentes entre eles.

Em se tratando desta problemática, o objetivo deste estudo será analisar estas diferentes correntes doutrinárias de forma sucinta e clara, buscando subsídios junto à jurisprudência e ao final expressarmos nossa opinião pessoal.

Preceitua o artigo 16 da mencionada lei :

" Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar :

Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa."

Em uma primeira análise superficial, parece que o legislador quis punir com este artigo o usuário, diferentemente do artigo 12, onde procurou punir o traficante.

Mas, será que é bem isto. Vejamos outras questões :

a) Quem o legislador esta querendo punir com o delito do art. 16 da lei antitóxicos ? É a pessoa do viciado, ou seja, o dependente da droga ? Ser viciado é crime ?

b) Se não for o viciado, quem está querendo punir ?

c) Ou o legislador quer punir a divulgação dos tóxicos ?

d) Afinal, o que o legislador pretende com este artigo ?

As condutas típicas deste delito são adquirir, quer dizer obter gratuita ou onerosamente, isto é, passar a ter a posse de (algo) mediante compra, troca, oferta, etc.. Guardar, significa conservar, manter, vigiar com o fim de defender, proteger ou preservar. Trazer consigo, indica o porte da substância. Há, porém, uma grande distinção doutrinária, no verbo adquirir o delito é instantâneo; nas condutas de guardar e trazer consigo, é permanente.

O sujeito ativo deste delito pode ser qualquer pessoa; o sujeito passivo, a coletividade e a consumação ocorre com a realização das condutas definidas no tipo. A tentativa pode ser admitida na aquisição, porém é inadmissível nas hipóteses de guardar e trazer consigo.

Vicente Greco Filho, em seu livro Tóxicos-Prevenção-Repressão, faz menção a Lei n.º 5.726, que por sua vez, repete a fórmula do Decreto-lei n.º 385, eliminando a dificuldade de enquadramento deste delito.

A nova lei buscou dar àquele que pratica uma das condutas tipificadas neste artigo, um tratamento mais benigno do que àquele que pratica os mesmos atos, porém com outra finalidade, p. ex., tráfico.

Entretanto, como defende o autor, não se trata de punição mais branda para o viciado. Como pode-se perceber, a lei não pune o vício em si mesmo, pois não há uma tipificação da conduta de "usar"(1).

Situação semelhante ocorre com aquele indivíduo que faz uso de entorpecentes em momento anterior à sua prisão; se a droga não estiver sob sua "guarda" ou vigilância - "trazer consigo", impossível será enquadrá-lo na ação típica incriminada(2).

O mesmo acontece com a conduta de fumar maconha. O simples ato de consumir a erva e ter a sorte de não ser surpreendido com a mesma em seu poder, também não há como enquadrá-lo no tipo penal(3).

A razão jurídica implícita no artigo 16 da lei é a caracterização do perigo social que esta conduta representa. É de bom alvitre, que aquele usuário, detentor da droga, mesmo sem tê-la consumido, coloca a saúde pública em perigo, pois torna-se um fator decisivo na difusão/distribuição dos tóxicos. Entretanto, acolhendo a posição sustentada pelo Desembargador José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini (in RT, 476:287), apenou com considerável brandura aquele que traz consigo para uso próprio, aceitando que este perigo social supra-mencionado é menor que o causado pelo traficante.

A solução é justa, entretanto traz dificuldades jurídicas na prática, havendo um concurso de infração entre os arts. 12, 13 e 16 quando a pessoa do viciado se confundir com a do traficante. Neste caso, prevalece o delito mais grave, ficando absorvido o delito de menor potencial ofensivo, no caso o tipificado neste art. 16.

A incidência deste artigo só pode ocorrer nas condutas de "adquirir", "guardar" e "trazer consigo" quando a finalidade for exclusiva para uso próprio e não quando desviada para fornecimento à terceiros.

Outro problema a ser mencionado, é o referente à prova da destinação para uso próprio. O próprio Decreto-lei n.º 385, tinha como critério único de distinção a quantidade, o que não deixa de ser um critério muito relativo. Porém, como bem frisa Vicente Greco, que as maiores dificuldades que a própria jurisprudência enfrenta é o fato de que nem a pequena quantidade nem o exame psiquiátrico é suficiente para a conclusão a respeito da finalidade que determina a incidência da infração mais leve(4).

Portanto, os tipos penais deste artigo, segundo o ilustre autor Vicente Greco, são comportamentos que geram um perigo à sociedade que a norma penal procura evitar. Por sua vez, a conduta "plantar" pode ser enquadrada como crime do art. 16, desde que se prove que seja para consumo próprio.

A objetividade jurídica deste delito inclui-se, da mesma forma que o artigo 12, entre os que ofendem a segurança pública, sob o particular aspecto da saúde pública. Este crime é descrito como de perigo abstrato, pois não exige a ocorrência do dano, sendo, portanto, o vício por si não passível de punição.

Será sujeito ativo qualquer pessoa que pratique uma das condutas tipificadas no tipo penal, portanto não se trata de crime próprio, isto é, a ação não é exclusiva de determinadas pessoas.

Por sua vez, sujeito passivo é toda a sociedade (coletividade).

Com base em decisão do Supremo Tribunal de Justiça(5), o fato de alguém portar entorpecente, mesmo que não tenha experimentado, configura a infração do artigo 16 da lei, sendo que a quantidade da droga não desnatura o delito, mesmo sendo ínfima. Neste sentido, transcrevemos o julgado do TJRGS, Terceira Câmara Criminal, Apelação crime n.º 694182106).

"Réu que portava um cigarro de 0,5g de maconha, para uso próprio. Crime de perigo que é, vinculado que está ao risco social que pode causar, pondo em ameaça a saúde pública, independentemente da lesividade que possa ter, no caso concreto, desimporta a quantidade da droga, para caracterizar-se o crime. Precedentes jurisprudenciais. Apelo desprovido."(6)

A lei de tóxicos não foi suficientemente clara com relação ao ato de "fumar" ou "utilizar" as substâncias entorpecentes. Ocorre que, o indivíduo que "fuma um cigarro de maconha", necessariamente está "trazendo consigo", o que já basta para enquadrá-lo no tipo penal(7). A não ser que, em uma hipótese remota, alguém estaria segurando o cigarro de maconha para outra pessoa se drogar, neste caso, não haveria como enquadrá-lo no tipo do delito. Em sentido contrário, considera o fato atípico Damásio de Jesus, como veremos mais adiante.

Em se tratando de fato pretérito, muitos julgados(8) têm considerado como sendo fato atípico a responsabilização a título do artigo 16, sem que tenha havido a apreensão do objeto material, jamais seria possível a tipificação exigida por lei, pois não haveria como comprovar a natureza entorpecente da substância, o que poderia ocorrer mediante exame químico-toxicólogico, buscando identificar a presença do princípio ativo da droga.

Como já falamos anteriormente, trata-se de crime de perigo abstrato, todavia a consumação deste artigo ocorre quando a conduta do agente consubstancia-se com um dos verbos do tipo penal(9), independente da ocorrência de dano físico ou psíquico a alguém.

Com relação a pena, existia uma divergência jurisprudencial sobre a possibilidade de aplicação do § 2º do art. 60 do código penal neste artigo da lei 6.368/76, angariando a substituição da pena privativa de liberdade por pena de multa, o que foi solucionado com a edição da Sumula n.º 171 do Superior Tribunal de Justiça, que preceitua :

"Cominadas cumulativamente, em lei especial, penas privativas de liberdade e pecuniária, é defeso a substituição da prisão por multa."

Por sua vez, Damásio de Jesus defende que a Lei n.º 8.072/90 (crimes hediondos) não se aplica às figuras típicas do artigo 16, em razão destas não se enquadrarem na qualificação de "tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins" (arts. 2º, caput e 8º da Lei dos Crimes hediondos).

Há, neste artigo, a caracterização de uma norma penal em branco, pois o legislador quando mencionou "... substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica ...", não especificou nesta norma quais seriam as tais substâncias, deixando, portanto, para ser feito em leis esparsas, portarias, etc. Com relação a nomenclatura da substância, é irrelevante o seu nome comercial, devendo se considerado a composição química, portanto, o princípio ativo.

