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É inconstitucional atribuir às polícias militares a elaboração do termo circunstanciado previsto na Lei nº 9.099/95

30/08/2007 às 00:00
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Muito se tem discutido atualmente quanto à possibilidade de lavratura de Termo Circunstanciado de Ocorrência por policiais militares. Esta medida inclusive vem sendo adotada em alguns estados da Federação, encontrando grande resistência por parte das polícias civis.

De um lado, os que defendem a adoção de tal prática, baseando-se no caráter singelo do termo circunstanciado, por eles referido como um "mero boletim de ocorrência um pouco mais detalhado", que os policiais militares estariam aptos a emitir. Alegam assim seria possível desafogar as polícias civis, dando maior agilidade ao procedimento dos Juizados Especiais Criminais.

De outro lado, os que defendem a tese de que a lavratura do termo circunstanciado por policiais militares seria usurpação de função constitucionalmente atribuída às polícias judiciárias.

Pergunta-se: é constitucional a legislação que atribua às polícias militares a lavratura de Termo Circunstanciado? A resposta correta é: não, com a devida vênia aos que não comungam desta hóstia.

Isto porque, ao contrário do que muitos defendem, o termo circunstanciado, segundo a sistemática adotada pela Lei nº 9.099/95, não dispensa a adoção de atos de natureza investigatória, ainda que mais singelos se comparado ao inquérito policial. Neste sentido, a autoridade policial não está dispensada de ouvir – informalmente, friso - os envolvidos (autor do fato e vítima) e as testemunhas, se houver; de requisitar os exames periciais pertinentes [01], etc, até que se forme uma convicção quanto aos pormenores que cercam o fato tido como delituoso [02].

Nesse sentido é o posicionamento de Julio Fabbrini Mirabete, que, ao abordar a questão da elaboração do termo circunstanciado, verbera:

Deve a autoridade policial lavrar um ‘termo circunstanciado’ da ocorrência, ou seja, elaborar um relato do fato tido como infração penal de menor potencial ofensivo. Esse termo de ocorrência não exige requisitos formalísticos, mas deve conter os elementos necessários para que se demonstre a existência de um ilícito penal, de suas circunstâncias e da autoria, citando-se de forma sumária o que chegou ao conhecimento da autoridade pela palavra da vítima, do suposto autor, de testemunhas, de policiais etc. Em resumo, devem ser respondidas as tradicionais questões: Quem? Que meios? O quê? Por quê? Onde? E Quando? Nada impede que o termo de ocorrência seja elaborado com o preenchimento dos espaços em branco de formulários impressos, o que, aliás, facilita sua feitura e previne omissões. Pode e deve a autoridade policial fazer constar dos autos, sempre de forma resumida, eventuais versões diferentes do autor do fato e da vítima e também de testemunhas. Deve também conter o relato de eventuais investigações sumárias e diligências já realizadas (apreensão dos instrumentos, do produto do crime e de outros bens), bem como eventual croqui do local do crime, em especial nos delitos de trânsito, a notícia da determinação de exames periciais etc. Devem ser juntados ao termo os documentos relacionados com a ocorrência, dados sobre os antecedentes do autor do fato para os fins do art. 76, § 2.º, I e II etc. Assim, ao contrário do que ocorre com o ‘boletim de ocorrência’, o termo circunstanciado, com os elementos que o acompanham, constitui a própria informatio delicti, ou seja, o instrumento necessário destinado a fornecer os elementos para que o titular da ação penal (o Ministério Público na ação penal pública e o ofendido na ação penal privada) possa exercer o seu direito" [03]

O fato, por exemplo, de uma pretensa "vítima" chegar primeiro à autoridade policial noticiando a suposta ocorrência de crime contra si perpetrado não atribui a ela, necessariamente, a condição de "vítima". Exige-se, portanto, que a autoridade policial proceda com cautela, no sentido de que promova um singelo apuratório, visando identificar a autoria da prática delitiva, as circunstâncias em que ocorreu o crime, se dessas circunstâncias infere-se a ocorrência de um crime, e se esse crime se trata ou não de delito anão. A adoção de tais cautelas, antes de constituir afronta aos princípios da celeridade e da simplicidade que informam o procedimento dos Juizados, encontra arrimo no princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

