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Fantasia e jurisdição:

a recepção das normas jurídicas no Brasil pré-pombalino

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01/08/2007 às 00:00
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Resumo

            O presente trabalho pretende fazer uma breve análise das condições de recepção das normas jurídicas ibéricas no Brasil pré-pombalino. É um estudo que não objetiva conclusões, mas quer trazer algumas questões que possam auxiliar futuros e necessários estudos sobre História do Direito no Brasil.

            Palavras-chave: História do Direito; Brasil colônia, Ordenações, Jurisdição


            Lisboa seiscentista era uma cidade de colinas "serpenteadas por ruas estreitas e tortuosas, mal se apercebendo na distância a solução de continuidade que elas estabeleciam" [01]. Lá os clérigos e os nobres pareciam disputar os altos dos montes. Em Lisboa, "no topo de uma ou outra das colinas divisa[va]-se o recorte airoso de alguma igreja" [02],

            sobressaindo-se a todas elas, porém, erguia-se a [colina] do Castelo, áspera, um pouco escalvada a ocidente, imponente nas espessas muralhas que a coroavam e nas massas dos grandes edifícios que a cobriam. Mais abaixo, a Sé dava uma nota pitoresca à cidade, com seus coruchéus aguçados e a alta torre do cruzeiro. [03]

            Castelo-Branco atribui este hábito a uma evidente forma de defesa contra possíveis inimigos que ameaçavam a toda hora - incluindo aí doenças que então empestavam as cidades européias [04].

            Lisboa seiscentista já foi descrita como uma cidade onde os conventos e recolhimentos religiosos eram seu principal ornamento [05]. O número de religiosos que habitavam a capital do reino por volta de 1620 foi estimada para algo em torno 3.200 [06], entre frades e freiras.

            Durante a União Ibérica parece ter havido um certo incremento da vinda de portugueses para o Brasil, já que muitos saíram espontaneamente da Corte para vir viver na Colônia portuguesa nas Américas - e em especial em São Salvador - que era o destino de boa proporção de portugueses que, em número cada vez maior, deixavam a metrópole portuguesa dominada pelos espanhóis, emigrando em busca de uma vida mais livre e melhor. [07]

            Naquele período, por volta do início do século XVII, quem se dispusesse a viajar ao longo daquilo que corresponde à costa do Brasil, poderia ver, nesta viagem imaginária, de bom tempo, boas correntes e boa visibilidade, ao longo da mata já quase despida de pau-brasil, de longe em longe surgirem pequenas aldeias, vilas e breves cidades. Natal, Recife e Olinda já estavam lá.

            Nas encostas banhadas por uma grande baía se mostravam os primeiros casarios da velha São Salvador - sede do Governo-Geral, "terra farta de mantimentos, carnes de vaca, porco, galinhas, ovelhas e outras criações" [08], onde moravam "Bispo, governador, ouvidor-geral, com outros oficiais e justiças de Sua Majestade" [09]. Cidade de ruas descalças ou cravejadas de pedras irregulares, por onde em breve andariam Antônio Vieira e Gregório de Matos. A boca do céu e a do inferno, lado a lado a caminhar na longa trajetória do tempo. Gregório nasceria em 1636 [10], um ano após Vieira ter recebido as ordens sacerdotais [11].

            Seguindo, avistaríamos também Ilhéus, Santa Cruz, Porto Seguro e Vitória. Do Rio de Janeiro, adentrando também uma baía, de longe já se via um imponente "pico de pedra mui alto" [12] – que já era então chamado de Pão de Açúcar por ser "da feição do nome que tem" [13]. Da antiga cidade, um relato datado de 1587 faz a seguinte observação:

            A cidade se chama S. Sebastião, a qual edificou Mem de Sá em um alto, em uma ponta de serra que está defronte da ilha de Viragalham; a qual está lançada d’este alto por uma ladeira abaixo; e tem em cima no alto um nobre mosteiro e colégio de padres da companhia para uma banda e para outra, um modo de fortaleza em uma ponta, que defende o porto, mas a barra por lá não chegar bem a artilharia. [14]

            Prosseguindo encontraríamos também as primeiras vilas de Santos e Itanhaém. Ao longo da costa pois, aldeias, vilas, fortes, capelas, igrejas. No interior, desde de meados do século XVI, a vila de São Paulo começava a estruturar-se.