Para configurar o crime, é preciso que esta conduta seja praticada " ... sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar ...". Contudo, não existindo estes preceitos, estamos diante de um fato atípico, sem previsão legal. Por exemplo, se um indivíduo adquirir droga com receita médica(10).

Em se tratando de elementos subjetivos do tipo penal, podemos separá-los em dois grandes pontos : 1º Dolo e o 2º "para uso próprio". No primeiro deles deve levar-se em consideração o conhecimento; conhecimento este de que se trata de substância entorpecente e de que o ato esteja sendo praticado sem a devida autorização ou em desacordo com determinação legal. Seguindo esta linha, faz-se necessário que o agente saiba de que se trata de entorpecente ou afins. O segundo elemento subjetivo do tipo, é imprescindível caracterizar-se que seja para uso próprio, senão estaremos diante da previsão legal do artigo 12 e não deste artigo 16(11).

Poderíamos ainda indagar se a intenção de usar, adquirir ou guardar a droga, configuraria o delito ora mencionado. Intenção significa vontade, desejo, propósito, portanto, em nenhuma destas condutas, desde que por si mesmas e não seguidas de atos executórios, de forma alguma poderiam ser punidas, pois a simples vontade não configura crime algum. Neste sentido, (RT 616:350 e RT 583:333).

Muito interessante ressaltar as considerações feitas pelo Prof. Damásio, no que se refere ao simples uso da droga. Neste sentido, há duas hipóteses a serem discutidas : 1º O fato é atípico, portanto o simples uso do entorpecente ou substância análoga não constitui delito; 2º O fato constitui a infração do artigo 16. O ilustre professor defende a posição levantada na primeira hipótese, da seguinte forma : "Se o uso pessoal constituísse delito não seria preciso definir como crime o fato de induzir ou instigar alguém a utilizar-se da droga (art. 12, § 2º, I, desta lei), uma vez que aplicar-se-ia ao indutor ou instigador a norma do art. 29 do CP (concurso de pessoas). Ele seria partícipe do crime de uso (se a conduta de uso estivesse descrita no art. 16"(12).

Ocorre que esta consideração do Prof. Damásio leva em conta o uso da droga em um meio onde estão 2 ou mais pessoas, o que poderá configurar o induzimento ou instigação ou até o concurso de pessoas. Mas vejamos, e o usuário; o verbo "usar" no tempo presente, via de regra, pode ser interpretado como "trazer consigo", salvo exceções em que no indivíduo é injetado droga sem estar na posse dela.

E, afinal, como devemos tratar o uso passado. Há duas correntes neste sentido: 1ª) Não há delito, pois inexistiria um perigo atual à saúde pública(13); e 2ª) Há crime(14). Damásio defende sua posição de que tecnicamente a 1ª corrente é a mais correta, pois não existe um perigo atual à saúde pública, mas o passar do tempo não exclui o fato de que a sociedade em algum instante foi lesada.

O que ocorre na prática, é a real dificuldade de obter-se prova do crime, exigindo exames periciais e toxicológicos que demonstrem a existência do princípio ativo da droga.

            Com relação a este aspecto fica uma questão : O delito sendo praticado no verbo passado não configura crime por não haver previsão legal, contudo o intuito da norma é preservar a saúde pública e a sociedade, logo não configura um risco à sociedade o indivíduo estar sob efeito de tóxicos ? Mais à frente voltaremos a este tópico, em nossas conclusões.

A excelente obra Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial, coordenada pelos mestres Alberto Silva Franco e Rui Stoco nos auxilia em preciosas conclusões.

Como já comentamos anteriormente, a razão jurídica da sanção prevista neste artigo, é ditada pelo perigo social que a conduta do agente representa. Este tipo penal, alcança tão somente o usuário, podendo ser habitual ou eventual, ou até o experimentador primário, sujeitos a uma apenação mais branda.

A tipicidade da conduta deste delito foi muito bem exposta pelos autores desta obra, como vejamos :

" As drogas não causam apenas dano pessoal, mas também social. O perigo que a lei pretende tutelar é primordialmente o coletivo. É crime de perigo abstrato. Se o tráfico criminoso alimenta e difunde o vício, este, sem dúvida, àquele mais acoroçoa. Ademais, a prevenção e repressão do tráfico ilícito e do uso indevido de tóxicos é dever de ordem geral, segundo dispõe o art. 1º da Lei especial. O alcance da norma incriminadora foi ampliado, agasalhando as condutas adquirir e guardar, além de trazer consigo, o que denuncia a preocupação do legislador quanto ao objeto do delito."(15)

Entretanto, alguns julgados entendem que o simples ato de alguém ser surpreendido, por exemplo, "fumando droga" configura uma atipicidade da conduta, pois partem do princípio de que o uso por si só é irrelevante sob o ângulo penal. Assim, se o agente for surpreendido consumindo droga, desde que não detém, porta ou traz consigo a substância proibida, levando-se em conta a previsão legal, o fato é penalmente atípico, portanto inexistindo risco para a coletividade ou saúde pública, lesionando-se a si próprio.

Vejamos as opiniões/estudos sustentados pelos professores Menna Barreto e o Desembargador Luiz Vicente Franceschini em conjunto com o Juiz Euclides B. de Oliveira. O primeiro observa que este dispositivo legal atém-se ao infrator que é levado, influenciado ao uso da droga "por curiosidade, influência do grupo afinitário, necessidade de escapismo ou qualquer outra causa, mas que não apresenta a periculosidade daquele que trafica nem a compulsoriedade física ou psicológica de dependente". Os demais defendem em estudo publicado "Das penas na legislação antitóxicos – Sugestões para o aperfeiçoamento do sistema", tratamento especial para os chamados "experimentadores primários" – ou para o infrator que traz consigo o tóxico, para o próprio consumo.

Na minha opinião, esta síntese do parágrafo acima é de uma enorme riqueza, ou seja, se o legislador não quis punir o usuário, mas evitar que a sociedade e a saúde pública sofra danos maiores causados por este, porém, sem sombra de dúvida este consumidor da droga direta ou indiretamente causa um desconforto aos cidadãos, nada mais racional de que o legislador auxilie, dê condições e oportunidades para maiores esclarecimentos àquele usuário que está começando a consumir ou experimentando a droga.

Por sua vez, citando Heleno Cláudio Fragoso, o usuário deve ser punido, seja ou não viciado, como transcreve "trata-se de um dos lamentáveis equívocos", da lei especial.

Vejamos a posição de Heleno Fragoso, este usuário deve ser punido, mas de que forma ? A simples punição adiantaria alguma coisa ? O indivíduo deixaria de ser viciado se fosse punido ? Continuo a sustentar que a solução não é tão simples. Se fosse simplista assim, bastaria inserir um parágrafo neste artigo ou mudar sua redação, que tudo estaria resolvido. Simplista por simplista, sou mais da opinião de incluir nos currículos escolares, durante o ano letivo, uma matéria sobre toxicologia, que abordasse todos os aspectos referentes às drogas e seus impactos.

Na obra de Brayan Akhnaton(16), o autor levanta algumas questões atuais, que enriquece sobremaneria este estudo.

Em uma primeira análise, detêm-se à questão sob seu prisma jurídico, diante do conflito que se apresenta ao Promotor de Justiça, responsável por denunciar ou não o dependente; e ao Magistrado, por condená-lo ou absolvê-lo. Por força da legislação vigente, não cabe a eles, discutir se o dependente é transgressor ou vítima. Vítima da família, dos amigos, da sociedade ou dele mesmo. Provado o fato previsto no tipo penal da legislação especial, deve o Promotor de Justiça oferecer a peça inicial da ação penal e ao Magistrado condená-lo.

Entende o autor, que o simples usuário de um produto entorpecente não é um delinqüente e não pode ser tratado como um bandido. Aliás, sob este aspecto, é bom lembrar que, na maioria das vezes, adolescentes tornam-se delinqüentes para saciar a ânsia da dependência que, por certo, os atormenta.