A elaboração de termo circunstanciado e seu encaminhamento a Juízo sem uma análise mais acurada quanto à sua necessidade, ao invés de contribuir para uma tempestiva pacificação social, serviria como entrave a esta pacificação, na medida em que sobrecarregaria os Juizados com inúmeros procedimentos, aqui e acola destituídos de justa causa, movimentando desnecessariamente a já combalida máquina judiciária. Daria ensejo, antes de tudo, a transações temerárias. A atuação da polícia deve funcionar então como um filtro, de forma que somente as questões que reclamem tutela penal possam chegar a Juízo, em homenagem ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal. É inolvidável que o Direito Penal possui caráter subsidiário.

Não de pode atribuir ao termo circunstanciado a qualidade de um mero boletim de ocorrência [04]. Imaginemos, por exemplo, a situação em que não fosse alcançada a composição penal (transação) no Juizado. Inconcebível a tese de que o Ministério Público estaria, neste caso, legitimado a oferecer denúncia com base em um "mero boletim de ocorrência", ainda que se tratando de crime de menor potencial ofensivo. Imaginemos ainda - o que é pior - a situação em que se lograsse êxito na transação penal, com a aplicação imediata de pena, arrimada unicamente num "mero boletim de ocorrência" [05]. Assim, necessita o Ministério Público – ou o querelante - de elementos mais robustos para assim proceder, vale dizer, de elementos mínimos que sirvam de supedâneo à proposta de transação penal ou à deflagração da actio poenalis, sob pena de constrangimento ilegal por ausência de justa causa.

De mais a mais, o que se observa é que por vezes a autoridade policial se depara com situações em que, debruçando-se sobre um determinado fato chegado ao seu conhecimento, encontra dificuldade para concluir em que tipo(s) penal(ais) se subsume(m) aquela(s) conduta(s), ou ainda se naquele caso específico ocorreria concurso de crimes, crime continuado [06], etc. É inescondível que as polícias judiciárias, dirigidas por delegados de polícia de carreira, e, portanto, bacharéis em Direito, estão tecnicamente em condições mais favoráveis para proceder nestes casos, levando-se em consideração ainda o fato de que, ao contrário das polícias militares, seus integrantes contam com formação específica para proceder a investigações.

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Tomemos como exemplo a situação flagrancial relativa a crime de porte de substâncias entorpecentes para uso próprio. Como distingui-lo do crime de tráfico de substâncias entorpecentes? À evidência deve a autoridade policial cercar-se de determinadas cautelas, realizando as oitivas necessárias e providenciando para que se realizem os exames periciais necessários [07], de modo que, formando sua convicção de que no caso não se trata de tráfico, sinta-se segura a autoridade policial para, nos termos da Lei 9.099/95, colocar o flagrado em liberdade sob compromisso de comparecimento ao JECrim. Isto porque, a exemplo de inúmeras situações fáticas, é bastante tênue a fronteira entre as configurações dos crimes de maior e de menor potencial ofensivo [08]. Assim, em muitos casos a colocação imediata ou não em liberdade do indivíduo surpreendido em estado de flagrância irá depender justamente da apreensão dos fatos da forma mais aproximada da realidade, bem como de sua correta classificação jurídica por parte da autoridade policial [09].

São necessários, portanto, que sejam realizados atos tipicamente investigatórios.

E se são necessários atos investigatórios, as polícias militares não têm atribuição para a lavratura de termo circunstanciado, sob pena de vulneração de seu papel constitucional, conforme preceituado no art. 144 da CF:

art. 144...

(...)

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

(...)

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

(...)