            A se levar em conta apenas arquitetura erguida no Brasil até meados do século XVIII, fica difícil crermos que o vulgo veria a administração eclesiástica como um mero departamento do Estado [15]. Talvez imaginasse o contrário. De fato resta que as nascentes cidades e as vilas do Brasil eram comumente povoadas de militares, nativos, africanos, ibéricos e religiosos - muitos religiosos - seculares e um grande número de regulares. Porém, enquanto em Lisboa os poderes régio e eclesiástico ocupavam arquitetonicamente os locais mais altos da cidade, o mesmo não parecia ocorrer na colônia. De fato, se observarmos gravuras da época, veremos que os altos dos montes são ocupados quase que exclusivamente por igrejas e mosteiros. Talvez não tenha sido apenas por fervor religioso que o jesuíta irlandês Fleckno, ao visitar durante alguns meses o Rio de Janeiro no ano de 1648, viu uma cidade dominada pela Igreja:

            Está a cidade de São Sebastião situada numa planície de algumas milhas de comprimento, limitada nas duas extremidades por montanhas; na parte interna fronteira ao longo, habitam e dominam os frades Beneditinos e na parte externa, junto ao mar, os padres da Companhia. [16]

            Parece haver uma diferença básica na seiscentista Lisboa e de ao menos duas das principais cidades da colônia [Rio de Janeiro e Salvador]: aqui o poder régio não era facilmente visto nas alturas; já o eclesiástico, via de regra, assentava-se em locais bem altos, de onde tudo podia ver e de onde primeiro era avistado, especialmente se olhado do mar.

            Contudo, a se considerar a proximidade física com que circulavam pelo mundo o poder régio e o eclesiástico, podia-se mesmo ter a impressão de que estavam unidos em todas as esferas. Realmente o poder eclesiástico, de um modo geral, desembarcou no Brasil a bordo dos navios régios, que vinham, no entanto, muitos deles - especialmente nos primeiros anos de descobrimento e colonização - embandeirados sob o signo da Ordem de Cristo. Porém, a inegável união entre poder régio e eclesiástico parece fragilizar-se se passamos a observar a questão das hierarquias entre os sistemas jurídicos.

            O Brasil do século XVII esteve juridicamente sujeito, no plano reinícola, às Ordenações Filipinas, que, ao menos em tese, regia a vida jurídica na colônia no plano temporal. Ao seu lado existia a Legislação eclesiástica utilizada pela Igreja, que detinha o poder jurisdicional no plano espiritual. As duas ordens jurídicas tinham minimamente em comum, além da circunstância de serem ambas reciprocamente reconhecidas como válidas e eficazes (mesmo pelos juristas régios que ‘ordenaram’ o direito português filipino), o fato de serem escritas, aplicadas sobre uma imensa extensão territorial, sobre povos muitas vezes absolutamente distintos e, no Brasil, supostamente válido para pessoas majoritariamente ágrafas ou analfabetas. É importante também o fato de ambos os direitos serem fundados num pensamento jurídico, mesmo para os padrões da época, de alta complexidade. Uma outra questão importante é a percepção da dimensão do ‘poder jurisdicional espiritual’ da Igreja e das próprias igrejas – prédios – como espaços jurídicos onde se realizavam atos fundamentais da vida civil, isto sem esquecermos os domínios administrativos e penais do direito eclesiástico.

            A questão jurisdicional brasileira pré-pombalino é geralmente estudada dentro do tema genérico do direito no Brasil Colônia o que, algumas vezes, tem dificultado uma abordagem mais específica sobre o período. Atribuímos este fato especialmente à reforma pombalina ocorrida na segunda metade do século XVIII – também no período colonial – e que tem merecido uma maior atenção.