Em uma outra análise, o portador de grande quantidade de substância entorpecente seria qualificado como traficante e o que detêm pequena quantidade, dependente. Entretanto, esta separação não pode ser encarada como uma verdade absoluta, pois comporta as suas exceções, nem sempre solucionando a dúvida por completo.

A lei antitóxicos, por si só, não equipara a figura do traficante com o usuário, entretanto, na sua opinião, com a qual somos partidários, o consumidor deve ser auxiliado, não perseguido.

O usuário, previsto no art. 16, está sujeito a uma pena reduzida de 6 meses a 2 anos de detenção. Como não existe o mesmo rigor estabelecido para os traficantes, o consumidor preso em flagrante pode obter liberdade provisória, com ou sem fiança, sendo esta arbitrada pela autoridade policial, logo após a prisão. Ou seja, fica livre enquanto o processo estiver em andamento. A prisão preventiva, neste caso é praticamente impossível, tomando por base o artigo 313 do código de processo penal.

Mesmo condenado, dificilmente o usuário cumpre a pena privativa de liberdade. Isso porque pode obter a suspensão condicional da pena (sursis), ou a substituição da prisão por restrição de direitos, ou até por multa (esta, aceita parcialmente pela jurisprudência).

O que expomos acima, fica claro visualizar neste seguinte julgado :

"Tóxico – Lei 6368/76 – Pena – Substituição da pena privativa de liberdade por multa – Admissibilidade – Incluída a multa substitutiva entre os preceitos gerais do Cód. Penal, é mais do que evidente que tal instituto, desde que não contrariado expressamente em qualquer lei penal, se estende supletivamente a todo direito penal não codificado. ( ... ) os preceitos secundários do Art. 16 da Lei 6368/76 (posse de entorpecente), porque a pena de 6 meses, sendo aplicada, e o réu reunindo as condições de natureza subjetiva estabelecidos nos incs. II e III do Art. 44 do CP deve ser favorecido com tal hipótese. Neste caso, impossibilitada a cumulação da multa substitutiva com a pena pecuniária cominada no tipo especial, pois isto significaria evidente contradição com a própria idéia de suficiência e evidente exagero punitivo."(17)

Reproduzimos a seguir, o julgado RT 557 de março de 1982 do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendemos contribuir com idéias/posições atuais acerca deste controvertido assunto :

" CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA - Porte de entorpecente – Delito não configurado – Acusados detidos quando se dispunham a fumar cigarro de maconha fornecido pelo co-réu – Fato atípico – Absolvição decretada – Voto vencido – Inteligência do art. 16 da Lei 6.368/76."

"Fumar maconha ou outro produto entorpecente não se enquadrava na proibição do art. 281 do CP e nem se enquadra na do art. 16 da vigente Lei Antitóxicos, que, em sua longa enumeração taxativa de ações que emoldura, não inclui aquela. O verbo "Fumar" em momento algum é mencionado no dispositivo legal citado. ( ... )

Ao tempo em que o delito em exame estava enquadrado no Código Penal decidiu este Tribunal que "não pune a lei o agente por haver feito uso de entorpecente em momento anterior à sua prisão, mas, sim, pela posse do mesmo, ainda que para uso próprio. Se alguém fuma maconha, mas, quando surpreendido, não a conduz consigo, nem a guarda, impossível será enquadrá-lo na ação típica prevista no art. 281 do CP." (RT 431/281) ( ... )

Comentando a Lei 6.368/76, observa Vicente Greco Filho que o diploma antitóxicos, da mesma forma que a legislação anterior, não pune o vício em si mesmo, porque não tipifica a conduta de "usar" (Tóxicos, p. 99).

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( ... ) Subscreveu numerosas decisões absolutórias em favor de réus encontrados, a fumar, de boca em boca, um único cigarro de maconha, sem possibilidade de apurar-se qual o fornecedor do "fininho". Acompanhou sempre a orientação, sem dúvida dominante na doutrina e na jurisprudência, segundo a qual o uso de entorpecente ou psicotrópico, surpreendentemente, não foi incluído na legislação antitóxicos, sendo atípico o ato daquele que é surpreendido fumando maconha, aspirando cocaína, autoministrando-se droga ou sendo injetado por outrem.

Acórdão da 5ª Câmara do Tribunal de alçada, relatado pelo eminente e saudoso Juiz Fernando Prado, sustentou, alto e bom som, que "o uso de entorpecente só é punido quando há também o porte."

Configura o crime do art. 281 do CP o trazer consigo substância entorpecente, conduta que gera um perigo que a norma legal procura evitar: mas não se pune a conduta de usá-la em si próprio (RT 449/446). ( ... ) o fato de fumar maconha não é o que constitui o delito previsto no art. 281 do CP, e sim o de possuir o entorpecente. ( ... )" Este foi o entendimento do Des. Andrade Junqueira, vencido em parte, cuja condenação manteve.

Continuando, "( ... ) O artigo 16 reza : "adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio"; ora, por "adquirir", se entende "obter, conseguir, alcançar, comprar, tomar, passar a ter, vir a ter"; todos esses atos são transeuntes, passageiros, de modo que para o viciado vir a fumar cigarro de maconha necessidade houve de, previamente, adquirir a maconha por qualquer daquelas formas sem o que jamais conseguiria usá-la. ( ... )

O mesmo artigo não pune tão somente o "porte" de maconha pelo viciado; o porte, isto é, o "trazer consigo", é somente uma das modalidades previstas no art. 16, mas o "adquirir" a substância entorpecente tem significado literal e jurídico muito mais extenso do que o "porte" ao qual se apega a jurisprudência invocada pelo v. acórdão. ( ... )

Vê-se, por aí, que a citada jurisprudência inexplicavelmente reduziu o campo de atuação do art. 16 ao "porte", quando, na verdade, o dispositivo penal é de largo espectro de ação, alcançando o próprio fumante de maconha, pois, se ele está fumando o cigarro de maconha ou fazendo uso de qualquer entorpecente foi porque, num estádio anterior, "adquiriu" a maconha e o entorpecente, não importando ao aplicador da lei investigar como, quando e em que condições o fez, porquanto a lei se contenta com o "adquirir".

O objetivo do legislador, com a legislação antitóxicos, foi procurar evitar a disseminação dessa calamidade pública, em que está se tornando o uso do tóxico, principalmente no meio estudantil. ( ... ), porquanto o tráfico sem o uso seria inócuo e nenhum mal causaria ao indivíduo. ( ... )

Portanto, a finalidade da Lei Antitóxicos é coibir o uso e para isso proíbe não somente o tráfico como, também, a produção da substância entorpecente, por qualquer forma que seja (Art. 2º da Lei 6.368/76).

Com essas premissas, ressalta evidente que o uso de substância entorpecente é proibido por lei, pois essa é a finalidade principal da Lei Antitóxicos.

Daí por que o legislador adotou a fórmula mais genérica possível, qual seja, "adquirir", que engloba todas as modalidades possíveis e imagináveis de o indivíduo obter o entorpecente "para uso próprio".

Se o indivíduo obtém, consegue, alcança, compra, toma, passa a ter a maconha para uso próprio e é encontrado usando-a, não importa a modalidade, pois pode usá-la em forma de cigarro ou em forma líquida para a via intramuscular, ou endovenosa, ou subcutânea, não há dúvida de que incidiu no art. 16. ( ... )

            O "uso" do entorpecente está previsto expressamente no art. 1º como sendo objeto de prevenção e repressão pela lei.

E não será pelo fato de o legislador não haver empregado o vocábulo "usar" no art. 16 que se há de decidir que a mais nociva das finalidades do entorpecente não seja objeto de repressão penal, quando é certo que o legislador, após mencionar que o uso do entorpecente é objeto de prevenção e repressão (art. 1º da Lei 6.368/76), foi explicito no art. 3º ao instituir um sistema de repressão ao uso de tóxicos em geral, encarecendo, no art. 4º, a necessidade de as autoridades ali mencionadas colaborarem com a prevenção ao uso de entorpecentes.

