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Crime continuado: uma interpretação deturpada do garantismo

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4. Questões relevantes conforme disposição de lei.

Por motivos de política criminal, bem como mantendo a congruência à teoria da ficção jurídica, percebe-se ao longo da pesquisa sobre o tema que o conceito dado pela legislação sobre o crime continuado fora a de proporcionar um benefício para o agente que de certa forma não se imaginava cometendo todos os delitos desde sua primeira execução e, que após iniciar a prática e verificar a chance de continuar percebeu a chance de prolongar sua ação consumando as demais condutas.

Porém, sem perceber que diante da redação tal como está na legislação penal, há uma forte tendência a perceber que no intento de contribuir dando oportunidade de aumentar a pena de crimes que não estavam na esfera de intenção do agente, o legislador criou uma oportunidade para que os crimes, mesmo que independentes pudessem autorizar o acréscimo da pena de um único delito mas diante da consumação de várias condutas, encerrando o que se conhece por continuidade delitiva.

Não obstante ao que se prevê para a materialização do crime em continuidade delitiva, ainda se reconhece diante da redação do parágrafo único do citado artigo 71 a oportunidade de se autorizar o aumento da pena para um único crime quando se reconhece nos delitos a presença da violência ou da grave ameaça contra as vítimas, visto que estamos falando de vários crimes. Nesse ponto, a forma de beneficiar o criminoso foi criada no dispositivo mencionado para permitir que se conceda ao agente um tratamento penal menos grave que aquele que seria a ele imposto na falta deste parágrafo único.

A inovação que a reforma do Código Penal (Lei nº 7.209/1984) trouxe para o instituto com a seguinte redação: 

Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras dos artigos 70, parágrafo único, e 75. 

 Dessa nova redação, extrai-se os requisitos para que haja o crime continuado específico, quais sejam:

  • a) que sejam crimes dolosos;

  • b) que sejam vítimas diferentes; e

  • c) que haja violência ou grave ameaça à pessoa.

Assim, poderá, o juiz, analisando os preceitos do art. 59 do Código Penal para a fixação da pena base, aumentar a pena de um dos crimes, no caso de serem crimes idênticos, ou majorar a pena do crime mais grave, quando forem crimes de naturezas distintas, até três vezes o quantum indicado no preceito secundário do delito em questão.

Há, por fim, que serem respeitados dois requisitos finais, contidos no parágrafo único do art. 70 e no art. 75, ambos do Código Penal, que rogam que:

  • a pena, quando da fixação pelo magistrado, não poderá ser superior à que se aplicaria se fossem somadas todas as penas (cúmulo material), e

  • não poderá, a pena privativa de liberdade, ser superior a 40 anos (redação determinada pela Lei n 13.964, de 24 de dezembro de 2019). 

O texto da Exposição de Motivos explica, in verbis

O projeto optou pelo critério que mais adequadamente se opõe ao crescimento da criminalidade profissional, organizada e violenta, cujas ações se repetem contra vítimas diferentes, em condições de tempo, lugar, modos de execução e circunstâncias outras, marcadas por evidente semelhança. 


5. Última digressão acerca da aplicação do Crime Continuado e do Crime Continuado Específico

Conforme demonstrado anteriormente, para a aplicação da continuidade delitiva, deve-se levar em consideração os preceitos do art. 71 e seu parágrafo único do Código Penal, que dizem respeito à continuidade delitiva tradicional (caput) e a continuidade delitiva específica (parágrafo único). Nesse sentido, o art. 71, caput, traz como requisitos:

  • 1) mais de uma ação ou omissão;

  • 2) dois ou mais crimes da mesma espécie;

  • 3) semelhança nas condições de tempo, lugar, maneira de execução, entre outras condições semelhantes; e

  • 4) aplicação da pena de um só dos crimes, se idênticos, ou a mais grave, se diversos, em qualquer caso, aumentado de um sexto a dois terços.

