Resumo: propõe-se, o presente artigo, a analisar os termos legais que determinam o Código Penal sobre o tema crime continuado, no intuito de aprofundar seu conceito e demonstrar sua natureza, a fim de concentrar o estudo no esclarecimento de dúvidas quanto aos erros legislativos na redação do Código Penal de 1940, em seu texto original e suas implicações, uma vez que, a partir de então, os casos concretos passaram a demonstrar divergências e desentendimentos quanto a sua aplicabilidade em seu conceito original. Começaram a surgir diferentes formas, intentando explicar divergências para o que seria a continuidade delitiva na redação do artigo 71 do Código Penal, alterando a forma e o entendimento da letra original pelo pensamento do legislador, que justificavam questões de política criminal, fundamentando o uso do artigo para delitos da mesma espécie quando praticados em semelhantes circunstâncias de tempo, local e modus operandi. Há, neste contexto, elogios e críticas acerca do instituto do crime continuado, motivo pelo qual se torna relevante uma análise mais aprofundada sobre o entendimento do que afeta o instituto, principalmente no conteúdo histórico e sobre como o ordenamento jurídico brasileiro considerou a continuidade delitiva em suas diferentes alterações legislativas.
Palavras-chave: Crime Continuado; Política Criminal; Cálculo de Pena.
INTRODUÇÃO
O Direito Penal surgiu para a humanidade como forma de proteger os bens mais relevantes ao ser humano, dando assim uma condição de convivência social de forma mais harmônica legislando sanções pela violação destes. Foram selecionados a partir de um conceito cultural que seriam necessários uma forma de proteção mais rígida de bens tais como a vida, liberdade, patrimônio, família, coletividade e outros que seguem no mesmo contexto. Nesse sentido ao longo dos séculos as normas foram se adaptando e permitindo que a cada nova descoberta outras formas de sanções também se tornariam imprescindíveis para manutenção da paz em sociedade. Mas, em contrapartida, sem fugir do objetivo de se reconhecer que quando se trata de normas que ferem a liberdade do homem, o âmbito penal deve agir somente quando outros ramos do direito não forem suficientes à tutela justa, deixando assim para a fonte legislativa apenas toda forma de sanção que faça com que haja o devido equilíbrio entre a segurança e a manutenção da ordem jurídica social.
Para que seja guiada a interpretação das situações hodiernas e o devido cumprimento das normas em conformidade com os preceitos constitucionais, o direito penal se socorre dos princípios que estão estabelecidos na Carta Magna e que certa forma não deixa que as leis possam extrapolar o que se entende por cumprimento necessário sem que haja uma distância ao que já fora reconhecido como direitos humanos. Dessa forma, pacificamente é possível que se consigam orientar todos os ramos das demais normas apoiando-se na letra da Constituição Federal, principalmente quando se trata do sistema penal que criminaliza visando constituir um formas de equilibrar o ato contrário ao ordenamento jurídico e as sanções que visam reprimir essas condutas. Assim, o direito penal vem ao longo dos anos, atualizando e buscando uma conformidade entre a política criminal e o que se espera se fazendo justiça.
Para que se permita aprofundar o conteúdo contido na legislação penal se faz necessário abordar pontos de referências adotados pelos legisladores que buscam na sociedade o que se torna necessário para que de forma precisa possa se proporcionar uma resposta jurídica adequada diante da violação de bens jurídicos relevantes para o homem. E, dentre os vários temas relevantes abordados na legislação penal vigente encontra-se diante do concurso de crimes o que o legislador denominou por crime continuado. Nesse contexto, se faz relevante fazer uma análise mais profunda do que se entende por esse instituto e como ele vem sendo aplicado nos processos judiciais brasileiros desde o momento em que fora inserido na letra da lei. Importante nesse momento, entender que o Direito Penal traz uma abordagem através da lei sobre o concurso de crimes quando o agente através de uma pluralidade condutas realiza diversos crimes. Quanto ao crime continuado, o objetivo está em pesquisar a sua forma e o método definido no sentido de quantificar as penas a serem aplicadas a partir da definição do que se estabelece como continuidade delitiva de ações.