            A questão da superioridade de um ou outro ordenamento é interessante e delicada. Dos dois ordenamentos admitidos na península ibérica e seus prolongamentos ultramarinos (reinícola e canônico), apenas um deles era considerado pela Igreja como sendo propriamente um direito superior - não devendo estar submetido a nenhum outro: o direito canônico. Este fato não é de segunda ordem uma vez que a Igreja dominava o ensino e divulgava abertamente esta concepção. Do lado régio, apesar dos visíveis e constantes esforços pela fundação de um direito mais laico, especialmente a partir do século XVII, havia sempre o forte conteúdo ideológico que ‘inspirava’ todos a evitarem normas que ameaçassem a salvação da alma. Se pudermos considerar e combinar as radicais opiniões dos professores de Coimbra dos seiscentos acerca da idéia de direito, o monopólio conimbrense na produção do saber e as condições de exercício de poder da igreja na colônia - especialmente dos jesuítas -, poderemos ao menos supor que o direito reinícola, ao menos no Brasil, tenha tido alguma dificuldade em firmar-se plenamente. Em Portugal, a proximidade do rei, dos juristas régios e dos tribunais laicos pode ter provocado um descompasso de forças entre a jurisdição régia a eclesiástica praticada na Corte e aquela praticada no Brasil. Devido a condições típicas da colonização portuguesa nas Américas, é sabido que muitas vezes a igreja atuava sozinha – agindo temporal e espiritualmente em vasto território. De fato, proprietária de imensas extensões de terra no Brasil, ela estabeleceu-se com plenos poderes perante o gentio. Observemos como Gabriel Soares descreve, em fins século XVI, as relações dos jesuítas com o nativos em uma das diversas aldeias que possuíam no Nordeste brasileiro:

            Toda esta terra até o rio de Joanne, três léguas do mar para o sertão, está povoada de currais de vaca de pessoas diversas; e nesta comarca, três léguas do mar, têm os padres da companhia duas aldeias de índios forros Tupinambás, e de outras nações, nas quais terão setecentos homens de peleja pelo menos; os quais os padres doutrinam, como fica dito, da aldeia de Santo Antônio. Estas outras se dizem, uma de Santo Espírito, e a outra de São João; onde têm grandes igrejas da mesma advocação e recolhimento para os padres, que nelas residem e para outros que muitas vezes se vão lá recrear. E a sombra e circuito destas aldeias têm quatro ou cinco currais de vacas ou mais, que granjeiam, de que se ajudam a sustentar. Por onde estas aldeias estão é a terra boa, onde se dão todos os mantimentos da terra muito bem, por ser muito fresca com muitas ribeiras de água; neste limite lança o mar fora todos os anos muito âmbar pelo inverno, que este índios vão buscar, o qual dão aos padres. [17]

            Neste contexto, nunca é demais lembrarmos que das diversas ordens religiosas que aqui se instauraram, foram os jesuítas que mais sucesso obtiveram na sua ‘empresa’[o que não raro gerou conflitos com outras ordens [18]]. Parece ser importante salientarmos que mesmo sendo o Brasil uma colônia portuguesa e de estarem os jesuítas ligados a ela, estes eram, antes de qualquer outra coisa, um braço da Roma "caput mundi" e que instalaram-se em diversos pontos do Brasil com o ideal medievo do "orbis christianus" [19] e que representam toda a força das concepções escolásticas de mundo.

            No contexto político, certamente ao menos os mais cultos entre aqueles clérigos, não desconheciam o fato de que "na linguagem jurídico-política medieval, a palavra que designa o Poder seja iurisdictio. Iurisdictio é, antes de mais, o ato de dizer o direito" [20], ou seja, quem tem o poder de jurisdição detém uma imensa parcela do poder de determinar a vida dos povos.

