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Estupro presumido: apontamentos acerca da presunção de violência elencada no art. 224, alínea "a" do Código Penal

01/10/1999 às 00:00
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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Segundo a Doutrina, crime é todo fato típico e antijurídico, condicionado ao elemento da culpabilidade, que é a reprovação ao agente pela contradição entre a sua vontade e a vontade da lei, assim esclarece Delmanto.(1)

Para o agente ser punido, na ocorrência do crime, o mesmo deve ter a consciência da reprovação de seu ato ante o ordenamento jurídico vigente. Entretanto, a lei abre espaço para a intervenção do Estado na ocorrência de crimes que se observa uma ausência de culpa.

Nos crimes contra ao costumes, o legislador criou uma responsabilidade objetiva, ao tachar as hipóteses de violência presumida.

O art. 224 do Código Penal reza:

Presume-se a violência, se a vítima:

a) não é maior de catorze anos;

b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;

c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

(grifos propositais)

O objeto de nossa pesquisa é a posição doutrinária e jurisprudencial ante a aplicação de violência presumida quanto à idade nos crimes contra os costumes.


2. CRIMES CONTRA OS COSTUMES – VIOLÊNCIA PRESUMIDA – IDADE

A questão da aplicação da violência presumida quanto à idade da vítima ainda não é pacífica tanto nos Tribunais, como na Doutrina. O grande ponto da discussão é se a presunção tem caráter absoluto ou relativo, em relação à idade da vítima.

Em defesa da presunção absoluta, argumenta-se que é sempre inválido o consentimento de uma menor de 14 anos, mesmo tendo um desenvolvimento físico e psíquico superior a sua idade, em razão da idade da vítima ser elementar do tipo penal.

Restringe-se a uma interpretação literal, acrítica.

Nesse diapasão, Bento de Faria, em seu Código Penal Brasileiro Comentado, Volume 6, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1961.

Entretanto, a maioria dos doutrinadores inclinam-se para a presunção relativa de violência. DAMÁSIO DE JESUS(2) vem proferir seu ensinamento no sentido de que "a presunção de violência, no caso de a vítima não ser maior de catorze anos, é relativa, cedendo na hipótese de o agente incidir em erro quanto à idade desta, erro este plenamente justificável pelas circunstâncias. Exs.: meretriz de porta aberta, certidão falsa de nascimento apresentada pela vítima, aparência de maior idade pelo aspecto físico, etc."

E o mestre conclui:

"Se o agente estiver na dúvida quanto à idade da vítima, incidirá o art. 224, a, do CP, sendo presumida a violência..."

Clara é a lição de MIRABETE(3), que no seu Manual de Direito Penal, leciona: "não se caracteriza o crime, quando a menor de 14 anos se mostra experiente em matéria sexual; já havia mantido relações sexuais com outros indivíduos; é despudorada e sem moral; é conrropida; apresenta péssimo comportamento. Por outro lado persiste o crime ainda quando menor não é mais virgem, é leviana, é fácil e namoradeira ou apresenta liberdade de costumes..."

Assim, pondo os olhos para a questão, verifica-se que não há o que se falar em presunção absoluta atendendo a uma interpretação sociológica e sistemática desta norma penal.

Afigura-se inadequado outro entendimento.

DELMANTO(4), em seu festejado Código Penal Comentado, afirma, em suas anotações, que há 10 posições existentes:

1º) a presunção é relativa;

2º) a presunção só cede em vista de erro plenamente justificável, pois, se age na dúvida, há dolo eventual;

3º) a presunção cai pelo fato de aparentar mais idade, escondendo a verdadeira e tomando a iniciativa de realizar a cópula;

4º) a presunção não cai pelo fato de aparentar mais idade;

5º) a presunção cede, se a vítima já havia mantido relações com outras pessoas ou era promíscua;

6º) é mister que seja inocente, ingênua, e totalmente desinformada sobre sexo;

7º) a presunção não cede pelo fato de não mais ser virgem;

8º) na dúvida, não incide a presunção;

9º) a presunção é absoluta;

10º) a presunção cede, se vivia em regime de concubinato com o acusado, com consentimento dos pais.

Os Tribunais, acompanhando o entendimento da maioria dos doutrinadores, tem decidido pela relatividade da presunção de violência do art. 224, alínea "a" do CP.

Neste sentir, clara é a posição do STF, no julgado, cuja relatoria coube ao Ministro Marco Aurélio, do Habeas Corpus n.º 73.662 - MG, D.J.U. 20.09.96, ora transcrito:

EMENTA: ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO- VIOLÊNCIA PRESUMIDA - IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea "a", do Código Penal. (grifos ora assinalados)

Segue a jurisprudência do STF:

EMENTA: HABEAS-CORPUS. CRIME DE ESTUPRO PRATICADO CONTRA MENOR, COM TREZE ANOS DE IDADE. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. CONHECIMENTO E INDEFERIMENTO. ORDEM DE HABEAS-CORPUS CONCEDIDA EX-OFFÍCIO: CASAMENTO DA VÍTIMA COM TERCEIRO. 1. No caso de estupro praticado contra menor de 14 anos, a violência, que é circunstância elementar do crime (CP, art. 213), não precisa ser real, pois é presumida pela Lei (CP, art. 224, a). 2. Inocorrência, no caso, de qualquer peculiaridade especialíssima que possa justificar a mitigação do rigor da norma, a fim de que não seja feita injustiça. 3. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido. 4. Ordem de habeas-corpus concedida ex-offício em face da extinção da punibilidade, pelo casamento da vítima com terceiro, eis que o crime foi praticado sem violência real ou grave ameaça e que a vítima demonstrou, expressamente, desinteresse no prosseguimento da ação penal (CP, art. 107, VIII; RI-STF, art. 193, II).

