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Algumas linhas introdutórias ao estudo do Direito Processual

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02/08/2007 às 00:00
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7. O direito material processual

CHIOVENDA adverte sobre a existência de direitos processuais substanciais e formais. [35] E realmente é equivocada a idéia de que as leis processuais se referem, sempre e exclusivamente, a aspectos inerentes ao processo judicial.

Leciona DINAMARCO que, não obstante as características peculiares que distinguem os preceitos processuais e materiais, alguns institutos são responsáveis por situações que se configuram fora do processo e atingem diretamente a vida das pessoas em sociedade, seja nas suas relações com outros indivíduos, seja, ainda, nos relacionamentos com os bens que lhes são úteis ou desejados, sendo que, só num segundo momento, serão eles objeto das técnicas do processo. Exemplos dessas situações são os institutos da ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada e responsabilidade patrimonial. [36]

Conquanto apenas no processo tais institutos apareçam de modo explícito, de algum modo eles dizem também respeito à vida dos sujeitos, de suas relações intersubjetivas e daquelas que estabelecem com os bens. [37] São verdadeiros pontos de interseção entre os planos normativos substancial e processual. [38]


8. O direito processual e a dicotomia entre direito público e direito privado

Sabidamente a divisão entre direito público e direito privado remonta do direito romano. Contudo, critérios diversos foram e são utilizados com o intento de explicar adequadamente essa cisão, e isso, na verdade, sem muito êxito, na medida em que todos eles estão sujeitos a críticas. [39]

De qualquer sorte, não há como obstar que o direito é um todo uno e indivisível, um sistema composto de preceitos jurídicos entrelaçados, direta e indiretamente, entre si, cuja unidade é garantida por enunciados legais superiores devidamente encadeados na Constituição Federal (um verdadeiro sistema). Todo esse conjunto normativo é direcionado, mediata ou imediatamente, à regência da sociedade, contribuindo, de alguma forma, para o seu desenvolvimento, servindo àqueles que a ela integram.

E, diante dessa especial perspectiva, o direito, não importando o ramo de conhecimento ao qual se refira, sempre deterá natureza pública, já que endereçado ao povo, e ao próprio Estado, e tendo por alvo o maior dos ideais coletivos que é o bem-estar social.

Esse raciocínio, direcionado a quebrar a dicotomia entre direito público e privado, amealhando todos os ramos do direito num só e único compartimento, por si só se mostra suficientemente capaz de demonstrar a natureza pública, não só do direito processual, mas do direito globalmente considerado. E essa quebra nasce justamente da adoção de um outro critério, ou de um novo olhar, talvez mais adequado aos moldes do Estado Democrático de Direito, de maneira a evidenciar que as divergências relacionadas a essa divisão do direito em dois grandes ramos (público e privado), ou mesmo voltadas à própria negação dessa divisão, são apenas frutos de desacordos relacionados a critérios adotados – é um problema de critérios. [40]

8.1. A aceitação pedagógica da dicotomia entre direito público e direito privado, e o enquadramento do direito processual como ramo do direito público

Em se estando atento às observações feitas no tópico anterior, é certamente aceitável, especialmente para fins pedagógicos, a aplicação de critérios outros, esses capazes de sustentar a cisão entre direito público e privado.

Partindo-se do pressuposto de que o enunciado legal (o texto legal), numa acepção ampla, objetiva-se, direta ou indiretamente, a regular as relações intersubjetivas ocorrentes entre aqueles que integram a sociedade, um dos critérios mais utilizados pela doutrina é aquele que foca a tal diferenciação entre direito público e privado nos sujeitos destinatários do comando normativo.

Fala-se, então, em preceitos de direito privado quando os sujeitos envolvidos na relação jurídica forem particulares, sem que haja qualquer envolvimento com o Poder Público. Já os preceitos de direito público seriam aquelas outras que regem as relações que envolvem, de alguma maneira, a participação do próprio Estado.

Também por esse raciocínio, e admitindo-se a dicotomia, emerge-se a conclusão de que os preceitos processuais integram o ramo de direito público, especialmente pelo seu escopo magno de gerir a atividade jurisdicional – afinal, estar-se-á falando de uma atividade pública. São preceitos que disciplinam as relações travadas entre o Estado-juiz e as pessoas – muitas vezes, com a participação do próprio Estado como parte da relação jurídica processual –, sempre que a máquina judiciária é estimulada a atuar. É a jurisdição uma das funções do Estado, emanação do seu poder soberano, e o regramento das formas e institutos necessários a atingir o seu resultado (tutela jurisdicional) não poderia situar-se em outro campo.