            Com efeito, a ausência do Estado Português, a forte presença de religiosos no Brasil e o domínio que exerciam no campo educacional [21] aponta para corrente divulgação de idéias jurídicas de fundo canônico e não propriamente reinóis ou romanas. Fato é que mesmo no século XVII ainda se encontrava bastante ausente o Estado português por seu distanciamento político e geográfico [22], o mesmo não se podendo dizer da Igreja. Ademais, as questões sucessórias em Portugal consumiam tempo e energia do reino já bastante desfalcado em sua nobreza pelo desastre de Alcácer-Quibir e bastante ocupado em conquistar e garantir o afastamento político da Espanha. Este fato reflete-se na colônia de modo a fazer-nos perceber que faltaram recursos vindos da corte até mesmo para o combate contra os holandeses:

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            As guerras holandesas, da queda e restauração da Bahia (1624-1625) à capitulação de Recife em 1654, assistem ao emprego crescente dos recursos locais e decrescente dos recursos da metrópole. Trata-se de processo que se acentua marcadamente durante a restauração, devido em especial ao fato de que os luso-brasileiros já não dispõem dos recursos mais amplos do império espanhol de quem Portugal se separara definitivamente em 1640; e de que os escassos meios ao alcance da Coroa bragantina têm utilização prioritária, como seria de esperar, não na guerra contra os holandeses no Brasil mas na guerra contra os castelhanos nas fronteiras do Reino. [23]

            Paralelamente a este confronto político-militar, a questão jurisdicional não dava tréguas. Desde finais do século XVI a questão se agravara sobremaneira com a chegada de D. Sebastião ao poder, que claramente favoreceu a jurisdição eclesiástica em detrimento da jurisdição laica. Não foi sem razão que os juristas régios não parecem ter gostado das idéias de D. Sebastião acerca da aplicação das normas tridentinas em Portugal, pois este ´´novo´´ sistema imiscuído no nascente ordenamento jurídico exclusivamente estatal representava um recrudescimento - ao menos um renascimento - do poder jurisdicional da Igreja. Com efeito, Graham registra que os juristas portugueses e espanhóis "viram a aplicação na península dos Decretos do Concílio de Trento e a revalorização do Direito Canônico" [24] como ameaça a todo um esforço secular de eliminação dos subsistemas jurídicos - materializados nos "fueros" medievais - em favor de uma unificação jurídica do Estado.

            Já são bastante conhecidos os prejuízos trazidos pela legislação Filipina à jurisdictio canônica e do descontentamento gerado, especialmente entre os eclesiásticos, pela perda de poder dos canonistas. Pensamos ser este fato ainda mais significativo se a ele juntarmos outro de sérias repercussões na colônia: a proibição da atividade de imprensa e a imensa restrição à circulação de livros. Com efeito, assim como a vida cultural portuguesa, especialmente a lisboeta, girava em torno da Igreja [25], na colônia, também a Igreja - com seus padres e seus sermões - era quem reunia majoritariamente - senão exclusivamente – o povo e transmitia alguma idéia da ‘cultura oficial’ para os crentes que a freqüentavam ou para aqueles que fossem educados em suas instituições. Neste sentido, não parece ser improvável que junto à pregação do ministério divino os padres transmitissem também parte de sua cultura jurídica, ou seja, de suas idéias de direito e justiça. Não parece ser crível que os pregadores que se ocupavam de fundar nos fiéis a supremacia do poder de Deus se abstivessem de comentar as ´´Divinas Leis’ e divulgar idéias jurídicas canônicas. Observemos, por exemplo, como o padre Antônio Viera trabalhou a questão do furto no Sermão do Bom Ladrão, de 1655:

            se o alheio se tomou ou retém, e não se restitui, a penitência deste e dos outros pecados não é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque se não perdoa o pecado sem se restituir o roubado, quando quem o roubou tem a possibilidade de o restituir. [26]

            Este entendimento está em franco dissenso com o direito reinícola da época, que mandava castigar exemplarmente o ladrão (pouco importando tivesse ele ou não a capacidade de restituir o roubado):

            Pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, não tome cousa alguma por força e contra vontade daquele, que a tiver em seu poder.

            E tomando-a por força, se a coisa assim tomada valer mais de mil réis, morra por isso morte natural.

            E se valer mil réis, ou daí para baixo, haverá as penas, que houvera, se a furtara, segundo for a valia dela.