Para se aprofundar no estudo do tema proposto necessário se faz entender a diversidade de regras determinadas pela legislação penal que determinam a classificação do concurso de crimes, podendo conforme disposição legal estar o caso concreto inserido como concurso material, formal ou crime continuado. Nessa seara é que se torna imprescindível a presente pesquisa no intuito de demonstrar as diferenças na classificação que podem resultar em penas completamente distintas partindo em situações semelhantes de uma mesma cadeia de raciocínio.
Dessa forma, o presente conteúdo pretende evoluir acerca do conceito e possíveis diferenças dos limites jurídicos entre as diversas formas de concurso de crimes na legislação brasileira direcionando como tema central o crime continuado, a fim de que se permita a necessária compreensão dos objetivos do legislador no momento em que se faça necessário à sua aplicação diante de casos concretos.
1. Concursos de crimes historicamente na legislação penal brasileira
Damásio de Jesus (1980, p. 557) descreve o conceito de concurso de crimes nas seguintes palavras: “quando um sujeito, mediante unidade ou pluralidade de ações ou de omissões, pratica dois ou mais delitos, surge o concurso de crimes ou de penas (concursus delictorum)”. Há grande relevância de se pesquisar e analisar os métodos que se aplicam aos institutos em questão, principalmente quanto à aplicação das penalidades, uma vez que apresentam circunstâncias completamente independentes, obedecendo à constitucionalidade da individualização da pena.
É importante a ressalva de que o concurso de crimes não se confunde com o instituto do conflito aparente de normas, segundo leciona o professor Damásio de Jesus (1980, p. 557), quando os distingue, sendo que o conflito aparente de normas se volta à situação em que, aparentemente, mais de uma norma se aplicaria a determinado crime, mas, de fato, somente uma há de ser cabível, ao passo que, no concurso de crimes praticados, há várias condutas típicas envolvidas na ação determinada pelo agente e definidas na mesma lei.
Desde a edição do Código Penal de 1940 o legislador já havia entendido que deveria estar previsto em seus artigos o concurso de crimes, deixando redigido na redação do antigo artigo 51 as três modalidades de concurso, na seguinte redação original:
Concurso material
Art. 51. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
Concurso formal
§ 1º Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, a que se cominam penas privativas de liberdade, impõe-se-lhe a mais grave, ou, se idênticas, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a acção ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos.
Crime continuado
§ 2º Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, impõe-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Após a alteração que o Código Penal sofreu com a Lei 7.209, em 1984, em toda sua Parte Geral, mas não muito diferente da sua redação original, o artigo 51 passou a ser redigido pelos artigos 69, 70 e 71, trazendo então os concursos agora em artigos distintos, e não mais em parágrafos como era feito pela lei anterior, dando assim maior ênfase para cada título em questão.
De acordo com a versão dada pela nova lei, o concurso material de crimes está definido pelo artigo 69, e não muito diferente da redação anterior ainda define:
Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
§1º - Na hipótese deste artigo, quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, não suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a substituição de que trata o art. 44 deste Código.
§2º - Quando forem aplicadas penas restritivas de direitos, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais.
O concurso material ou real ocorre quando o agente, por meio de mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, ou seja, quando há pluralidade de condutas e pluralidade de infrações penais. Como bem diz Rogério Greco: “cuida da hipótese de quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, poderá ser responsabilizado, em um mesmo processo, em virtude de dois ou mais crimes.” (p. 593, 2009)
Já a base legal para a correta definição, constante do Código Penal após a alteração do concurso formal, pode ser constatada no artigo 70:
Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único. Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.