De mais a mais, e ainda aceitando-se a divisão pedagógica do direito em ramos diversos, o caráter público do direito processual civil é, com certa tranqüilidade, assimilado quando os olhares se voltam ao seu próprio objetivo magno, a saber, a pacificação social. Os ideais coletivos e o próprio bem-estar social apenas podem ser garantidos quando a violência é tida como um mal a ser evitado e combatido, de modo que os conflitos de interesses sejam solucionados de maneira não-violenta e justa. Assim, o conjunto de enunciados legais (processuais) que regulam o exercício jurisdicional tem evidente cunho público, viabilizando a manutenção dos valores que movem os interesses coletivos e possibilitando a mantença da ordem social. Aliás, as próprias preocupações que atormentam o processualista da atualidade, encontram-se, todas elas, jungidas a ideais coletivos – e, portanto, públicos: (a) busca de uma tutela jurisdicional de resultados; (b) facilitação ao acesso à justiça; (c) celeridade sem prejuízo da segurança; (d) criação de procedimentos diferenciados a facilitar, em situações específicas, a concessão da tutela jurisdicional; (e) o tratamento isonômico das partes envolvidas na relação processual, conferindo, a alguns grupos de indivíduos considerados vulneráveis, determinadas benesses processuais (consumidores e trabalhadores, por exemplo).


9. Conclusões

De tudo que aqui foi dito, algumas conclusões podem ser devidamente traçadas:

1. Os homens necessitam de leis que ditem sua convivência mútua, e os conduzam à prática de condutas compatíveis à manutenção da ordem e paz social. A essas leis, destinadas a imposição de diretrizes que regulamentem suas relações intersubjetivas e os relacionamentos deles com os diversos bens da vida presentes no mundo, dá-se o rótulo de direito material ou substancial.

2. Quando a vontade concreta da lei deveria cumprir-se mediante o voluntário adimplemento da obrigação, mas assim não se sucede, substituir-se-lhe-á a realização mediante a prestação jurisdicional instrumentalizada pelo processo. Daí a necessidade de um outro conjunto de preceitos normativos, o qual se destina a dirigir a atividade jurisdicional e a possibilitar uma tutela pautada na efetividade de resultados, construída mediante a atuação participativa dos juízes e das partes, tudo em conformidade com um modelo adequado aos pilares constitucionais que sustentam o Estado Democrático de Direito (devido processo legal). A esse conjunto especial de enunciados legais, dá-se o nome de direito processual.

3. O direito processual atua: (a) criando e indicando os órgãos responsáveis pela resolução das variadas naturezas de conflitos intersubjetivos (jurisdição contenciosa) e pela satisfação de pretensões (jurisdição voluntária) (organização judiciária e competência); (b) definindo procedimentos a serem adotados pelas partes (e terceiros), e seguidos pelo juiz, para se atingir uma tutela jurisdicional efetiva e justa; (c) estabelecendo contornos para a instauração da atividade jurisdicional e para a atuação, no processo, das partes, do juiz, de terceiros, dos auxiliares da justiça e de eventuais colaboradores.

4. É o direito processual é eminentemente formal porque define e impõe formas a serem observadas nos atos de exercício da jurisdição, as quais representam garantia de segurança às partes, [41] um compromisso com o próprio Estado Democrático de Direito. Nesse rumo, a forma é "a expressão externa do ato jurídico e revela-se no modo de sua realização, no lugar em que deve ser realizado e nos limites de tempo para realizar-se." [42]

5. Mas forma não corresponde à idéia de formalismo. Advogar o formalismo é prender-se exageradamente à forma, conferindo-lhe uma finalidade superior aos próprios resultados para os quais foi ela desenhada. Luta-se, hoje, justamente para alcançar a deformalização dos procedimentos judiciais, de modo a se combater o formalismo, a extrema deturpação das formas. [43]

6. É o direito processual representado por um conjunto de enunciados normativos instrumentais. Isso apenas significa que esses enunciados regram o exercício jurisdicional como um todo, possibilitando uma atividade em conformidade com os moldes constitucionais (devido processo legal), permitindo a participação das partes na construção da decisão judicial, regrando os poderes do juiz de maneira a evitar abusos de poder, exigindo a participação do advogado como profissional indispensável à consecução da justiça, regendo a atuação do Ministério Público e estabelecendo a organização judiciária, competências e procedimentos a serem respeitados pelo juiz, pelas partes, auxiliares da justiça e eventuais colaboradores – por tudo isso, o direito processual possui importante caráter instrumental, garantindo o respeito ao ordenamento jurídico e a manutenção do bem-estar social.

7. Atualmente elegeu-se, por influência alemã, de direito processual o conjunto de princípios e regras instrumentais voltadas a reger o exercício da jurisdição e o funcionamento do processo. Tal nomenclatura é utilizada em substituição de outra já ultrapassada – direito judiciário.

8. Embora seja o direito processual uno, por exigências pragmáticas é comum afirmar-se que seus principais ramos são os direitos processual civil e processual penal.

