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Justiça restaurativa.

O paradigma do encontro

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06/08/2007 às 00:00
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4. Justiça Retributiva versus Justiça Restaurativa

            A base jurídico-processual do sistema penal brasileiro em vigor repousa no princípio da indisponibilidade da ação penal pública, ultimamente atenuada pelo espaço de consenso introduzido para os crimes de menor potencial ofensivo, em que se admite a suspensão condicional do processo e a transação penal. Também nas infrações cometidas por adolescentes, com o instituto da remissão, há certa margem de disponibilidade da ação penal.

            Nos países do sistema common law, há a prosecutorial discretion [15], na qual a promotoria tem significativa discricionariedade para o exercício da ação penal, fundada no princípio da oportunidade.

            O princípio da oportunidade, no Brasil, ainda esbarra nos princípios da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal.

            Porém, com as penas alternativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Juizados Especiais, essa obrigatoriedade e indisponibilidade é absoluta somente em crimes graves, o que abre possibilidade de introdução do paradigma restaurativo, como se verá adiante, quando abordarmos, em capítulo próprio, a questão da compatibilidade da Justiça Restaurativa com o contexto cultural e o sistema jurídico brasileiro.

            Nesse capítulo é apresentada um análise destacando as diferenças entre o modelo formal de Justiça Criminal, dito retributivo e o modelo restaurativo, sob o ponto de vista dos valores, procedimentos, resultados e efeitos dos processos retributivo e restaurativo para as vítimas e para os infratores e para a comunidade [16].

            VALORES

            JUSTIÇA RETRIBUTIVA

            JUSTIÇA RESTAURATIVA

            Conceito normativo de Crime – ato contra a sociedade representada pelo Estado

            Conceito realístico de Crime – Ato que traumatiza a vítima, causando-lhe danos.

            Primado do Interesse Público (Sociedade, representada pelo Estado, o Centro) – Monopólio estatal da Justiça Criminal

            Primado do Interesse das Pessoas Envolvidas e Comunidade – Justiça Criminal participativa

            Processo Decisório a cargo de autoridades (Policial,Delegado, Promotor, Juiz e profissionais do Direito

            Processo Decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade)

            Culpabilidade Individual voltada para o passado

            Responsabilidade, pela restauração, numa dimensão social, compartilhada coletivamente e voltada para o futuro

            Uso Dogmático do Direito Penal Positivo

            Uso Crítico e Alternativo do Direito

            Indiferença do Estado quanto às necessidades do infrator, vítima e comunidade afetados - desconexão

            Comprometimento com a inclusão e Justiça Social gerando conexões

            Mono-cultural e excludente

            Culturalmente flexível (respeito à diferença, tolerância)

            PROCEDIMENTOS

            JUSTIÇA RETRIBUTIVA

            JUSTIÇA RESTAURATIVA

            Ritual Solene e Público

            Comunitário, com as pessoas envolvidas

            Indisponibilidade da Ação Penal

            Princípio da Oportunidade

            Contencioso e contraditório

            Voluntário e colaborativo

            Linguagem, normas e procedimentos formais e complexos – garantias.

            Procedimentos informais segundo a vontade das próprias partes

            

            Atores principais - autoridades (representando o Estado) e profissionais do Direito

            Atores principais – vítimas, infratores, pessoas da Comunidade, ONGs.

            RESULTADOS

            JUSTIÇA RETRIBUTIVA

            JUSTIÇA RESTAURATIVA

            Prevenção Geral e Especial

            -Foco no infrator para intimidar e punir

            

            Abordagem do Crime e suas Conseqüências

            - Foco nas relações entre as partes, para restaurar

            Penalização

            Penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, multa

            Estigmatização

            Pedido de Desculpas, Reparação, restituição, prestação de serviços comunitários

            Reparação do trauma moral e dos Prejuízos emocionais - Restauração

            Tutela Penal de Bens e Interesses, com a Punição do Infrator e Proteção da Sociedade

            Resulta na assunção de responsabilidade por parte do infrator

            Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime carcerário desumano, cruel, degradante e criminógeno

            Proporcionalidade e Razoabilidade das Obrigações Assumidas no Acordo Restaurativo

            Vítima e Infrator isolado, desamparados e desintegrados. Ressocialização Secundária

            Reintegração do Infrator e da Vítima Prioritárias

            EFEITOS PARA A VÍTIMA

            JUSTIÇA RETRIBUTIVA

            JUSTIÇA RESTAURATIVA

   

            Pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo. Não tem participação, nem proteção, mal sabe o que se passa.