Tudo está a evidenciar, portanto, que ao vocábulo "adquirir" se há de dar o significado próprio e jurídico, de modo a alcançar, sem sombra de dúvida, o usuário de tóxico. ( ... )

Quem usou entorpecente foi porque conseguiu adquiri-lo, isto é, obtê-lo por qualquer forma.

O resto é questão de prova, isto é, saber se o indivíduo fez ou não uso do entorpecente, isto é, se o indivíduo adquiriu ou obteve, ou conseguiu o entorpecente de que fez uso.

A tese de que "sem apreensão de droga não pode haver denúncia" (RT 424/295) é conclusão que não se compadece com a letra nem com o espírito das leis que disciplinam a repressão ao tóxico.

Se a própria lei penal dispõe sobre a verificação médica da dependência física ou psíquica aos entorpecentes (art. 19, do parágrafo único, da lei 6.368/76), porque tal verificação não pode ser feita para averiguação de que o réu fez uso ou não do entorpecente?

É inacreditável que, quando as investigações científicas chegaram ao mais alto grau de sofisticação em matéria de exames para verificação de dependência física ou psíquica, mediante exames de laboratório e psicossomáticos, se conclua que "sem apreensão da droga não pode haver denúncia".

E mais inacreditável, ainda que, mesmo na hipótese de os réus haverem confessado terem feito uso da maconha, isto é, terem confessado a "aquisição de maconha de que fizeram uso, ainda assim foram absolvidos porque só poderá ser condenado quem ainda trazia alguma quantidade de erva", pois o uso do entorpecente só é punido quando há também o porte ou guarda (cf. ac. Cit. Por Azevedo Franceschini in tóxicos, p. 75).

Essa jurisprudência, data venia, levaria o julgador a absolver o assaltante porque não se encontrou o dinheiro por ele roubado, dinheiro, esse, que ele consumiu, gastando-o ou inutilizando-o; ou então, levaria o julgador a absolver o homicida que haja consumido com o corpo da vítima, jogando-o ao mar, de modo a não ser encontrado, ou, então, queimando-o de tal modo a não deixar resíduo algum.

Ora, interpretação de tal jaez não se compadece mais com o adiantamento da Ciência Penal, cujo fulcro é a repressão aos atos anti-sociais, atos, esses, catalogados nas leis penais; o resto é questão de prova, isto é, saber se realmente houve ou não um assalto, ou, ainda, se houve ou não um homicídio; deixa-se o principal, que é a repressão ao crime, para se apegar ao acessório, concernente a prova do corpo de delito, quando é certo que há centenas de meios para se comprovar a existência do assalto ou do homicídio.

No caso da repressão ao entorpecente a questão é a mesma, pois tudo se resume em fazer-se a prova sobre se o réu fez ou não uso do entorpecente, pouco importando que ele, pelo uso dele, fez desaparecer os vestígios da substância, como, é o caso do cigarro de maconha, que, uma vez fumando, transforma-se em cinza; mas nem por isso se pode chegar a afirmação, inconcebível no estágio atual da Ciência Médica e Jurídica, de que sem apreensão da substância tóxica não é possível concluir-se se o réu fez ou não uso de entorpecente."

Por fim, conclui o julgado :

" Ciência Penal não é a jurisprudência isolada em si mesma, a alimentar-se de si mesma, a desdobrar-se, introvertidamente, em cálculos abstratos e subtilitatis juris, indiferente às aventuras do mundo exterior.

Ciência Penal não é só a interpretação hierática da lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação do seu "espírito" e a compreensão do seu "escopo", para ajustá-la a fatos humanos, a almas humanas, a episódios do dramático da vida."

Por sua vez, podemos extrair da obra de Valdir Sznick(18) excelentes considerações acerca deste vasto e discutido tema.

Abrange o artigo 16 da Lei 6.368/76 o usuário eventual, quer seja mero experimentador, quer curioso.

Mas, como é tratado a figura do traficante-dependente? Entende o autor, que este ou é dependente (pela incapacidade de entender seu ato), ou é traficante, porém, devendo ser enquadrado pelo art. 16. A figura do traficante-dependente era, em geral, dependente de drogas e, por necessidade (normalmente falta de dinheiro), passou a comercializar a droga para obter recursos, quando não parte da que distribui, para sua necessidades.

Por sua vez, o viciado pode ser considerado dependente? Para alguns, trata-se de doente e não deve ser punido como criminoso, já que tem sua capacidade diminuída, especialmente a de resistência (imputabilidade). Já, outros entendem que é punível, pois é através do vício que existe e se mantém o tráfico, pois se não fossem os consumidores inexistiriam os traficantes.

O experimentador, ou seja, aquele que usa esporadicamente a droga ou, então, que é surpreendido quando vai usar pela primeira vez. A experimentação é a primeira escala para o vício; é punido mais como uma medida preventiva (evitando novas recaídas) do que punitiva.

No parágrafo acima discordamos com veemência do autor, pois este tipo de punição não existe nada de preventivo. De forma alguma que uma punição, neste tipo de delito, vai configurar uma prevenção, buscando evitar que o experimentador se torne um potencial viciado e este, por sua vez, fomenta a distribuição das drogas e consequentemente o comércio por atacado que está em sua base.

No tipo penal, caberia, ao lado das condutas apontadas, acrescentar-se a de "fazer uso". É verdade que, quem é surpreendido "fazendo uso", no ato próprio, é punido, pois até aquele momento, no mínimo, trazia consigo. Mas se for "logo após", mesmo sabendo-se que a pessoa está sob os efeitos de tóxico, o fato é impune. Desta forma, em uma situação de co-réus, somente será punido aquele que está portando ou na guarda da droga, mesmo que este não tenha se utilizado do referido entorpecente.

Diferentemente julgou causa semelhante o Tribunal de Alçada Criminal paulista, na Apelação 94.943, de São Paulo, em que foi relator Azevedo Franceschini, que assentou:

"Havendo concerto de vontades e escopo comum, o porte da droga, para uso próprio, em veículo, incrimina todos os participantes presentes da empreitada." ( in RT, 480/261)

Com relação a apuração do uso, mister se faria o exame químico toxicológico, para positivar se o indiciado tem em seu organismo vestígios ou resíduos de droga; ou então o exame clínico, feito por médico, dos "efeitos" que não deixam dúvida de que o examinado está drogado.

E, como que batendo com o nosso posicionamento, é o acórdão do Supremo Tribunal Federal, cuja ementa é a seguinte:

"Entorpecente – inteligência do art. 16 da Lei no. 6.368/76. A expressão adquirir, segundo o consenso da doutrina, tem o sentido da obtenção da res, a título oneroso ou gratuito. O uso de entorpecente pressupõe a aquisição. – O exame de corpo de delito, em face do desaparecimento de vestígio pode ser suprido pela prova testemunhal (art. 167 do Código de Processo Penal)."

E no caso do traficante-viciado, ou seja, aquele que traz a droga, além de uso próprio, a usa também para o tráfico ? Neste caso, haveria o enquadramento no artigo 12 e não no delito do art. 16, pelo próprio fato da norma mais grave absorver a mais leve e pela descrição do próprio tipo penal.

Quanto ao dolo, o posicionamento do Prof. Edevaldo Alves da Silva assenta-se da seguinte forma : "deixamos claro não haver necessidade para a tipificação do delito, a existência do dolo específico, bastando o genérico." (Tóxicos, 1973, p. 256)

Em posicionamento contrário, Vicente Greco manifesta-se que deva exigir o dolo específico, pois só podem ser praticadas quando a finalidade exclusiva seja o uso próprio.

Continua o autor, um aspecto interessante foi o alargamento realizado pela jurisprudência das condutas constantes do art. 16. Assim é que ao lado das três condutas ali previstas – adquirir, guardar, trazer consigo – têm os pretórios admitidas outras, tais como plantar.

Em um julgamento do Tribunal de Alçada Criminal, assentou :

"Tratando-se de pequena plantação destinada ao preparo de entorpecentes apenas para uso próprio e não para tráfico, embora os verbos colher, cultivar e semear não constem explicitamente do art. 16 da Lei no. 6.368/76, admissível, por interpretação analógica in bonam partem, é a condenação por este dispositivo em lugar da aplicação do art. 12, / 1º , inc. II do mesmo diploma" (rel. Geraldo Pinheiro, Apel. 187.117). Idêntico entendimento, JuTACrim., 50/302, 52/29, 52/383, 58/267; RT, 520/408, RT, 527/409.