O conceito genérico de concurso formal de crimes se dá quando o agente pratica dois ou mais crimes por meio de apenas uma conduta, ou seja, unidade na conduta e pluralidade de infrações penais. Ainda sobre a possibilidade de haver resultados de crimes distintos em uma mesma conduta, pondera Rogério Sanches que assim acontece no concurso material, o concurso formal também pode ser homogêneo quando se trata de crimes da mesma espécie, ou heterogêneo, quando falamos em crimes que não são da mesma espécie. (CUNHA, p.140)
Já o crime continuado, também conhecido como continuidade delitiva, está previsto no Código Penal de 1940 em seu artigo 71, e ocorre quando o agente pratica uma pluralidade de condutas, ou seja, dois ou mais crimes reconhecidos como sendo delitos da mesma espécie, desde que se comprove que tenham sido praticados em situações de semelhantes condições de tempo, lugar e modo de execução e, por fim, que haja a demonstração de que os delitos guardem uma continuidade na prática delitiva do primeiro para com os demais.
Conforme a redação do artigo:
Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.
Indo além, nas palavras de Rogério Sanches (apud. BITENCOURT, 2020, p. 623):
O concurso pode ocorrer entre crimes de qualquer espécie, comissivos ou omissivos, dolosos ou culposos, consumados ou tentados, simples ou qualificados e ainda entre crimes e contravenções. Logicamente que a pena a ser aplicada a quem pratica mais de um crime não pode ser a mesma aplicável a quem comete um único crime. Por isso, foram previstos critérios especiais de aplicação de pena às diferentes espécies de crimes.
Nota-se que a preocupação da legislação penal brasileira foi de dar um conceito e uma forma de punir de maneira peculiar quando se trata de concurso de conduta delitivas praticadas pelo mesmo agente, no intuito de circunstanciar cada situação de forma peculiar a cada caso concreto.
2. A legislação penal brasileira e a aplicação das penas nos Concursos de Crimes
Em um primeiro momento, pareceria óbvio entender que, se uma pessoa comete mais de um crime, deveria ser penalizado com a pena de ambos os crimes. De fato, há ocasiões em que essa soma das penas respectivas realmente acontece, no entanto, a depender da situação fática, o caminho pode ser diverso, como demonstra a própria redação dos artigos supracitados.
Nessa seara, conhece-se no Direito Penal brasileiro, algumas formas de auxiliar o magistrado na dosimetria da pena, nas quais há que se levar em consideração principalmente o sistema do cúmulo material e o sistema da exasperação da pena. No que diz respeito à forma do cálculo dessas penas, diante da ocorrência de um caso concreto, depende-se do resultado obtido e das condutas praticadas, pois podem resultar nos diferentes sistemas previstos para os concursos material, formal e a continuidade delitiva.
2.1. Cúmulo Material no sistema de dosimetria da pena
Conforme a redação do artigo 69, quando se trata de concurso material de crimes, o magistrado deverá optar pelo sistema de cúmulo material, que significa individualizar as penas dos crimes praticados e, ao final, somar todas elas, chegando assim a um único resultado. É o sistema no qual as penas de cada um dos crimes praticados pelo agente, em concurso, deverão ser somadas, conforme cita os ensinamentos de Rogério Sanches Cunha (2020, p. 624):
Por intermédio deste sistema, o juiz primeiro individualiza a pena de cada um dos crimes praticados pelo agente, somando todas no final. Adotamos o cúmulo material no concurso material (art. 69, CP), no concurso formal impróprio (art. 70, caput, 2ª parte, CP) e no concurso das penas de multa (art. 72, CP).
Nesse sentido, o agente deve responder pelo somatório das penas de todos os delitos praticados. É o que acontece, por exemplo, quando um agente furta uma moto para roubar uma joalheria. Igualmente, serão somadas as penas de furto e corrupção de menores, caso o agente corrompa um adolescente a praticar um furto, se ambos os resultados eram desejados e sabidos, fato que depende diretamente da cognoscibilidade acerca da idade do menor. Por fim, também serão somadas as penas em uma situação em que duas condutas resultem em condenações a penas de multa.
2.2. Sistema da Exasperação
Segundo o dicionário, exasperar significa exacerbar, tornar mais áspero, aumentar o que é penoso. Exasperação, no vernáculo jurídico, é o ato de exasperar, majorar a pena. Assim, pode-se dizer que o sistema da exasperação é aquele que, por determinado motivo, culmina no aumento da pena a ser cumprida pelo apenado.