            Ocupa o centro do processo, com um papel e com voz ativa. Participa e tem controle sobre o que se passa.

            Praticamente nenhuma assistência psicológica, social, econômica ou jurídica do Estado

            Recebe assistência, afeto, restituição de perdas materiais e reparação

            Frustração e Ressentimento com o sistema

            Tem ganhos positivos. Supre-se as necessidades individuais e coletivas da vítima e comunidade

            EFEITOS PARA O INFRATOR

            JUSTIÇA RETRIBUTIVA

            JUSTIÇA RESTAURATIVA

            Infrator considerado em suas faltas e sua má-formação

            Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e conseqüências do delito

            Raramente tem participação

            Participa ativa e diretamente

            Comunica-se com o sistema por Advogado

            Interage com a vítima e com a comunidade

            É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a vítima

            Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar-se com o trauma da vítima

            É desinformado e alienado sobre os fatos processuais

            É informado sobre os fatos do processo restaurativo e contribui para a decisão

            Não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo fato

            É inteirado das conseqüências do fato para a vítima e comunidade

            Fica intocável

            Fica acessível e se vê envolvido no processo

            Não tem suas necessidades consideradas

            Supre-se suas necessidades


5. O Encontro Restaurativo

            Por que paradigma do encontro?

            Tudo o que se cogita sobre justiça restaurativa se estará referindo a esse encontro.

            E esse encontro se dará se, e somente se, todos os envolvidos, a começar pela vítima, decidirem tentar curar as feridas e resolverem se encontrar e experimentarem a receita restaurativa.

            O processo restaurativo que tem seu clímax nesse encontro, que não é um simples encontro, mas um encontro restaurativo, que só ocorrerá se presentes os requisitos constitucionais e legais para sua admissibilidade e continuidade, e se observados os princípios, valores e procedimentos restaurativos para se alcançar os resultados buscados e os efeitos projetados.

            Nesse encontro, as pessoas vivenciarão emoções e racionalidade para formatar um plano que se denominará acordo restaurativo.

            Não se trata de um encontro no cenário de um foro ou tribunal, mas fora da estrutura e do ritual judiciário, e não haverá nem juiz, nem promotor, nem advogado, nem escrivão, nem testemunhas, nem documentos, nem perícias.

            Os "juízes" serão os facilitadores desse encontro restaurativo.

            O ideal é que sejam facilitadores psicólogos [17] e assistentes sociais, trabalhando em parceria interdisciplinar.

            Podem ser facilitadores líderes comunitários, mas desde que com uma qualificação adequada e um treinamento rigoroso.

            O Juiz, o Promotor e o Advogado não ficam excluídos do processo, mas não participam do encontro restaurativo, pois continuam no cenário judicial do processo legal em sentido estrito.

            Não é um encontro fácil.

            Pelo contrário, é dificílimo.

            É um encontro de emoções fortes de ódio, ressentimento, luto, desespero, sentimento de vingança, medo, pavor, mágoa, desconfiança, compaixão, perdão, auto-estima, coragem,

            Mas, se houver disposição, esse encontro restaurativo faz as pessoas chegarem aonde o sistema não vai.

            O sistema penal vigente não vai ao fundo do conflito que cerca cada ilícito penal e que afeta os envolvidos e a comunidade, pois seu alcance é muito superficial. [18]

            Apesar de certo sucesso das penas alternativas que  foram introduzidas no código penal brasileiro, e da suspensão do processo e transação penal no caso dos crimes de menor potencial ofensivo, é preciso "resgatar a convivência pacífica no ambiente afetado pelo crime, em especial naquelas situações em que o ofensor e a vítima tem uma convivência próxima", lembra o juiz ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Vice-Presidente da Comissão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, instituída para estudar a implantação de um Projeto Piloto em Brasília.

            Acrescenta o magistrado, em suas reflexões, ainda não publicadas, que "em delitos envolvendo violência doméstica, relações de vizinhança,  no ambiente escolar ou na ofensa à honra, por exemplo, mais importante do que uma punição é a adoção de medidas que impeçam a instauração de um estado de beligerância e a conseqüente agravação do conflito".