9. O direito processual penal, regido pelo Código de Processo Penal e algumas outras leis, regulamenta a atuação da jurisdição penal, praticada em face de lides penais, caracterizadas por pretensões punitivas ou medidas preventivas de ordem penal. Já o direito processual civil rege a jurisdição civil, exercida em face de lides e pretensões de natureza não-penais, envolvendo situações de direito privado (civil, empresarial) e de direito público (constitucional, tributário, administrativo), e é regulamentado pelo Código de Processo Civil e diversas leis esparsas. [44]

10. Ainda é possível identificar sub-espécies do direito processual, como o direito processual do trabalho, o direito processual eleitoral, o direito processual penal militar, que correspondem à atuação das jurisdições especiais do trabalho, eleitoral e penal militar. [45] Essas subespécies de direitos processuais encontram no direito processual civil ou no direito processual penal, preceitos de aplicação subsidiária, sendo, assim, consideradas comuns em relação as outras, [46] justamente por regerem o exercício jurisdicional de maneira coadjuvante, sempre contribuindo ou suprindo lacunas, melhorando a prestação jurisdicional, sem, contudo, contrariar os enunciados normativos especiais.

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11. A natureza processual de uma lei não se deduz do lugar em que ela se encontra inserida; o que realmente importa é a análise de seu objeto. Isso significa que nem todos os preceitos processuais encontram-se inseridos nos Códigos de Processo.

12. Não obstante as características peculiares que distinguem os preceitos processuais e materiais, alguns institutos são responsáveis por situações que se configuram fora do processo e atingem diretamente a vida das pessoas em sociedade, seja nas suas relações com outros indivíduos, seja, ainda, nos relacionamentos com os bens que lhes são úteis ou desejados, sendo que, só num segundo momento, serão eles objeto das técnicas do processo – são os denominados direitos materiais processuais. [47] Exemplos dessas situações são os institutos da ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada e responsabilidade patrimonial.

13. O direito, não importando o ramo de conhecimento ao qual se refira, sempre deterá natureza pública, já que endereçado ao povo, e ao próprio Estado, e tendo por alvo o maior dos ideais coletivos que é o bem-estar social. De todo modo, é certamente aceitável, especialmente para fins pedagógicos, o uso de critérios capazes de abalizar a cisão do direito entre público e privado. E admitindo-se a dicotomia, é de se concluir que os preceitos processuais integram o ramo de direito público, especialmente pelo seu escopo magno de gerir a atividade jurisdicional – afinal, estar-se-á falando de uma atividade pública. São preceitos que disciplinam as relações travadas entre o Estado-juiz e as pessoas – muitas vezes, com a participação do próprio Estado como parte da relação jurídica processual –, sempre que a máquina judiciária é estimulada a atuar. É a jurisdição uma das funções do Estado, emanação do seu poder soberano, e o regramento das formas e institutos necessários a atingir o seu resultado (tutela jurisdicional) não poderia situar-se em outro campo.


10. Referências bibliográficas

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ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. 2ª. ed. São Paulo : Saraiva, 2003.

ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 21ª. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 2005.

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CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. Vol. 1. 10ª. ed. Rio de Janeiro : Lúmen Juris, 2004.

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 (trad. da 2. ed. alemã, 1983).

CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Vol. I. São Paulo : Classic Book Editora e Distribuidora de livros ltda., 2000.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Vol. 3.º. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas : Bookseller Editora e Distribuidora, 1998.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. I., São Paulo : Malheiros Editores, 2005.

FILHO, Vicente Greco. Direito processual civil brasileiro. Vol. 1.º. 17ª. ed. São Paulo : Saraiva, 2003.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo : Malheiros Editores, 2002.

LOPES, João Batista. Curso de direito processual civil. Parte geral. São Paulo : Editora Atlas, 2005.

MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no estado constitucional. Disponível em: http://www.professormarinoni.com.br/. Acessado em: 05/10/2005.

MONTEIRO, João. Teoria do processo civil. 6ª. ed. Rio de Janeiro : Editor Borsoi, 1956.

PAULA, Adriano Perácio de. Direito processual do consumidor. Do processo civil nas relações de consumo. Belo Horizonte : Del Rey, 2002.

RESENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de direito processual civil. Vol. 1º. 4ª. ed. São Paulo : Saraiva, 1954.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. Vol. 1º. 23ª. ed. São Paulo : Saraiva, 2004.

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Sobre o autor
Lúcio Delfino

advogado e consultor jurídico em Uberaba (MG), doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UNIUBE/MG, membro do Conselho Fiscal (suplente) do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, diretor da Revista Brasileira de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFINO, Lúcio. Algumas linhas introdutórias ao estudo do Direito Processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1492, 2 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10207. Acesso em: 19 dez. 2024.

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