§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.(grifei) [10]

Vale dizer, o Constituinte foi claro ao traçar o papel de cada um dos órgãos da segurança pública, de modo que as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais ficaram a cargo das polícias civil e federal (polícias judiciárias), ao passo em que a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública ficou a cargo das polícias militares (polícia administrativa). O próprio constituinte excepcionou esta regra, de modo que a apuração de crimes por parte das polícias militares restringe-se às infrações penais militares, comumente através do Inquérito Policial Militar. Em outras palavras, as polícias militares agem preventivamente (ao estilo "Cosme e Damião" [11]), visando evitar, ou desestimular, o cometimento de crimes, ao passo em que as polícias federal e civis agem repressivamente, após o cometimento de crimes [12].

Mas, afinal, as polícias militares podem lavrar termo circunstanciado? Conforme se infere do que acima se expôs, qualquer norma infraconstitucional que atribua às policias militares tal prática é inconstitucional, com a devida vênia aos que pensam de modo diverso, especialmente pelo que foi estabelecido no Enunciado nº 34, do FONAJE [13]. Mas nem por isto o termo circunstanciado elaborado por um policial militar será imprestável. Constitui, portanto, mera irregularidade o termo circunstanciado assim lavrado. Isto porque, da mesma forma que o inquérito policial é dispensável, também o é o termo circunstanciado lavrado pelas polícias judiciárias, de modo que, ao termo circunstanciado elaborado por autoridade destituída de atribuição, cumpre ao Ministério Público, bem como ao magistrado, à analise do caso concreto, atribuir-lhe o valor que lhe pareça merecer. Por certo que neste caso será mais acentuado o valor relativo da informatio delicti.

Agora o que merece ser ressaltado é que o termo circunstanciado, assim como o inquérito policial e qualquer outra peça informativa, não deve ser visto como um fim em si mesmo. Já é assente na doutrina e na jurisprudência que os vícios que porventura maculem estas peças informativas não contaminam uma futura ação penal. A Receita Federal, o Banco Central, o COAF, as CPIs, as Comissões de Sindicância [14], o Ministério Público, os advogados (Por que não?! Na defesa de seus clientes, por exemplo) e até mesmo o particular [15] (a velhinha de Copacabana que o diga [16]) podem realizar investigações criminais, com esteio nas quais o dono da ação (comumente o MP), fazendo o devido juízo de valor sobre "o dossiê" produzido, irá requerer ao Estado-Juiz alguma providência, seja denunciando, seja solicitando designação da audiência preliminar prevista na Lei nº 9.099/95, seja pedindo novas diligências, seja pedindo o arquivamento, etc. Portanto, o termo circunstanciado que porventura venha a ser lavrado por policial militar não deixará de possuir valor para o processo penal, ainda que mais relativo se comparado ao elaborado pelas polícias civis. A problemática reside em atribuir-se às polícias militares, como atividade ordinária, a lavratura de termo circunstanciado. Ouso dizer que maiores prejuízos do que ao processo penal serão os prejuízos à segurança pública, à medida em que se desloca para realização de atividade cartorária o agente encarregado do policiamento ostensivo.