Em relação ao sistema da exasperação da pena, somente se aplica a pena de um dos crimes praticados se os delitos forem os mesmos, ou do mais grave, se se tratar de crimes diversos. Neste, o magistrado deve elevar, na pena definida como principal, uma causa de aumento já definida no próprio artigo 70 conforme a quantidade de crimes praticados pelo agente diante da situação fática.
Segundo Cunha (2020, p. 624):
Neste, o juiz aplica a pena mais grave dentre as cominadas para os vários crimes praticados pelo agente. Em seguida, majora essa pena de um quantum anunciado em lei. Adotamos o sistema da exasperação no concurso formal próprio (art. 70, caput, 1ª parte, do CP) e continuidade delitiva (art. 71, CP).
Dessa forma, a pena dos crimes imputados a um agente será exasperada, ou seja, aumentada, majorada conforme a fração determinada pela quantidade de resultados obtidos a partir de sua ação. Imagine-se o caso de um crime de corrupção de menores, em que não era conhecida a menoridade do segundo agente, e o primeiro supunha, pelas condições físicas, ser aquele maior de idade e, então, procede esse menor de idade à prática de um furto. Neste caso, o menor de idade tinha 17 anos, mas aparentava ser adulto e mentiu a sua idade.
Em casos semelhantes ao tratado acima, será considerada a pluralidade de resultados, mas diante do desconhecimento do agente acerca da menoridade do autor, trata-se de uma situação em que somente um dos resultados era conhecido e desejado, podendo, dessa forma, o magistrado considerar as penas pelo sistema de exasperação (concurso formal próprio).
A mesma situação também é possível diante da redação do artigo 71, quando se trata de crimes em continuidade delitiva, devendo nessas circunstâncias o magistrado usar as frações de acordo com a quantidade de resultados obtidos pelo agente na prática da infração (ou das infrações). Com a diferença do conceito de concurso formal perfeito, uma vez que, quando se tratar de continuidade delitiva, há que se entender que todos os crimes necessariamente tenham que ser da mesma espécie.
3. Espécies de Concurso no Código Penal de 1940
Conforme já mencionado, diante das alterações na Parte Geral do Código Penal de 1940 com a lei 7.209 em 1984, hoje é possível entender que há três espécies principais de concurso de crimes, que serão apresentadas a seguir, definindo as suas principais diferenças, para que, ao final, possa-se traçar uma linha de raciocínio lógico quando se trata de continuidade delitiva.
3.1 Concurso Material de crimes
Como já mencionado anteriormente, pela atual redação do artigo 69 do Código Penal, necessário se faz a presença dos seguintes requisitos para que se tipifique em concurso material, tais como a pluralidade de condutas, já que não basta que tenha havido somente uma conduta, uma vez que tal circunstância mudaria a classificação do instituto em comento; e a pluralidade de crimes, sendo necessário que, das condutas, extraia-se mais de um crime.
O concurso material se divide em duas subespécies, quais sejam:
concurso material homogêneo, quando os resultados são da mesma espécie, como quando um agente comete dois roubos;
concurso material heterogêneo, quando os crimes resultantes são de espécies diferentes, a exemplo de quando um agente rouba uma vítima e, na sequência, comete o crime de extorsão, exigindo a senha de seu cartão de crédito.
Aos crimes que se enquadrarem no concurso material, como já demonstrado, as penas serão aplicadas de forma cumulativa e, segundo o sistema trifásico de dosimetria, as cominações serão calculadas individualmente para que, ao final da individualização, o magistrado possa encontrar a pena definitiva.
Como previsto no tipo penal, havendo incidência de uma pena de reclusão e uma de detenção, primeiro será executada a pena de reclusão, segundo preceitua Cleber Masson (2015. p. 847). No caso de não cabimento de suspensão condicional da pena a um dos delitos ou substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, ao outro crime também não será cabível nenhum dos institutos, mesmo que, isoladamente, coubesse. Isso se dá pela impossibilidade de o condenado cumprir uma pena privativa de liberdade e, ao mesmo tempo, prestar serviços à comunidade, por exemplo (PROCÓPIO, 2022, p. 8).