            E essas medidas seriam negociadas no encontro restaurativo, com participação da vítima, do infrator e de pessoas da comunidade, com a presença de um facilitador.

            PEDRO SCURO NETO nos fala desse encontro:

            O modo restaurativo de fazer justiça outorga grande valor ao fato de vítima e infrator se encontrarem pessoalmente, na presença de um supervisor ou agente facilitador – quando isso não é possível, pode-se promover aproximação por meio de carta, fita gravada, mensagens entregues por um portador. Não obstante, encontros em si e tão-somente não bastam para dar a um procedimento características restaurativas, que se conformam através da convergência de cinco elementos (reunião, relato, emoção, entendimento, acordo) cada qual contribuindo decisivamente para fortalecer e dar sentido restaurativo ao encontro .

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            Enquanto no procedimento judicial costumeiro as partes no máximo podem observar de algum modo o que o outro diz a terceiros, no padrão restaurativo infrator e vítima conversam, relatam com as próprias palavras o ocorrido, descrevem como os acontecimentos os afetaram, e contam como encaram o ato infracional e as suas conseqüências. No encontro restaurativo o que entra em cena é a subjetividade, o interlocutor integral, a emoção favorecida pelo relato e que resulta da própria infração – todos esses são fatores que os procedimentos da Justiça formal, impessoal e racional geralmente reprime, descartando o poder curativo da emoção e da subjetividade.

            Outro elemento do encontro é o entendimento, surgido de uma certa empatia, de sentir-se na pele do outro, que, se não faz o interlocutor encarar o outro de um modo positivo, pelo menos leva a considerá-lo de um ângulo mais "natural", algo mais de acordo com a ordem das coisas, menos traumatizante.

            O derradeiro fator é precisamente o acordo, que estabelece uma base produtiva para o que virá depois do encontro, dependendo do ponto de vista das partes, das circunstâncias e da vontade de cada um, da convergência de seus interesses e de suas decisões, e não simplesmente da perspectiva dos autos de um processo fundado apenas no contraditório.

            Pode ser que dos cinco elementos não resulte a reconciliação, mas todos efetivamente ajudam a elevar a capacidade dos interlocutores verem-se a si mesmos e ao outro como pessoas, respeitarem-se mutuamente, identificar-se em termos de experiências, e quem sabe chegar a um acordo, independentemente das sensações que inicialmente só lhes davam razão para ter medo e sentir hostilidade – inclusive porque não raro a vítima vai além dos limites e passa a ser protagonista do crime, gerando ou programando as coordenadas da própria vitimização [19].

            Nessa reunião, com o relato, a emoção, o entendimento e o acordo flui a subjetividade, e isso é a essência do ser humano - a sua constituição enquanto sujeito e na sua subjetividade, que é única e é formada pelo conjunto de vivências e experiências de cada um no ambiente familiar, social, histórico, cultural, econômico.

            O mundo simbólico de cada sujeito, isto é, o que representa para cada sujeito o que é por ele experimentado, forma sua subjetividade.

            As mesmas forças propulsoras que levaram um sujeito a cometer um ato de violência agem no sujeito que foi alvo de tais forças.

            Para ALFREDO JERUSALINSKY, "a violência emerge quando o sujeito não pode reencontrar nas vicissitudes e nas repercussões que seu dizer tem no discurso social a significação necessária para legitimar sua própria ação, dos objetos que possam lhe garantir o reconhecimento do Outro." [20]

            O encontro das faltas, das subjetividades, dos sujeitos parece ser o objetivo da Justiça Restaurativa, para que a partir desse encontro possa ser pautado algo além daquilo que gerou a ação da violência ou algo além da submissão da mesma.

            Para tanto, faz-se necessário uma disponibilidade psíquica de ambos os psiquismos para atualizar não só a situação vivenciada, mas também o que a mesma remete tais sujeitos, isto é às suas vivências primordiais que os constituíram enquanto sujeitos, cada qual em sua realidade.

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Sobre o autor
Renato Sócrates Gomes Pinto

procurador de Justiça aposentado, pós-graduado em Direitos Humanos e Liberdades Civis pela Universidade de Leicester (Reino Unido) e em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, presidente do Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa.: O paradigma do encontro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1496, 6 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10238. Acesso em: 26 abr. 2024.

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