Por outro lado, o parágrafo único do art. 71 requisita, para sua incidência:

  • 1) crimes dolosos;

  • 2) vítimas diferentes;

  • 3) cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa;

  • 4) considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, os motivos e as circunstâncias;

  • 5) será aumentada a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo;

  • 6) observada as limitações quanto ao concurso material benéfico (art. 70) e ao limite máximo da pena de 40 anos (art. 75).

Tendo tais critérios em mente, vale uma digressão acerca da aplicação de um ou de outro para se questionar ou confirmar uma possível justiça na opção de política criminal adotada pelo Código Penal.

Imagine-se dois crimes diferentes:

  1. um agente que comete roubos (art. 157 do Código Penal), crime de pena de reclusão de 4 a 10 anos, e multa, semanalmente, 4 vezes, contra pessoas distintas, mediante ameaça de um mal futuro e incerto (exemplo: se a vítima não entregar a res furtiva, o agente irá causar-lhe um mal maior), de aparelhos celulares; e

  2. um criminoso que, reiteradamente, mediante o mesmo modo de execução, no mesmo lugar, comete o crime de estupro (art. 213 do Código Penal), com pena de reclusão de 6 a 10 anos, contra a mesma vítima, por 4 vezes.

No primeiro caso, ter-se-ia um agente que cometeu 4 crimes iguais, contra vítimas diferentes, com ameaça, atendendo aos preceitos do parágrafo único do art. 71 do Código Penal, o crime continuado especial, que prevê incidência de aumento de pena de até o triplo. Nesse contexto, podemos ter um agente condenado com pena de 4 a 10 anos, aumentada até o triplo.

No segundo caso, haveria um criminoso que cometeu inúmeros crimes hediondos, contra a mesma vítima. O crime em questão, por ser cometido contra a mesma vítima, não se amoldará ao crime continuado específico, podendo, então, caracterizar o crime continuado simples (caput do art. 71 do Código Penal), incidindo pena de 6 a 10 anos, aumentada de um sexto a dois terços.

Levando-se em conta um termo médio na dosimetria da pena, no primeiro caso, de furto em continuidade delitiva específica, haveria uma pena de 7 anos, com aumento de pena de duas vezes, totalizando uma pena de 14 anos. Lado outro, no segundo caso, abrangido pela continuidade delitiva simples, haveria uma pena de 8 anos, aumentada de metade, totalizando 12 anos.

Aqui, vale uma questão sobre o resultado obtido por meio de um termo médio para o cálculo da pena: um estuprador reincidente, que provocou sérios problemas psicológicos em sua vítima, além da hediondez inerente ao estupro, merece uma pena inferior a um agente que cometeu furtos de aparelhos celulares mediante ameaça?

Por último, indaga-se sobre a aplicação da continuidade delitiva simples ou específica em caso de estupro de vulnerável sem violência real. Sabe-se que o legislador consignou que, no crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), a violência é presumida, não havendo que se falar em não incidência do crime por haver consentimento (Súmula 593 do STJ). Assim, não havendo violência real, a violência presumida seria suficiente para um caso concreto se subsumir ao crime continuado específico do parágrafo único do art. 71 do Código Penal?

Nesse caso, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça, negando a incidência específica do crime continuado:

A violência de que trata a continuidade delitiva especial (art. 71, parágrafo único, do CP) é real, sendo inviável aplicar limites mais gravosos do benefício penal da continuidade delitiva com base, exclusivamente, na ficção jurídica de violência do legislador utilizada para criar o tipo penal de estupro de vulnerável, se efetivamente a conjunção carnal ou ato libidinoso executado contra vulnerável foi desprovido de qualquer violência real... (STJ, HC 269104/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe 24/08/2017).

Dessa forma, entende-se que os motivos de política criminal visam ao abrandamento da possível pena ao agente, com intuito de se evitar penas exageradas. No entanto, não há que se falar em comparação entre agentes, ou mesmo entre delitos, sendo que razoabilidade da aplicação das penas será ainda motivo de deliberação futura.


Conclusão

A legislação penal tem uma função primordial de demonstrar para a sociedade que todas as condutas que ferem de forma mais severa os bens jurídicos que tenham maior relevância para uma harmoniosa convivência devem ser considerados típicos e culpáveis para que assim possa se esperar que haja a prevenção de tais condutas.