Para o autor, tal alargamento não é possível, pois o legislador não previu tal espécie e, quando previu, tipificou-as como tráfico.

No meu entender, a posição do julgado acima acerca do assunto parece muito mais condizente com a realidade do que a opinião do autor. Caberia, neste caso, uma interpretação mais flexível da norma, senão estaria-se apenando muito severamente aquele que praticou um delito de pequenas proporções.

Por fim, outra questão de enorme controvérsia e que o legislador não distinguiu, refere-se a quantidade apta a causar dependência, mesmo porque sabido é que para uma pessoa de organismo fraco pequena quantidade é mais do que suficiente, quando para outra de compleição robusta pouco ou nada faz.

Vicente Amêndola Neto em sua memorável obra jurisprudencial(19) sobre a lei de tóxicos menciona um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul(20), que por sua vez cita a tese defendida pelo magistrado Dr. Wilmar Oliveira(21) que é de uma riqueza incomesurável. Sim, na minha opinião, imensurável, em virtude da interpretação dada pelo Juiz que tanto se aproxima da nossa realidade e pelo seu espírito receptivo da nossa vida prática e não somente ao teor da norma existente. Relatamos a seguir partes desta decisão que consideramos de maior relevância, inclusive, com intuito de provocar maiores debates acerca do assunto de extrema gravidade, e, pelo que se percebe, de pouca investida e atenção das nossas autoridades.

" Uso de maconha. Tese defendida pelo magistrado da insignificância por ser crime de bagatela e sustentando a necessidade de descriminalizar o uso de maconha."

Discorre o eminente magistrado :

"Em um dado momento histórico, as normas são criadas atendendo a determinada necessidade. Com o tempo, as relações modificam-se, a sociedade evolui naturalmente e surge a necessidade de criar novas leis e de revogar outras. Uma lei que não mais possui finalidade social deve ser desconsiderada, pois o Direito existe unicamente para servir ao homem. De acordo com Plauto Faraco de Azevedo, em seu livro "Justiça Distributiva e Aplicação do Direito", fls. 119 e segs., a evolução da vida desafia o sistema jurídico, derivando a possível inadequação entre normas legais e os fatos a que são propostas. E o problema da lei injusta, "que apenas deixa de sê-lo quando, mercê de ampla formação jurídica, o intérprete da lei, seja ele o Juiz ou qualquer outro, encontra solução capaz de ensejar a harmonia social".

O Juiz, ao aplicar regras jurídicas para resolver problemas concretos, necessariamente faz um juízo de valor sobre a regra, questionando a validade e necessidade de sua aplicação para aquele caso concreto. Isso significa que o direito é conteúdo da atividade do Juiz, e não o seu limite, como pretende a visão positivista. A lei deve conter o direito, mas isso pode não ocorrer, sendo, portanto, imprescindível um juízo de valor por parte do Juiz.

Restaram comprovadas nos autos a autoria e a materialidade do fato abstratamente previsto na norma. Deve-se analisar, entretanto, até que ponto o fato "trazer consigo, para uso próprio, substância que determine dependência psíquica" constitui ofensa à sociedade. Em verdade, há desconhecimento em relação aos componentes da Cannabis sativa, misticismo no tocante a seus efeitos e preconceito em relação aos seus próprios usuários. A ideologia dominante tenta marginalizar esses indivíduos, vendendo a idéia de imoralidade quanto à utilização desta droga. Trata-se, portanto, de um problema moral, e esta, bem como a religião, são duas esferas que não dizem respeito ao Direito. Essa ciência, apesar de regular as relações na sociedade, deve deixar uma margem para a realização pessoal, pois a liberdade de cada um deve ser preservada. Ainda que seja grande a esfera de atuação do Estado, é preciso que ele se autolimite para não impedir o desenvolvimento pessoal.

Não há motivo plausível para se considerar crime o porte para uso próprio e a ingestão de maconha, se o álcool e o cigarro são drogas permitidas na sociedade.

Está comprovado que maconha causa dependência psíquica, conforme conclusões do Laboratório de Toxicologia do Instituto Médico Legal, mas o alcoolismo e o tabagismo vinculam não apenas dependência psíquica como também física, sendo portanto, muito mais prejudiciais à saúde.

De acordo com kaplan e Sadock, em seu "Compêndio de Psiquiatria", as páginas 261 e seguintes, os efeitos clínicos da Cannabis sativa, que duram de 2 a 4 horas após ingerí-la, são euforia, estados oniróides, tranqüilidade, sonolência, sensibilidade aos estímulos externos, sensação de lentificação do tempo e retraimento social. Foi ressaltado nessa obra o fato de que o usuário de maconha tem um controle mais íntimo e mais contínuo sobre os efeitos dessa droga em comparação com outras mais potentes. No que diz respeito à dependência, "não existem evidências clínicas de que os sintomas de abstinência ou a necessidade de aumentar a dose representem qualquer problema para o usuário".

Contrariando o conhecimento leigo de muitos indivíduos, pode-se constatar que a ingestão da maconha não faz com que o indivíduo tranforme-se em um ser agressivo, perigoso ou criminoso. O seu usuário não é uma ameaça em potencial para a sociedade. Os efeitos do uso dessa erva podem prejudicar seu desenvolvimento pessoal, mas esse é um âmbito no qual o Direito não deve interferir pelos motivos já aludidos.

Quanto aos efeitos da nicotina, componente altamente tóxico presente no cigarro, pode-se afirmar que uma superdosagem de 60 mg é fatal (um cigarro possui em média 0,5 mg), e que a dependência física dessa substância desenvolve-se rapidamente. O álcool tem como efeitos o julgamento deficiente, alteração do humor, agressão, atenção prejudicada, amnésia e outros.

As duas últimas drogas citadas, apesar de legalizadas no Brasil, trazem conseqüências mais graves para a sociedade do que o consumo de maconha. Prova disso é que o próprio CP brasileiro, no seu art. 61, prevê como circunstância agravante o estado de embriaguez preordenada, mas em momento algum alude ao fato de alguém cometer um crime após consumir maconha e valer-se disso como causa maiorante ou circunstância agravante. Apenas no art. 28, inc. II, do CP, tendo o legislador a intenção de incluir a maconha entre "substância de efeitos análogos", determinou que não se exclui a imputabilidade penal no caso de ter o agente cometido o crime embriagado ou pelo álcool ou por esse tipo de substância.

Mas não é preciso recorrer a conhecimentos jurídicos. Fazendo-se uma análise geral, qualquer indivíduo percebe que, proporcionalmente, ocorrem mais crimes cometidos por agentes alcoolizados do que por agentes drogados. Acidentes de trânsito, homicídios e lesões corporais resultantes de espancamento são prova disso.

Com base no acima exposto, questiono o motivo de o legislador, omissivamente, considerar o uso de álcool legal e, comissivamente, considerar típico e antijurídico o uso de Cannabis sativa, e rogo pela descriminalização do uso e porte para utilização própria da maconha.

É consabido que as pessoas encontram, como principal causa que as leva ao uso de entorpecentes, o sentimento de profunda frustação em face dos problemas que vêem na sua vida e cujas soluções consideram intangíveis. A idéia de nada poder fazer para estabelecer mudança em sua realidade, que a atemoriza, instala-se como inferno particular. E o uso do entorpecente gera parênteses, hiato de bem-estar e leveza, pois, afasta, momentaneamente aquela angústia, que é substituída pelo ilusório nirvana.

E com muita freqüência em adolescentes, para quem o futuro, que representa toda sua vida, não, passa de uma espessa escuridão.