            O que tudo haverá lugar, posto que alegue, que oferecia o preço da coisa ao possuidor, ou que lhe deixou o dito preço: porque, como for contra a sua vontade, queremos que haja as ditas penas. [27] (...)

            Consideramos a necessidade de aprofundarmos os estudos acerca da noção algumas vezes ainda corrente de que a igreja católica, principalmente durante o período colonial, tinha pouca autonomia para cuidar dos negócios eclesiásticos e de sua própria organização ou de que ela vivia inteiramente na dependência do rei.

            Estas afirmativas parecem dar tremenda importância ao fator econômico oficial e ao poder de diligência de um Rei distante [a pelo menos dois meses de viagem [28]] e absorvido pela vida na corte em detrimento da dimensão fideísta – que muito imbrica-se na jurídica. Um importante fator algumas vezes negligenciado é a questão do clero regular - como era o caso dos inacianos - que não se enquadrava exatamente na categoria ‘funcionário da coroa’. De fato, a igreja, especialmente através da Companhia de Jesus, gozava na colônia de status especial: possuía um grande controle sobre os índios ‘reduzidos’, além de ser uma grande proprietária de terras e outros bens. Há também o delicado tema dos dízimos, instituídos pela Bula da Cruzada com o intuito de "conceder indulgências aos que se alistavam nas legiões de cavaleiros católicos" [29] e mais tarde, no século XV, sendo repassados à Ordem de Cristo, que desde então detinha "a incumbência de recolher os dízimos eclesiásticos no Ultramar para empregá-los na propagação e manutenção da fé." [30] No tocante a questão dos dízimos, parece ser importante frisarmos que a concepção de direito canônico como sendo "um sistema jurídico próprio da comunidade dos cristãos" (GILISSEN) [31] deve ser cuidadosamente aplicada, pois o sistema jurídico canônico era, naquele ponto, válido e eficaz em alguns casos também para os não-cristãos, como se dava com os dízimos reais [que, apesar da nomenclatura, não diziam respeito ao rei, mas à propriedade de bens imóveis – do latim ‘res’, coisa]. Com efeito, os dízimos se dividiam em pessoais e reais, os primeiros recaíam exclusivamente sobre os que tinham "direito de receber benefícios espirituais dos párocos" [32], já quanto aos dízimos reais, geralmente est[avam] obrigados a pagá-los todos os que t[inham] terras sujeitas ao direito dos dízimos, ainda que os proprietários fix[assem] domínio fora da paróquia, a não ser que est[ivessem] isentos por privilégio apostólico, costume, prescrição ou pacto. Portanto os Judeus e outros infiéis, não em razão de pessoa, (porque não participa[va]m dos benefícios espirituais da Igreja) mas em razão do lugar per se esta[vam] obrigados ao pagamento dos dízimos, se possu[íssem] terra em regiões cristãs, que esti[vessem], sujeitas a esse ônus real. [33] [chaves nossas]

            Não parece haver, neste sentido, uma subordinação absoluta de todo o clero à coroa [bem como não deve haver, certamente, uma independência total]: há nuanças e algumas delas bem marcadas. A Companhia de Jesus teve, por exemplo, o apoio político e militar da Coroa que, logicamente, esperava - e obteve - alguma retribuição, que Baêta Neves indentificou como sendo um "apoio ideológico, parcialmente institucional" [34], uma vez que [a igreja] não detinha todas as instituições coloniais [35], e indiretamente político-militar, porque ou atraía grupos, ou os neutralizava face aos objetivos governamentais. [36]