Após a pesquisa realizada é possível perceber que na legislação penal brasileira, mesmo antes das alterações promovidas pela Lei 7.209 no ano de 1984, já havia a figura do concurso de crimes, que posteriormente às alterações apenas se posicionaram de forma mais independente nos artigos 69, 70 e 71 do Código Penal. Diante da legislação penal vigente o concurso de crimes visa proporcionar ao agente do fato uma proporcionalidade entre os crimes praticados e a pena a ser imposta podendo assim o magistrado fazer uma análise diante do caso concreto para cada situação que lhe é apresentada após realizar o enquadramento típico dos delitos diante das possibilidades dos concursos previstos pela norma.

Após demonstrarmos os conceitos e possibilidades de aplicação das penas que constam na norma penal para cada tipo de concurso de crimes, torna-se perceptível a discrepância legislativa no que diz respeito ao concurso para o crime continuado uma vez que no próprio conceito previsto pelo artigo 71 consta a necessidade de haver no caso concreto uma pluralidade de condutas que ocasionam diversos resultados e diante do entendimento de que essas condutas poderiam não estar na esfera de consciência anterior à prática pelo autor dos delitos, entendeu por bem o legislador que se aplicasse uma sanção de forma mais branda, concluindo que o agente não tenha uma previsibilidade dos delitos antes mesmo de praticá-los.

Divergindo do concurso material de crimes, mas resguardando uma semelhança com este, o método de aplicação da pena foi definido de forma a beneficiar o autor dos delitos quando estiver comprovado a presença dos requisitos para que haja a configuração da continuidade delitiva. Porém percebe-se que o legislador não cuidou de excluir os crimes praticados com violência e grave ameaça a pessoa, deixando a possibilidade, mesmo em casos de que haja a conduta praticada contra vítimas diversas o sistema de exasperação da pena, favorecendo de forma incoerente o agente e colocando em detrimento o direito das vítimas que acabam por se sentir prejudicadas em seu direito de ter a justiça aplicado a devida sanção diante de cada infração cometida.

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Nesse aspecto, após todo o estudo realizado e ficar demonstrado na presente pesquisa, percebe-se a necessidade de alteração da norma penal no que diz respeito a aplicação da pena quando se configura a continuidade delitiva, principalmente para os crimes em que há previsão de violência e grave ameaça à pessoa, pois em razão do concurso de crimes, mesmo diante da pluralidade de crimes diversos e objetivando diversos resultados não há que se entender que a pena possa beneficiar de forma tão simples diante do sistema de exasperação, enfraquecendo dessa forma o princípio da culpabilidade quando há interesse do autor em atingir todos os resultados pretendido, pois não como se provar em matéria processual se os desígnios já eram previsíveis antes mesmo de executar todas as condutas.


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Abstract: The present article proposes to analyze the legal terms that determine the Penal Code on the subject of continuous crime, aiming to deepen its concept and demonstrate its nature, in order to focus the study on clarifying doubts about legislative errors in the writing of the Penal Code of 1940, in its original text and its implications, since, from then on, the concrete cases began to demonstrate divergences and disagreements regarding its applicability in its original concept. Different forms began to emerge, trying to explain divergences for what would be continued crime in the wording of article 71 of the Penal Code, changing the form and understanding of the original letter by the thought of the legislator, which justified criminal policy issues, basing the use of the article for offenses of the same kind when committed in similar circumstances of time, place, and modus operandi. In this context, there are praises and criticisms about the institute of continued crime, which is why a more in-depth analysis of the understanding of what affects the institute becomes relevant, mainly in the historical content and on how the Brazilian legal system considered the continuous crime in its different legislative amendments.

 Keywords: Continuous Crime; Criminal Policy; Penalty Calculation.

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Sobre os autores
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIFFORD, Millene Baldy Sant'Anna Braga ; SILVA, Jairo Alexandre Rodarte. Crime continuado: uma interpretação deturpada do garantismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7137, 15 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102023. Acesso em: 21 nov. 2024.

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