NOTAS

  1. Prescreve o art. 69 da Lei 9099/95: "Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários." (grifei)
  2. O STJ já decidiu que, quando a complexidade do caso exigir, v.g., autoria desconhecida, deve a autoridade policial instaurar inquérito na apuração de crime de menor potencial ofensivo (STJ - HC 26988 Processo: 200300218297 - QUINTA TURMA - Relator Felix Fischer - Decisão unânime – Data da decisão 21/08/2003)
  3. in Juizados especiais criminais: comentários, jurisprudência, legislação — 3.ª ed. — São Paulo: Atlas, 1998, p. 62.
  4. No Dicionário Aurélio, "circunstanciado" quer dizer "Enunciado com todas as circunstâncias; pormenorizado, minuciado "
  5. Já é assente na doutrina e na jurisprudência que a sentença que homologa a transação penal possui natureza condenatória, apesar de imprópria.
  6. Considerando o entendimento do STJ, no sentido de que, no caso de concurso de crimes ou de crime continuado, para fins de beneficiamento com os institutos da lei 9.099/95, os delitos não devem ser analisados isoladamente: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A HONRA. CONCURSO MATERIAL. TRANSAÇÃO PENAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMUNIDADE JUDICIÁRIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. I - No caso de concurso de crimes, a pena considerada para fins de apresentação da proposta de transação penal (Lei nº 9.099, art. 76), será o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas ao delitos. Com efeito, se desse somatório resultar um período de apenamento superior a 2 (dois) anos, fica afastada a possibilidade de aplicação do benefício da transação penal. II - "O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, ou seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de (01) anos." (Súmula nº 243/STJ). (Omissis) (Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: HC - HABEAS CORPUS – 29001 Processo: 200301096950 UF: SC Órgão Julgador: QUINTA TURMA Data da decisão: 21/10/2003 Documento: STJ000517991 Relator Felix Fischer)
  7. Ainda que a autoridade policial se utilize de toda a sua experiência, para que se faça a distinção, por exemplo, de que a suposta "maconha" apreendida não se trata de "estrume de boi", imprescindível, processualmente falando, é que se realize exame pericial (no caso, o toxicológico), através do qual os experts irão aferir o peso, a natureza, etc, do material apreendido. Com base no laudo pericial, conjugado a outros dados colhidos, é que a autoridade policial poderá formar sua convicção se se trata ou não de delito, bem como se se trata ou não de delito anão.
  8. Arrolo também como exemplo as diversas situações em que se suscitam dúvidas quanto à gravidade de uma agressão física, cujo fato, a depender da situação, poderia se subsumir em algumas das seguintes figuras típicas: vias de fato, injúria real, lesão corporal leve, grave e gravíssima, violência doméstica, tortura, etc.
  9. Embora seu posicionamento jurídico não vincule o Ministério Público, nem muito menos o Juiz, há determinadas situações em que se exige um ato decisório, por parte da autoridade policial, quanto à capitulação jurídica dos fatos, seja para analisar se é ou não hipótese de prisão em flagrante, seja para analisar se é hipótese ou não de arbitramento de fiança, etc.
  10. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
  11. Esta é a referência que se faz aos policiais militares que, em dupla e a pé, promoviam rondas pela cidade, por sinal muito difícil de se ver nos dias atuais.
  12. Ao tratar do IPM, prevê o Código de Processo Penal Militar, em seu art. 10, 3º, que: Se a infração penal não fôr, evidentemente, de natureza militar, comunicará o fato à autoridade policial competente, a quem fará apresentar o infrator. Em se tratando de civil, menor de dezoito anos, a apresentação será feita ao Juiz de Menores.
  13. Enunciado 34 - Atendidas as peculiaridades locais, o termo circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar.
  14. . Todos eles logicamente no exercício de suas atribuições, sendo a investigação criminal, portanto, realizada de forma indireta.
  15. . É que autoriza expressamente o CPP, em seu art. 27, quando prescreve: Art.27.Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.
  16. . É o caso amplamente divulgado na imprensa de que uma aposentada, moradora do bairro de Copacabana (RJ), diante da traficância realizada em frente ao seu apartamento e indignada com a inércia policial, comprou uma filmadora e iniciou uma investigação por conta própria. Segunda a imprensa, as filmagens desta senhora duraram dois anos e renderam 32 horas de gravação, em 22 fitas. Com tais imagens, a polícia prendeu, com ordem judicial, 22 pessoas, dentre elas 07 policiais militares, que estariam envolvidos no tráfico.
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Sobre o autor
Rodrigo Soares da Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Servidor do Ministério Público Federal em Maceió (AL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodrigo Soares. É inconstitucional atribuir às polícias militares a elaboração do termo circunstanciado previsto na Lei nº 9.099/95. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1520, 30 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10342. Acesso em: 20 abr. 2024.

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