Entre as causas que levam ao consumo de drogas, é importante citar problemas e questionamentos que geralmente se manifestam na adolescência, como o sexo e a relação com os pais, com a família. Também o campo social, ou seja, o ambiente em que o indivíduo vive, tem grande importância, pois pode o jovem sentir-se inferior econômica e culturalmente, recorrendo, assim, ao uso da droga. Muitas vezes o problema encontra-se no plano afetivo e o indivíduo ao se drogar procura outras fontes de emoção e prazer. As razões que levam à permanência da utilização da maconha em específico estão relacionadas com os efeitos de tal droga, que são : modificação do contato com a realidade, anestesia da timidez, perda da crítica, segurança, excitação, dissociação de idéias, sentimentos de felicidade.

Jervis ("Maconha na Clínica Psiquiátrica", Carol Sonereich, 3/24), sem se aprofundar nos efeitos da erva, afirma que, "em sentido, é, portanto, a droga ideal : ou, pelo menos, a mais disponível no momento. Já que em princípio as drogas são indispensáveis para o homem, como não preferir esta, cujo inconveniente principal é apenas o risco de ser preso e "por culpa de algum Juiz particularmente estúpido acabar em um manicômio judiciário?".

De acordo com o médico Luiz Paulo Paim Santos, direitor da Cruz Vermelha Internacional do Rio Grande do Sul e chefe do serviço de álcool e drogas da clínica Pinel (Z.H., 17.9.90, p, 24 e 25) a questão das drogas não será mudada pela repressão ao tráfico, e sim pelo combate às causas que levam ao consumo, complementando que o ataque ao consumo de drogas deve vir de cima, dos governos, via educação e informação. Sua idéia é "de se empenhar em algo maior, feito uma política social que seja formal, legítima e adotada por todas as camadas da sociedade. A questão das drogas somente se vai transformar em solução quando pensada como política oficial. Hoje ela ainda está na categoria de clandestina.

Ao longo da história, ficou comprovado que a proibição e a repressão referente ao uso de drogas não surtiu o efeito de reduzir ou eliminar o número de consumidores. Pelo contrário, este número vem aumentando cada vez mais. Há de se cogitar da existência ou não do efeito geral repressivo da pena, pois no mundo contemporâneo há 300 milhões de fumadores de maconha. Curtet acha que o problema dos tóxicos não pode ser resolvido nem pelo hospital, nem pela prisão. Acredita ele que só uma relação afetiva pode ajudar o toxicômano, acrescentando que a Cannabis, por não criar dependência, pode ser despenalizada. "O seu abuso pode ser nocivo, mas também é nocivo o abuso ao repolho".

A repressão às drogas, que se manifesta no meio social através de atos policiais, de "batidas", de prisões em flagrante, de agressões físicas e condenações judiciais aos usuários, ao meu entendimento, gera mais malefício à sociedade e ao próprio drogado do que os efeitos individuais e sociais decorrentes do uso de entorpecentes. Deve-se considerar que a própria sociedade, através de sua estruturação, deficiências e do seu menor núcleo, que é a família, induz o uso da droga, embora, através de leis, dos atos repressivos já citados e de uma falsa moral, se oponha aparentemente a ela. Assim sendo, é dever desta mesma sociedade tentar erradicar este problema, mas através da compreensão, da tolerância, de tratamento específicos de instalações de clínicas psiquiátricas que proporcionem mais fácil acesso de drogados menos privilegiados e não através de atos repressivos e aplicação de sanções já obsoletas. A.M. Amar, Delegado da América Latina do Conselho Internacional de Alcoolismo e Toxicomania, afirma que a repressão apenas segrega a desajusta, colocando como prioridade integrar o indivíduo na sociedade.

O preconceito gerado pela repressão pública tem, face à descoberta da dependência em membros da família, causando profundas fissuras na própria entidade familiar com profundos sofrimentos do indiciado dos familiares. Casamentos desfeitos, jovens expulsos de casa, traumas, modificações no rumo da vida do grupo podem acontecer (e têm acontecido), com imediatas conseqüências de prisões, sentenças ou acórdãos condenatórios por simples uso ou porte de maconha.

As conseqüências sociais da repressão policial ou judicial são males maiores do que aqueles que pretendem coibir causados pelo uso de entorpecentes.

Há uma curiosidade natural do ser humano pelo desconhecido e pelo proibido e isso faz com que ele se inicie nas drogas. Os adolescentes geralmente buscam na maconha a satisfação de suas curiosidades, suas dúvidas e o porquê de ser ela tão censurada e criticada. Sua proibição, portanto, em um certo aspecto, estimula o seu consumo.

A criminalização da maconha, aliás prejudica o combate ao tráfico, pois obriga o dependente a proteger o traficante, não lhe revelando a identidade, pois isto implicaria confissão. Silenciando, trata de evitar processo e pena contra ele próprio. Ainda ao nível individual, de acordo com a lei brasileira, aquele simples "drogado de fim de semana" ou "fumador de maconha" inofensivo fica sujeito a ter sua liberdade individual tolhida, se aplicadas sanções previstas na Lei n.º 6.368. Esses indivíduos que vêem na maconha uma distração não precisam sequer de tratamento psiquiátrico. Condená-los e levá-los à prisão seria, no mínimo, uma injustiça.

Paralelamente ao problema enfrentado pelo simples usuário, há que a questão dos toxicômanos (pessoas que consomem tóxicos diariamente, ou quase, praticamente sem interrupções, de maneira incoercível, a ponto de apresentarem estado de intoxicação caracterizado por distúrbios psíquicos e somáticos). Estes, por serem dependentes de drogas ilegais, encontram séria dificuldade em admitir que estão precisando de ajuda especializada, temerosos da reação da família, da sociedade e da aplicação das leis. A procura espontânea de um terapeuta nestes casos é muito difícil, havendo, ainda, devido à má informação, o medo de o terapeuta denunciá-lo. Embora não haja dados estatísticos referentes a isto, acredito que há mais alcóolatras que procuram médicos ou instituições especializadas do que drogados, já que o álcool deixou de ser um tabu social e é legalizado.

No caso em questão, a norma jurídica incidiu, pois ocorreu aquilo que ela previu e regulou abstratamente. Essa incidência significa que a norma é "potencialmente" aplicável. Cabe a mim, através de um juízo de valor, fazer ou não com que o indivíduo seja punido em nome do Estado. (...)

Além do mais, trata-se de um "crime de bagatela", visto que a quantidade de erva é ínfima, não podendo, portanto gerar dependência física ou psíquica e, talvez, nem mesmo os efeitos clínicos normais que surgem logo após a sua utilização.

Ainda vale a referência à decisão do STF que considera o porte de maconha como crime, pois se trata de crime de perigo à saúde pública, visando, assim, evitar o perigo comum advindo dos fatos que podem atingir a saúde de número indeterminado de pessoas, pondo em risco a incolumidade coletiva. É entendido pela maioria que quem porta Cannabis sativa pode disseminar o uso da mesma difundindo este hábito entre os amigos e, consequentemente, em toda a sociedade. Porém, entendo que o usuário ou portador desta droga não tem a intenção de induzir ninguém a dela se valer, querendo apenas se autosatisfazer através da ingestão da mesma. Admito que o portador possa ser potencialmente um disseminador do uso, mas, se se fizer uma analogia deste pensamento, tenho que admitir o fato de que uma farmácia que vende medicamentos ou um supermercado que venda bebidas alcóolicas também oferecem perigos potencial à coletividade, pois determinados remédios em doses excessivas ou bebidas alcóolicas em demasia podem gerar dependência ou até mesmo a morte.

Segundo Plauto Faraco de Azevedo, "sempre é oportuno enfatizar a velha idéia de que as soluções jurídicas em geral e as decisões judiciais em particular apenas se justificam na medida em que respondem aos reclamos da vida humana, em certo contexto cultural, em dado momento histórico. Para isto, é preciso menos hermetismo lingüístico e artifícios lógicos, e maior preocupação com os interesses pessoais e sociais em questão. Nesta postura, sentir-se-ão melhor os profissionais do Direito e as partes, os primeiros por saberem-se socialmente mais úteis e as segundas por sentirem-se reconhecidas como pessoas, deixando a incômoda categoria das abstrações jurídicas".