            No plano educacional, de um modo bastante geral, podemos afirmar que o complexo cultural oficial do Brasil durante muito tempo esteve nas mãos dos padres da Companhia de Jesus, que mantinham, já em fins do século XVI, três colégios no Brasil: na Bahia, no Rio de Janeiro e em Pernambuco [37]. O ensino, especialmente em Salvador, parecia ser de bom nível para os padrões da época, porém preso ao ideário aristotélico-tomista. Ao que se sabe, depois do ensino elementar [ler, escrever e contar], o aluno podia aprender "Letras Humanas que compreendia Gramática, Retórica, Poesia e História" [38] que era seguido do curso de "Artes ou Ciências, que compreendia: Filosofia, Lógica, Física, Matemática, Metafísica e Ética" [39]. Ao final havia ainda o "curso de Teologia que se dividia em Teologia Moral e Teologia Especulativa" [40]. Dos três cursos, o único que plenamente funcionou no Brasil foi o do Colégio da Bahia [41] em cuja famosa biblioteca se podia encontrar obras de autores cristãos e não-cristãos. Ali se podia ler escritores e poetas ‘pagãos’ como Ovídio, Sêneca, Cícero, Valério Máximo, Quintiliano, e ‘filósofos antigos’ como Aristóteles e Platão. Ali se encontravam obras dos grandes autores cristãos como Orígenes, João Crisóstomo, Jerônimo, Agostinho, Bernardo de Claraval, Tomás de Aquino e muitíssimos outros. [42]

            Ao que parece, quem se formava no colégio da Bahia, recebia uma educação rica em princípios e metodologias da mais pura escolástica. Tomás de Aquino continuava a ser estudado diretamente a partir de suas obras, o que, evidentemente, colocava o aluno em contato com concepções tomistas de poder, direito e justiça.

            Em relação à circulação de livros na colônia, o quadro não era animador, pois além da presença deles não ser vista com bons olhos pelo Reino [43], a Igreja criava imensos obstáculos à leitura de obras que não fossem autorizadas. Ao que hoje se sabe "nos primeiros séculos de colonização, praticamente nada chegou até aqui, com exceção da formação da biblioteca dos jesuítas da Bahia" [44]. Os livros que entravam eram raros e jamais circulavam livremente, pois "a inquisição e o estabelecimento da mesa censória apertaram o cerco de entrada de livros no Brasil" [45]. Os registros da existência e circulação de livros, ironicamente - e por mais que os inquisidores não desejassem isto – permaneceram nos depoimentos prestados aos visitadores inquisitoriais onde se pôde colher informações sobre alguns livros que aqui circularam [46]. As relativamente pequenas dimensões da colonização não impediram que o Santo Ofício fizesse sua primeira incursão já no último decênio do século XVI, com a visita do "licenciado Heitor Furtado de Mendonça" [47] - chegado à Bahia na frota do governador Francisco de Sousa, em junho de 1591 para desincumbir-se do trato das almas ameaçadas ‘por toda sorte de heresias’. Deste modo, desembarcava no Brasil um braço importantíssimo da poderosa jurisdição eclesiástica: a inquisição.

            Neste ambiente colonial até pelo menos o século XVIII em sua primeira metade, somente alguma fantasia imperialista ibérica pode nos fazer crer que as legislações escritas - tanto a régia quanto a eclesiástica - e seus complexos modelos de justiça, tenham sido suficientemente conhecidas pela população que habitava a vastidão da colônia. Neste contexto, as idéias de direito transmitidas de modo ‘não escrito’ ou não escrito com as letras do alfabeto, assumem um caráter de extrema importância. Deste modo, temos por pouco provável que cheguemos a compreender mais profundamente a cultura jurídica que se desenvolveu no Brasil se não conjugarmos a força de um poderoso e estruturado pensamento jurídico com a força da oralidade, visualidade e teatralidade dos poderes. Com efeito, a percepção de que "não é possível compreender a cultura de Seiscentos e Setecentos sem se conceder um peso importante à comunicação oral" [48] também se aplica ao Brasil, só que de modo a incluir, além da oralidade, outras formas não escritas de transmissão de ‘saberes’ – muito fortemente a arquitetura, a imaginária sacra e outras fontes de demonstração da jurisdictio colonial.

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Sobre a autora
Ana Patrícia Thedin Corrêa

professora universitária, procuradora federal, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Ana Patrícia Thedin. Fantasia e jurisdição:: a recepção das normas jurídicas no Brasil pré-pombalino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1491, 1 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10225. Acesso em: 22 nov. 2024.

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