6. Justiça Restaurativa - Críticas e Contra-Críticas
O paradigma restaurativo tem desafiado sólidas críticas, inclusive no país onde ela se iniciou – a Nova Zelândia.
A idéia de Justiça Restaurativa tem sido repelida sob o argumento de que ela desvia-se do devido processo legal, das garantias constitucionais e normas infra-constitucionais, produzindo uma erosão no Direito Penal legítimo e codificado, que tem no princípio da legalidade o seu pilar de garantia para o cidadão.
A essa objeção, os defensores da J.R. sustentam que o modelo apenas prioriza o papel da vítima e do infrator no encontro restaurativo, e que o acordo restaurativo só terá validade e eficácia quando homologado judicialmente, com a anuência do Ministério Público e que nada impede que o infrator e a vítima tenham acesso a advogados para se consultarem.
Outro questionamento que se faz ao paradigma é que ele banaliza certos crimes, como no caso da violência doméstica, num retrocesso ao tempo em que se dizia que isso era questão de vara de família e agora, de Justiça Restaurativa...
A essa crítica os restaurativistas respondem com o argumento de que um dos requisitos para se admitir o encaminhamento das pessoas ao processo restaurativo é a voluntariedade, ou seja, se a vítima não quiser, não há processo restaurativo, e o sistema formal continua acionável normalmente.
Também se observa a afirmação de que a Justiça Restaurativa não tem o condão de restaurar a ordem jurídica lesada pelo crime, e nem mesmo pode restaurar a vítima.
A essa crítica tem sido oposto o argumento de que, na sua feição de procedimento complementar do sistema, a J.R. estará também recompondo a ordem jurídica, na medida em que estará trabalhando o crime, com outra metodologia, mas que leva a resultados melhores para a vítima, que recupera segurança, auto-estima, dignidade e controle da situação, e também para o infrator, na medida que ao mesmo tempo em que o convoca na sua responsabilidade pelo mal causado lhe oportuniza meios para refazer-se, inclusive participando de programas da rede social de assistência.
Uma outra crítica que tem aflorado nos países onde vem sendo experimentado o modelo, como na Nova Zelândia, é de que a Justiça Restaurativa desjudicializa a Justiça Criminal e privatiza o Direito Penal, sujeitando o infrator, e também a vítima, a um controle ilegítimo de pessoas não investidas de autoridade pública.
A essa delicado questionamento tem sido colocado o argumento de o processo restaurativo é constitucional e legalmente sustentável, não sendo, assim, uma alternativa extra-legal.
O que ocorre é um procedimento de mediação, conciliação e transação, previstos na legislação, como se verá adiante, com uma metodologia restaurativa, que admite a participação da vítima e do infrator no processo decisório, quando isso for possível e for essa a vontade das partes.
E o acordo restaurativo terá que ser aprovado, ou não, pelo Ministério Público e terá que ser homologado, ou não, pelo Juiz.
E nada disso revoga o princípio da inafastabilidade da jurisdição, ou seja, sendo o caso, tanto a vítima, como o infrator – através de advogados –, como o Ministério Público, de ofício ou a requerimento do interessado, poderão questionar o acordo restaurativo em juízo.
Também se diz que a Justiça Restaurativa "passa a mão na cabeça do infrator", só servindo para beneficiá-lo e promover a impunidade.
Essa será, sem dúvida, a crítica mais mordaz, onde quer que se experimente a Justiça Restaurativa, mas basta lembrar que o grande clamor social contra a impunidade e a leniência do sistema penal é justamente contra o sistema formal e vigente.
Por outro lado, a prisão, por sua impropriedade e ineficácia, além de seus malefícios, só é reservada para crimes graves, na legislação penal em vigor no Brasil e na maioria dos países ocidentais.
A propósito, as Regras de Tóquio expressam uma convergência mundial no sentido de que já está ultrapassada a equivocada visão que o cárcere é o remédio para a criminalidade, e que as medidas alternativas são muito mais justas e eficazes como resposta para a maioria dos delitos.