Havendo duas penas restritivas de direitos, desde que compatíveis, podem ser cumpridas ao mesmo tempo, como, por exemplo, no cumprimento de uma pena de restrição a frequentar determinados lugares e pena pecuniária. Sendo incompatíveis, devem ser cumpridas sucessivamente, como cita o artigo 76, preceituando que “No concurso de infrações, executar-se-á primeiramente a pena mais grave.”
No mesmo sentido já decidiu o STJ para a averiguação da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos:
3. No exame do cumprimento dos requisitos para a concessão do benefício da substituição da prisão por penas alternativas, em casos de concurso material de crimes, devem as reprimendas ser consideradas em conjunto. Precedentes. [...] (STJ, 425038/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 01/06/2018).
Lado outro, importa discorrer acerca do princípio da consunção. Nesse sentido, válidos são os ensinamentos do professor Cleber Masson (2015. p. 201):
De acordo com o princípio da consunção, ou da absorção, o fato mais amplo e grave consome, absorve os demais fatos menos amplos e graves, os quais atuam como meio normal de preparação ou execução daquele, ou ainda como seu mero exaurimento.
O ponto relevante dessa análise é identificar que, na hipótese de incidir o princípio da consunção em um caso concreto, não haverá que se falar em concurso material de crimes. Imagine-se, por exemplo, o concurso dos crimes de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 12 da Lei nº10.826/03) e tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº11.343/06). Na hipótese, o crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido teria sido um crime meio para se atingir o crime fim (tráfico de drogas). Assim, é possível que, a partir da incidência do princípio da consunção, seja punido o agente somente pelo crime de tráfico de drogas.
3.2 Concurso Formal
Essa previsão legal atende a motivos de política criminal, em que a pena será determinada de forma diferente do modelo citado anteriormente quando se considera os crimes individualmente. A partir do tipo legal mencionado no artigo 70, pode-se dizer que o concurso formal depende de dois requisitos preponderantes, conforme os ensinamentos de Cleber Masson (2015, p. 848):
ocorrência de uma única conduta;
resultar em mais de um crime.
Doutrinariamente, é necessário esclarecer que o concurso formal pode ser classificado em duas subespécies, que podem ser encontradas na redação do artigo que já menciona duas formas diferentes de se analisar a conduta do agente, especialmente no intuito de esclarecer que, diante de tais condutas, deverá o magistrado verificar os elementos que circunstanciam o crime em comento.
Além de ser necessário verificar o elemento dolo na conduta do agente, é preciso também que se contextualize se se trata de crimes homogêneos ou heterogêneos para, posteriormente, classificá-los em perfeitos ou imperfeitos. “O art. 70 divide-se em duas partes” (NUCCI, 2020, p.683), sendo nesse caso duas espécies diferentes, que podem ser definidas conforme doutrinador supramencionado em concurso formal perfeito ou próprio e imperfeito ou impróprio.
Dada a redação do artigo em análise, nota-se que a configuração do concurso formal decorre sempre de crimes resultantes de uma ação única, mas que pode desencadear em duas formas distintas, e deverá estabelecer se houve desígnios autônomos ou desígnio em somente um dos resultados. E será a partir daí que se deve estabelecer o que se classifica nas subespécies citadas acima.
3.2.1. Concurso Formal Próprio ou Perfeito
O concurso formal próprio, perfeito ou normal, ocorre quando o agente atinge os resultados sem agir com desígnios autônomos, ou seja, não eram intentados todos os resultados de forma independente, como mostra a primeira parte do caput do artigo em questão. Pode ser facilmente retratado se, na ocasião, um agente, dirigindo com o intuito de atropelar seu desafeto, acaba por atingi-lo, além de outras duas vítimas (concurso formal próprio).