Frente ao exposto, julgo procedente a ação penal, mas absolvo-o (a-os) da imputação que lhe (s) foi feita. Assim decido, com fulcro no art. 386, inc. III, do CPP." (...)

Em outro julgado proferido pelo Relator Moacir Danilo Rodrigues do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, traz a seguinte redação :

" Indivíduo preso em flagrante por trazer consigo 0,5 g de maconha – Quantidade ínfima não acarreta perigo à saúde do agente, nem à saúde pública, bens que a legislação de tóxico objetiva tutelar – Interpretação do art. 16 com o art. 37 da Lei de Tóxicos – Sentença absolutória mantida por maioria."

"A matéria é extremamente complexa. E, com tal, se expressa a divergência da Câmara. A maioria, no entanto, admitindo interpretação casuística da norma, entende improver ao apelo.

Parte-se do pressuposto de que a Justiça é uma concepção muito mais ampla do que a de lei. Esta, embora concreta, é estática. Aquela, todavia, é dinâmica, cumprindo-lhe a adequação da norma a uma realidade em constante mutação. Via de conseqüência, há que se fazer a distinção, que é fundamental, entre justiça formal e substancial.

Denis Lloyd, professor de jurisprudência da Universidade de Londres em sua lúcida obra A Idéia de Lei, editada por Martin Livreiro, esclarece que: "não é suficiente para um sistema legal aceitar os atributos formais da justiça, mesmo quando temperados por um espírito de equidade".

A posição do emérito mestre londrino ganha relevo se considerarmos o notório conservadorismo inglês. Daí retornamos à sua obra, quando defende a liberdade de atuação do juiz, munindo-o da flexibilidade necessária para realizar a adequação da lei às necessidades da comunidade em que ela opera: "Uma rígida e intolerante profissão jurídica pode não se coadunar com os valores da sociedade em que atua, sobretudo quando essa sociedade se encontra num estado de transição, com substanciais correntes de mudanças sociais e econômicas, transformando gradualmente uma comunidade mais tradicional".

Admitido, pois, o caráter de flexibilidade da atuação do juiz, objetivando uma adequação da norma às circunstâncias que lhe são postas, permanentemente, sacrifica-se o rigor de uma justiça formal, com as vantagens de uma justiça substancial.

E é dentro do enfoque que esta permite, que a Lei de Tóxicos merece analisada e até repensados os papéis do Estado e do indivíduo.

Observa-se que no comércio de drogas três fatores essenciais devem ser examinados: produção, circulação e consumo. Estes, em contínua interação, estimulam-se mutuamente, de modo que, a partir de um determinado momento, quando o processo se estabeleceu e se rotinizou, cada um destes fatores é, concomitantemente, causa e conseqüência dos outros dois.

O Delegado Federal José Antonio Hahn, em conferência apresentada ao X Congresso da Associação Brasileira de Juizes e Curadores de Menores, realizado em Tramandaí, em outubro/83, um dos maiores conhecedores do problema, afirmou: "Para um enfrentamento racional desse grave problema da humanidade, é necessário que haja ataque simultâneo nas três frentes de combate. No fator demanda, devem ter realce as atividades de prevenção educacional e de reabilitação do usuário de drogas. No fator produção, dar-se-á ênfase à atividade de controle do fabrico e comercialização de drogas sintéticas e semi-sintéticas, bem como no controle e erradicação do cultivo de drogas naturais. No que diz respeito à atividade de circulação, que é o tráfico de drogas propriamente dito, em seu momento de distribuição, devem ter lugar as atividades repressivas jurídico-penais.

E afirma aquela autoridade, do alto de sua experiência, adquirida inclusive em estágios na Europa e América do Norte: "Se ao Estado compete a atividade de controlar a Produção de drogas e reprimir a circulação, no momento que essa droga foi produzida e circulou até o consumidor, está patente o fracasso do Estado no seu dever primeiro, de controle e repressão. E, assim sendo, será lícito ou correto que o Estado continue a sua atividade repressiva contra o consumidor ?

E propõe uma outra indagação: "A questão básica é: Quem toma droga é um criminoso ou é vítima de um crime?"

Novamente retornamos ao questionamento: A lei é absoluta e à justiça compete aplicá-la e não interpretá-la ?

A resposta, parece-me, está na frase lapidar do inesquecível Benjamin Cardoso, Juiz da Suprema Corte Americana: "O direito, como o viajante, deve estar pronto para o dia seguinte!"

Filiamo-nos a uma justiça formal ou a uma justiça substancial? No primeiro caso, há sujeição à inabilidade ou a inércia do legislador. No segundo, significamos os agentes precursores das grandes mudanças legais. Afinal, não são os juizes os indivíduos mais capacitados para a aferição da boa ou da má lei?

O fato social é dinâmico. Justiça formal significa o último vagão de uma locomotiva. Quando o fato social ali chega, o faz como produto final. E o juiz que se atém apenas à justiça formal fica fora do grande processo de criação e transformação. Resta-lhe tão-só a aplicação de uma regra jurídica, desconforme com a realidade.

Ao contrário, acreditando e lutando por uma justiça substancial, disseca-se a frieza da lei, apontando ao legislador a necessidade de correção. As grandes conquistas do homem, consubstanciadas em leis justas e atuais, tiveram no desassombro interpretativo dos juizes o seu fato gerador.

Recorre-se, mais uma vez, a Denis Lloyd, em sua obra anteriormente mencionada: "Os juizes, como outros seres humanos, não podem se divorciar dos padrões de valor que estão implícitos na sociedade ou grupo a que pertencem, e nenhum soma de imparcialidade conscienciosamente aplicada, ou ausência judicial de passionalismo, conseguirá eliminar a influência de fatores desse gênero. Se, p. ex., considerarmos como, em tempos modernos, vários campos do direito foram gradualmente moldados por legislação judicial, num esforço para adaptá-los às necessidades sentidas num novo tipo de sociedade industrial, voltada para o bem-estar social, poderemos perceber como pode avançar, de decisão em decisão, numa lenta e gradual progressão, no sentido de por em vigor um padrão alterado de valores."

Enfrento a questão proposta pelo Dr. Hahn: "Se o Estado fracassou no seu dever de controle e repressão, ser-lhe-á lícito ou correto punir o usuário?"

Penso que na própria lei está o caminho para aplicação de uma justiça substancial. O problema do consumo de drogas tem preocupado sobremaneira os juristas, sociólogos e outros estudiosos da área. Há correntes propugnando pela descriminalização da maconha, p.ex..

O tema não é tão simples. Certo que existem dois tipos de consumidores, ou seja, o viciado, que utiliza habitualmente, e o curioso. Ao descriminalizar a maconha estaríamos, em relação ao primeiro, longe de beneficiá-lo, mergulhando-o fundamente nos laços do vício. Sabemos todos que a habitualidade de consumo desta droga, de per se, não significa o grande perigo. Este reside na escalada para o consumo de drogas pesadas, como a cocaína, a heroína e outros narcóticos.

Nem por isso o dependente deve ser tratado como um criminoso. Ao vício foi levado por um processo ansiogênico, alimentado por várias distorções psíquicas. Cabe, isto sim, resgatá-lo em sua higidez mental, o que só é possível pelo tratamento ao nível médico, psicológico e até mesmo psicanalítico.

Aliás, a própria Lei de Tóxicos não o pune como criminoso, isentando-o de pena. Mas reserva-lhe o mesmo procedimento formal aplicado ao agente de delito.

O curioso, o consumidor eventual, todavia, que, pelas injunções mais diferentes, se propõe a experimentar, a consumir um cigarro, é tratado, em tudo e por tudo, como qualquer criminoso. E isto é cruel e desumano.

O art. 16 da Lei de Entorpecentes, além de uma profunda incongruência objetiva, não pode ser analisado sem uma interpretação subjetiva. Assim, sanciona pena, àquele que guarda ou traz consigo, para uso próprio, entorpecente ou outra substância causadora de dependência.

A incongruência resulta cristalina de não estar catalogado, como crime, o ato de consumir. A própria norma, portanto, parece estimular o consumo, dizendo não guarda, não traz consigo, consome logo a droga.