Mas as medidas alternativas, como pagamento de cestas básicas, no Brasil, têm causado muita insatisfação, por privilegiar acusados com poder aquisitivo, e porque não valorizam a vítima.
A Justiça Restaurativa tem a vantagem de dar voz à vítima e de voltar-se para a restauração do trauma e das perdas dela, no processo.
7. Perspectivas para um Projeto Brasileiro de Justiça Restaurativa
A introdução da Justiça Restaurativa é perfeitamente compatível tanto culturalmente [21] como juridicamente em nosso país.
A propósito, diversos programas alternativos de resolução de conflitos têm sido implantados pelos tribunais brasileiros, inclusive com sucesso.
E um eloqüente exemplo de sucesso, no Distrito Federal, é o Projeto Justiça Comunitária do Distrito Federal – A Justiça sem Jurisdição [22], que opera com a Escola de Cidadania e Justiça, capacitando os Agentes de Cidadania para trabalharem com mediação e cidadania participativa na comunidade, baseados em Centros de Cidadania.
Esse formato funcionou e pode, talvez, ser o tipo de estrutura apropriada [23] para um projeto-piloto de Justiça Restaurativa.
A Constituição prevê, no art. 98, I, a possibilidade de conciliação em procedimento oral e sumaríssimo, de infrações penais de menor potencial ofensivo [24].
A audiência preliminar prevista no art. 70 e 72 a 73 da Lei 9.099 pode ter a forma restaurativa.
Também as medidas alternativas introduzidas no Código Penal pelas Leis 9714/98 e 10.259/01 comportam, em certa perspectiva, práticas restaurativas.
Também o Estatuto da Criança e do Adolescente enseja e recomenda implicitamente o uso do modelo restaurativo, em vários dispositivos, particularmente quando dispõe sobre a remissão (art. 126) e diante do amplo elastério das medidas sócio-educativas previstas no art. 112 e seguintes do diploma legal.
Acreditamos, contudo, que alterações legislativas são necessárias para a acomodação sistêmica do paradigma em nosso Direito Positivo.
No Brasil, o programa poderia funcionar em espaços comunitários ou centros integrados de cidadania, onde seriam instalados Núcleos de Justiça Restaurativa, cuja estrutura compreenderia Câmaras Restaurativas, onde se reuniriam as partes e os facilitadores, estes últimos preferencialmente psicólogos e assistentes sociais, ou voluntários qualificados criteriosamente selecionados, que se submeteriam a uma capacitação adequada em Centros de Capacitação.
Os Núcleos de Justiça Restaurativa teriam que atuar em conexão com órgãos governamentais e organizações não governamentais, operando em rede, para encaminhamento de vítimas e infratores para os programas indicados para as medidas acordadas no plano traçado no acordo restaurativo.
É perfeitamente possível utilizar estruturas já existentes e consideradas apropriadas, podendo os encontros serem realizados em lugares escolhidos de comum acordo pelas partes.
O modelo argentino, que consiste na operação de dois centros – o Centro de Mediação Penal e o Centro de Assistência às Vítimas, parece válido, mas é preciso que sejam articulados com um Centro de Capacitação de Facilitadores e com a rede social, abrangendo Universidades, órgãos governamentais e organizações não-governamentais.
Conclusão
A impressão que se tem é que apesar das vantagens que pode ter o programa, ele deve ser experimentado com cautela e controle, e deve estar sempre sendo monitorado e avaliado.
O que se propõe, aqui, é que um projeto brasileiro de Justiça Restaurativa seja precedido de debates em fóruns apropriados, com ampla participação da sociedade, e que seja um programa concebido e desenvolvido para funcionar em sintonia com o sistema, de forma compatível com a Constituição e as leis, em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário.
E é preciso muito critério e controle na implementação do projeto.