Nesse caso, a pena a ser aplicada obedecerá ao sistema da exasperação, majorando-se na fração de um sexto até metade. O quantum do aumento da pena será avaliado no caso concreto, de acordo com o número de delitos cometidos, na terceira fase da dosimetria da pena.
Ressalta-se que as classificações do concurso formal não são excludentes, razão pela qual o concurso formal próprio poderá ser homogêneo (crimes de mesma espécie) ou heterogêneo (crimes de espécies diferentes). (JUNQUEIRA, pg. 612)
Interpretando o parágrafo único do art. 70 do Código Penal, há ocasiões em que a exasperação da pena relativa ao crime resultante mais grave, hipótese de concurso formal próprio heterogêneo, pode prejudicar o agente. Eventualmente, pode acontecer no caso de uma única conduta de um agente resultar em um crime de pena elevada e outro de pena ínfima. Assim, somar metade, por exemplo, ao crime mais grave, resultaria em um quantum maior que o próprio somatório das penas, o que vai contra o motivo da criação do instituto, que é justamente evitar uma pena muito elevada àquele que cometeu uma pluralidade de delitos mediante uma conduta.
Portanto, em casos como este, cabe ao magistrado optar pelo cúmulo material benéfico, que preconiza, justamente, que “não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código” (Art. 70, parágrafo único, Código Penal).
3.2.2. Concurso Formal Impróprio
Este instituto é assim chamado na ocasião em que os resultados obtidos da conduta do agente eram almejados, desejados. Vê-se que tal ocasião é exclusivamente aplicada às situações de crimes dolosos, na medida em que, se há desígnio para cada resultado, um deles não será culposo. Nesse sentido é o magistério do professor Cleber Masson:
Imperfeito, ou impróprio, é a modalidade de concurso formal que se verifica quando a conduta dolosa do agente e os crimes concorrentes derivam de desígnios autônomos. Portanto, envolve crimes dolosos, qualquer que seja sua espécie (dolo direto ou dolo eventual).
Assim, enquadra-se na modalidade imprópria tanto o dolo direto como o dolo eventual, como na hipótese de dois homicídios, sendo um doloso e outro com dolo eventual.
O cálculo da pena no concurso formal impróprio é feito pelo sistema do cúmulo material, ou seja, as penas dos delitos serão somadas, diferentemente de como a pena é calculada quando em concurso formal próprio, que se dá pelo sistema da exasperação da pena.
Cumpre registrar o arremate do assunto, aos olhos de Cezar Roberto Bitencourt (2020):
Por isso, enquanto no concurso formal próprio adotou-se o sistema de exasperação da pena, pela unidade de desígnios, no concurso formal impróprio aplica-se o sistema do cúmulo material, como se fosse concurso material, diante da diversidade de intuitos do agente (art. 70, §2º). Enfim, o que caracteriza o crime formal é a unidade de conduta, mas o que justifica o tratamento penal mais brando é a unidade do elemento subjetivo que impulsiona a ação.
O ponto que efetivamente distingue os concursos formais próprio e impróprio vem do elemento subjetivo do tipo, qual seja, a existência ou não de desígnios autônomos, conforme já assentou em julgado o Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Regimental no AREsp 1131742/BA, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura (DJe 04/10/2017).
3.3. Crime Continuado
Importante se faz entender primeiramente em que momento na história da evolução da legislação penal que se orientou pela necessidade de legislar a matéria que daria origem ao que hoje entendemos pela continuidade delitiva e seus principais aspectos sejam positivos ou negativos.
3.3.1. Origem
A evolução histórica do crime continuado passa por diferentes fases, quais sejam: Direito Romano, Direito Germânico, Direito Canônico, Glosa e Práticos Italianos. No Direito Romano, o estudo do crime continuado foi questão controvertida, que, para Martins (2012), citando Cavaleiro da Ferreira (1992):
[...] as doutrinas e legislações modernas não foram buscar ao direito romano o conceito de crime continuado, embora se defenda que nesse direito afloravam algumas questões que podiam denunciar uma ante abordagem do conceito (p.542).