Suponha-se três jovens surpreendidos pela polícia, algum tempo após cada um ter recebido um cigarro de maconha. O primeiro já fumara todo o seu cigarro. Revistado, nada foi encontrado; ficou livre. O segundo, provara a droga, em uma única baforada. Não gostou e permaneceu com o cigarro apagado, para jogá-lo fora, em outro local. Foi preso. O terceiro sequer provara o seu. Não o recusara para "não ficar por fora". Foi preso.

E, talvez, muito menor fosse o número de jovens a experimentar a maconha, se no seu currículo escolar tivesse recebido as informações necessárias sobre a droga e suas conseqüências. A questão não seria tabu. Não haveria curiosidade. Nem o "mistério" conseqüente. Estava recebendo os conhecimentos apropriados, em momento e locais adequados. E não na maneira desvirtuada que a clandestinidade propõe.

Pois bem, se o Estado, que ao editar a lei, estabelece regras para si (o criar, nos currículos escolares, na formação de professores, obrigatoriedade de pontos de esclarecimento sobre drogas) e não as cumpre, pode valer-se, unilateralmente, destas regras contra o seu cidadão ?

A lógica, o bom senso, a própria noção de justiça, até, estão a responder negativamente.

Afirmou-se, anteriormente, que, na própria Lei de Tóxicos, está o caminho para uma interpretação de ordem subjetiva, permitindo exercitar uma justiça substancial. Assim, há convicção de que o art. 16 não pode ser interpretado com rigorismo formal. Há que se buscar o art. 37 como forma de abrandar o rigor daquele.

Ao dispor que, para a caracterização dos crimes definidos na lei, a autoridade atenderá à natureza e à quantidade da substância, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstancias, à conduta e aos antecedentes, está implícita a flexibilidade que o legislador atribuiu ao juiz.

Pode-se argumentar que ela se limita a distinguir o porte para uso próprio das demais modalidades delituosas. Mas, este argumento reduz o flexível tão-só a uma justiça formal. E mais, o artigo seria perfeitamente dispensável, já que os arts. 12, 13, 14, 15 e 16 são exaustivos nos seus enunciados. O art. 18 trata apenas de causas especiais de aumento de pena, enquanto o art. 19 e seu parágrafo único dispõem sobre isenção ou redução de pena. "É de se acreditar que o legislador, por tratar de uma matéria nova, prenhe de discussões sociológicas, médicas e até ideológicas, abriu uma comporta para a construção judicial. Teria ele, certamente, o desafogo natural de dotar a norma, aparentemente rígida, da flexibilidade necessária adequá-la à realidade de uma sociedade em rápida e constante mutação.

Ora, esta lei vige há mais de 10 anos, e, até agora, no que diz respeito à maconha, sabe-se apenas que é causadora de dependência psíquica, desde que contenha o seu princípio ativo, o tetrahidrocanabionol. Mas, neste longo período de tempo, ninguém respondeu, com certeza, qual a quantidade de tetrahidrocanabiol necessária para produzir a dependência.

Não deve esta linha interpretativa ser encarada como destinada a entrar em rota de colisão com decisões do STF, segundo as quais, batam que a maconha contenha o tetrahidrocanabiol, para que esteja caracterizado o delito do art. 16, independentemente da quantidade.

Não se pode perder de vista que o Supremo apenas interpreta a lei, não a conduta.

No caso presente, portanto, considerada a pequena quantia da maconha aprendida, por si só incapaz de causar dependência ao apelado, nem de colocar em risco a saúde pública, impossível vislumbrar os elementos constitutivos de um delito. Até mesmo pela conduta do réu e seus antecedentes.

Des. João Ricardo Vinhas, vencido: Votei vencido, porque entendia, como entendo, na esteira da jurisprudência dos Tribunais pátrios, inclusive do STF, que a posse de um cigarro ou "fininho" de maconha (0,5 g) caracteriza a figura típica prevista no art. 16 da Lei de Tóxicos.

Ainda recentemente, o Pretório Excelso, tendo como Relator o eminente Min. Oscar Corrêa, mais uma vez assentou que o art. 16 da Lei 6.368/76 não distingue, na configuração do delito, a posse de quantidade maior ou menor de maconha", aduzindo, no arremate, o eminente Ministro-Relator, que "a posse de pequena quantidade não o descaracteriza" (RE 109.553-9-SP).

Outra não é a lição de Vicente Greco Filho, para quem a quantidade da substância entorpecente não é elemento caracterizador do crime do art. 16 da Lei de Tóxicos, que se configura pela simples verificação do fato, crime de mero perigo.

A tese sustentada no acórdão, pela egrégia maioria, especialmente nos dias atuais, em que o consumo de drogas, como provam as estatísticas, vem crescendo assustadoramente, situação que vem causando profundas preocupações no mundo todo, pelos malefícios comprovados causados pelo uso de drogas, data venia, cria um sério precedente, quando se sabe que a questão não é do cigarro, do "fininho" que é apreendido, pois que o usuário, quando sai para fumar, leva apenas o suficiente para aquele momento, e mais, como está provado, que todo viciado ou usuário habitual, se ainda não é um traficante, por certo que o é em potencial" (TJRS – AC 687013847 – Rel. desig. Moacir Danilo Rodrigues – RJTJRS 125/94).

Em se tratando de objeto de nossa conclusão, entendo ser oportuno mencionar alguns trechos da obra do festejado autor Brayan Akhnaton(22).

" ( ... ) Entendendo que a condição adequada ao usuário de tóxico é o compromisso de se submeter a tratamento terapêutico! Entretanto, como impor tal condição, se o Estado não oferece estabelecimentos ou programas adequados ao tratamento e à recuperação das pessoas que tiverem seu processo suspenso e lhes for imposta esta condição? ( ... ) É reconhecido, unanimemente, que a pena privativa de liberdade, mormente nos casos de toxicômanos, não levará ninguém à cura. Ao contrário, provavelmente agravaria a sua condição. Se já despersonalizado pelo vício, com a prisão, o toxicômano será jogado em perigoso ambiente, envolvendo-se com "professores" do crime, sendo, desta forma, o seu retorno à sociedade, ainda mais traumático.

Assim, no caso exclusivo de usuário dependente de drogas, ao invés de processo e conseqüente prisão, lhe seria oferecida uma "janela", uma alternativa de participação em um programa terapêutico de desintoxicação e, se possível, de integral recuperação.

Cumprindo o programa, recuperado o ex-usuário, os autos do processo, que estariam, até então, sobrestados, seriam arquivados. Todavia, descumpridas as cláusulas estabelecidas, deflagrar-se-à a ação penal. ( ... )

De há muito, o legislador prevê a substituição da pena privativa de liberdade do dependente por tratamento terapêutico. Todavia, como sói acontecer entre nós, a letra da Lei ficou morta, empoeirada nas prateleiras de estantes jurídicas e o poder público nada fez para atender à demanda do que necessitam de recuperação. Não fossem os movimentos de entreajuda e as instituições religiosas, com suas casas de recuperação, o quadro seria ainda mais desolador. ( ... )

Entretanto, no caso especialíssimo dos usuários de drogas ilícitas, de pouco servirá à Sociedade, se esta não lhes oferecer condições de recuperação. ( ... ), continuo a questionar: estará o Estado disposto a trocar a comodidade da sanção penal pelo compromisso da luta em prol da recuperação das vítimas do uso de drogas ilícitas? Ou estar-se-á apenas esvaziando os caminhos dos Cartórios Judiciais sem resultados concretos na modificação da fisionomia da Sociedade, e deixando-se de oportunizar, de forma igualitária, a recuperação dos toxicômanos? ( ... )

As modificações legislativas, para melhorar a situação da sociedade, são sempre desejáveis. Mas exigem um estudo amplo e um debate sério, a partir de premissas verdadeiras, para não provocar debates inúteis e nem semear ilusões na opinião pública."

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Sobre o autor
Luis Fernando Diedrich

economista e acadêmico de Direito na FMU

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIEDRICH, Luis Fernando. Um estudo sobre o art. 16 da Lei de Tóxicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1020. Acesso em: 29 mar. 2024.

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