Todavia, se consideradas essas ponderações e definidos criteriosamente os limites de aplicação desse novo paradigma, como complemento, um projeto brasileiro de Justiça Restaurativa pode funcionar bem, para um considerável número de infrações penais e nos casos em que for possível sua utilização, à luz da Lei dos Juizados Especiais, do Estatuto da Criança e do Adolescente e das penas alternativas previstas no Código Penal.
Essa deve ser a agenda do movimento restaurativo, e cada de um de nós que acredita e participa desse grito por uma Justiça que Queremos deve sentir que não está sozinho, porque, mesmo que pareça um sonho ingênuo, nos cantava John Lenon: You may say I am dreamer, but I am not the only one.
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Notas
01
Questão-Síntese do Seminário Internacional Justiça Restaurativa – Um Caminho para os Direitos Humanos?02
SCURO NETO, Pedro. Manual de Sociologia Geral e Jurídica, São Paulo, Ed. Saraiva, 3a ed., p.10203
PAZ, Silvina. Mediación Penal, inédito no Brasil.04
O projeto no parlamento canadense, na área infanto-juvenil, denomina-se Bill C-7.05
Para um relatório do Quinto Congresso Internacional sobre Práticas Restaurativas veja no endereço eletrônico http://restorativepractices.org/bc04/index.html06
http://www.ufsm.br/Direito/Artigos/Execucao-Penal/Prisao-Ideologia.Htm. Veja os documentos no endereço eletrônico http://www.restorativejustice.org/rj3/rjUNintro2.html
07
08
Mudando as Lentes – Um novo enfoque para o Crime e para a Justiça [H. Zehr, Changing Lenses: A New Focus for Crime and Justice (Waterloo, ON: Herald Press, 1990)]09
SCURO NETO, Pedro. A Justiça como Fator de Transformação de Conflitos: Princípios e Implementação, http://www.restorativejustice.org/rj3/Full-text/brazil/EJRenato%20_Nest_.pdf10
http://restorativepractices.org/library/paradigm_port.html11
Preferimos considerá-la complementar ao invés de alternativa.12
WARAT, Luis Alberto. O Monastério dos Sábios – O Sentido Comum Teórico dos Juristas, in Introdução Geral ao Direito, Porto Alegre, Sergio Fabris Editores, 1995, vol II, p. 57 e sgts.13
http://www.restorativejustice.org/rj3/rjUNintro2.html14
Discricionariedade e disponibilidade da ação penal para o Ministério Público15
Essa análise é baseada nas exposições e no material gentilmente cedido pelas Dras. Gabrielle Maxwell e Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, por ocasião do memorável Seminário sobre o Modelo Neozelandês de Justiça Restaurativa, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília, em parceria com a Escola do Ministério Público da União e Associação dos Magistrados do DF, em março de 2004.16
A intervenção do Psicólogo é fundamental para o sucesso de qualquer programa alternativo de resolução de conflitos. No Distrito Federal, existe uma estrutura denominada Núcleo Psicossocial do Tribunal de Justiça, que é uma referência em termos de excelência17
O Promotor raramente fala com a vítima, quando devia orientá-la sobre seus direitos, principalmente sendo pessoa de baixa renda, quando ele seria, a nosso ver, obrigado a isso - art. 68, do Código de Processo Penal.18
Op. Cit. Supra, nota 3, passim.19
JERUSALINSKY, Alfredo.Psicanálise em Tempos de Violência, Somos Todos Violentosn.12 Associação Psicanalítica de Porto Alegre20
Culturalmente, não se vislumbra incompatibilidade a não ser aquela originada de preconceitos tais como "no Brasil isso não funciona".21
http://www.tjdf.gov.br/institucional/justicom/telas/index.htm22
Com a mesma formatação do Projeto Justiça Comunitária, existe também no Tribunal de Justiça do Distrito Federal o Programa de Estímulo à Mediação.23
Isso não basta, porque a Justiça Restaurativa não é necessariamente para crimes de menor potencial ofensivo.