Um fator que poderia levar à conclusão pela existência do crime continuado em Roma seria a existência da expressão continuatio, mas, na verdade, a jurisprudência romana a utilizava de forma aproximada à permanência, e não à continuidade.
Dessa forma, entendendo-se mais a fundo os usos e costumes do Direito Romano, a conclusão à qual se pôde chegar é a de que as hipóteses de semelhança com o crime continuado “seriam na verdade respeitantes ao crime permanente, `actio furti (...) e à determinação do valor do escravo furtado, para fins de cálculo da pena a aplicar (MARTINS, 2012, p. 6).
No tocante ao Direito Germânico, desenvolveu-se a ideia do concurso de crimes, ao largo do que a regra era a da absorção para crimes mais graves e cumulação para aqueles de penas mais leves. Já durante o reconhecimento do Direito Canônico, se prezava pelo cúmulo material das penas, não tendo sido tratado o instituto tal como conhecemos hoje por crime continuado.
A aproximação que autores glosadores fazem ao crime continuado se confunde, segundo reconhecido pela doutrina, com o que se entende por crime permanente. Dessa feita, na verdade, vale a ressalva sobre a proximidade do que foi desenvolvido pelos italianos, em que: “BÁRTOLO, nas suas anotações aos fragmentos do Digesto revela uma preocupação para instituir a doutrina de que a punição de vários delitos tendentes a um mesmo fim, seria a que correspondia ao último” (MARTINS, 2012, p.7).
A teoria do crime continuado foi criada entre os séculos XV e XVI pelos práticos italianos, e seu fundamento intentava em se evitar as consequências da pena de morte. Como ensina Fernando Capez (2018):
Lembra Bettiol que suas origens políticas se encontraram indubitavelmente um favor rei, o que levou os juristas medievais a considerar como furto único uma pluralidade de furtos, para assim evitar as consequências draconianas que de outra forma adviriam, uma vez que se aplicava a pena de morte contra quem cometesse três furtos, ainda que de pequeno valor.
Sob o prisma do professor Cezar Roberto Bitencourt (2020):
O crime continuado deve sua formulação aos glosadores (1100 a 1250) e pós-glosadores (1250 a 1450) e teve suas bases lançadas efetivamente no século XIV, com a finalidade de permitir que os autores do terceiro furto pudessem escapar da pena de morte. Os principais pós-glosadores, Jacobo de Belvisio, seu discípulo Bartolo de Sassoferrato e o discípulo deste, Baldo Ubaldis, foram não só os criadores do instituto crime continuado, como também lançaram as bases político-criminais do novo instituto, que, posteriormente, foi sistematizado pelos práticos italianos dos séculos XVI e XVII.
Apesar de não se conhecer com precisão a origem do instituto, é forçoso entender que tal classificação é fruto de política criminal, a fim de se dar maior proporcionalidade às penas impostas, bem como em respeito ao princípio da humanização das penas sob o prisma de que há a necessidade de se preservar os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade entre o fato praticado e a consequente sanção a ser atribuída.
Segundo observação na doutrina de Quintela (2014), (apud NUCCI, 2012, p.489) aponta como primeiro local em que se encontrou previsão legislação de regra similar a continuidade, a cidade de Toscana, pela lei de 30 de agosto de 1795 e pela circular de 29 de fevereiro de 1821. Já no Brasil, sua disciplina constou, com ineditismo, no Decreto nº 847, de outubro de 1890.
É possível entender que essa modalidade de classificação de um agente criminoso se caracteriza como uma ficção jurídica, uma vez que, de fato, o agente terá praticado vários crimes, mas, por razões de política criminal, será considerado que ele praticou um único delito, majorado, para o fim da aplicação da pena. Nesse sentido é o magistério de Cezar Roberto Bitencourt:
Teoria da ficção jurídica – Essa teoria foi inicialmente defendida por Carrara. Admite que a unidade delitiva é uma criação da lei, pois na realidade existem vários delitos. E, se efetivamente se tratasse de crime único, a pena deveria ser a mesma cominada para um só dos crimes concorrentes.
[...]
Nosso Código Penal adotou a teoria da ficção jurídica, para fins exclusivos de aplicação da pena, visando atenuar a sanção penal, atento à política criminal que inspirou o instituto.
Maria Stella Villela Souto (1957, p. 118) mostra um exemplo de como se via o crime continuado e seus requisitos, ainda na década dos anos 1950:
Ex.: A, criado da casa de B, furta diariamente de seu cofre Cr$1.000,00.
Requisitos do crime continuado:
1º) Pluralidade de ação ou omissão.
2º) Pluralidade de crimes resultantes da mesma espécie.
3º) Continuação (que os subseqüentes sejam continuação do primeiro).
Em 1980, Damásio de Jesus (1980, p. 563-4) já apontava duas teorias acerca da conceituação do crime continuado, tratando da teoria objetivo-subjetiva e da teoria puramente objetiva. Segundo o professor na teoria objetivo-subjetiva, “o crime continuado exige, para a sua identificação, além de determinados elementos de ordem objetiva, outro de índole subjetiva, que é expresso de modos diferentes: unidade de dolo, unidade de resolução, unidade de desígnio”, mas conforme dispõe, na teoria puramente objetiva, “dispensa a unidade de ideação e deduz o conceito de condutas continuadas dos elementos exteriores da homogeneidade.”
O autor ainda afirma que devem estar presentes os seguintes requisitos para que possa se entender que há efetivamente crime continuado: a pluralidade de condutas e a pluralidade de crimes da mesma espécie, desde que se perceba a continuação entre eles, tendo em vista as circunstâncias objetivas.
Uma orientação importante à interpretação do crime continuado também foi dada no ponto 59 (cinquenta e nove) da Exposição de Motivos do Código Penal, ao mencionar que “O critério da teoria puramente objetiva não se revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva”. Nesse aspecto forçoso entender que a opção do legislador foi a adoção do critério da teoria puramente objetiva.
3.3.2 O Crime Continuado e Crime Permanente
Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt: “Permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado, sequestro etc.)” (BITENCOURT, 2020).
A partir deste didático excerto acima, conclui-se que o crime permanente é um crime que não se consuma em um único momento, haja vista que o crime estará acontecendo enquanto não cessar a conduta delituosa. Também não se confunde o crime permanente com o crime instantâneo de efeitos permanentes, em que a permanência do resultado não depende de uma continuidade da ação delitiva, como ocorre no homicídio ou no furto.
Ainda, é forçoso que a permanência não depende da quantidade de ações do agente, tampouco de quanto tempo durará os efeitos do delito, senão o tempo que dura a fase de consumação da ação do criminoso.
Diante disso, importa diferenciar os institutos do crime continuado e do crime permanente, que, desde os primeiros indícios do crime continuado, já provocavam confusão na classificação, como no Direito Romano.
Como elucida Ana Rita Baptista Martins (2012), “Os elementos apontados para realizar tal diferenciação são vários: o tempo; o número de ações; o número de violações da lei; o resultado”. Enquanto no crime permanente há uma única ação que se protrai no tempo, no crime continuado há várias ações, em diferentes momentos. Para o crime permanente, há uma violação à lei, como no crime de cárcere privado, que, por si só, é um crime permanente, enquanto na continuidade delitiva há várias violações e, consequentemente, vários resultados.
3.3.3 O Crime Continuado e Crime Habitual
Ambos os institutos do Direito Penal pressupõem multiplicidade de ações, mas o crime habitual “fundamenta-se então na reiteração da conduta contrária à lei, que indicia pelo seu carácter persistente e reiterado uma tendência de personalidade ou vício; à habitualidade atribui-se na maioria das vezes, uma especial maldade na prática criminosa” (MARTINS, 2012).
O que principalmente difere o crime continuado do habitual são as consequências, na medida em que o crime continuado tende a ser penalizado com determinada atenuação no quantum, enquanto o crime habitual pode gerar uma circunstância agravante.