(Habeas Corpus n.º 74700 - PR, D.J.U. 09.05.97, Relator Ministro Maurício Correa) (grifos nossos)

É mister destacar o entendimento do Relator Desembargador Adalto Dias Tristão do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, no julgamento da Apelação Criminal n.º 008920004580, em data de 23.11.94, que espanca qualquer posição contrária sobre a relatividade da presunção de violência:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO - VIOLÊNCIA FICTA OU PRESUMIDA. Vítima que possui compleição robusta, aparentando ser mulher formada. Restou provado que o apelado foi por várias vezes procurado pela vítima, para com ele manter relações sexuais. O apelante é pessoa humilde que laborou em erro quanto a idade da moça que o procurava insistentemente para com ele manter congresso carnal. E da jurisprudência não configurar estupro, por violência presumida, quando a vitima, apesar da tenra idade, além de tomar a iniciativa para o ato sexual, apresentava ser mulher formada. Apelo improvido, a unanimidade.- (grifos nossos)

Vejamos, por pertinência, a sábia decisão do Relator Desembargador Carmo Antônio do Tribunal de Justiça do Amapá, no julgamento dos Embargos Infringentes na ACr n.º 128.93, que passamos a transcrever:

EMENTA: PENAL - ESTUPRO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - RELEVÂNCIA DO COMPORTAMENTO MORAL DA VÍTIMA - INEXISTÊNCIA DE DÚVIDA QUANTO À SUA IDADE. - 1) Nos crimes de estupro, presume-se a violência, quando a vítima não tem experiência em matéria sexual e nem é despudorada e sem moral. - 2) Sendo do conhecimento do agente que a vítima, ao tempo do delito, tinha somente 13 anos, não lhe socorre o argumento de que ela apresentava desenvolvimento corporal incompatível com sua idade. - 3) Embargos improvidos. (Grifos propositais)

Não obstante, há decisões em contrário. Ressalte-se o entendimento do Tribunal de Justiça de Goiás, no julgamento da Apelação Criminal n.º 14194.0.213, D.J.E. 11.04.95, cuja relatoria do Desembargador Juarez Távora de Azeredo Coutinho, optou pela presunção absoluta, senão vejamos:

EMENTA

"Recurso de apelação. Estupro. Violência presumida. Se a pessoa ofendida, nos crimes sexuais, não for maior de catorze anos, presume-se por avaliação feita pelo legislador, que o autor do crime atuou com violência, ainda que na realidade tal não tenha ocorrido.

A presunção legal absoluta da violência deve prevalecer, afastada qualquer dúvida sobre a maturidade da ofendida em se tratando de menor sem auto determinação no campo sexual, incapaz de decidir, com liberdade dada sua pouca idade e sem condições pessoais para repelir propostas feitas pelo namorado. Recurso improvido". (grifos acrescentados)

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo já exposto, nota-se uma tendência tanto da Doutrina, como dos Tribunais à aplicação da presunção relativa de violência nos crimes contra os costumes. Para nós, parece ser a posição mais coerente.

Presumir de maneira absoluta a existência de violência em fatos onde ela não concorre, faz-se surgir certas injustiças, senão vejamos.

Puniria-se com pena igual um indivíduo perigoso, que mediante violência real, estuprou uma criança de 10 anos, e um jovem diante de seu 18 anos que manteve relações sexuais com sua namorada de 13 anos, já experiente em atos libidinosos, que aparentava mais idade e que consentia com aquele íntimo relacionamento.

É de vital importância ressaltar que a Constituição Federal deve proteger a criança, mas não deve tratar de forma equivalente criminosos e jovens liberto de qualquer maldade.

O STJ, no julgamento do Resp 46.424, decidiu pela inconstitucionalidade do art. 224 do CP por desprezar a responsabilidade subjetiva; sendo intolerável a responsabilidade objetiva:

EMENTA: RESP - PENAL - ESTUPRO - PRESUNÇÃO DE VIOLENCIA.

          - O direito penal moderno e direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se a conduta delituosa. Conduta e fenômeno ocorrente no plano da experiência. E fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. O direito penal da culpa e inconciliável com presunções de fato, que se recrudesça a sanção quando a vítima é menor, ou deficiente mental, tudo bem, corolário do imperativo da justiça. Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O principio da legalidade fornece a forma e princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva. Na hipótese dos autos, entretanto, o acórdão fundamentou a condenação na conduta do réu, que teria se valido de grave ameaça para conseguir o seu intento.(Sexta Turma, Relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Resp 46.424, D.J.U. 08.08.1994) (grifos nossos)

O Estado como titular do "jus puniendi" deve sempre buscar a verdade real dos fatos, como um dos princípios que sustentam o Direito Penal.

Deve-se banir do ordenamento jurídico certas situações que geram notáveis injustiças, como corolário do reconhecimento da dignidade humana, dando vida a mais pura Justiça.

O juiz não deve ser somente a boca que pronuncia as palavras da lei.

Não estamos, também, diante de um período napoleônico, amarrados pela Escola Exegética.

O juiz, nas sendas do Direito, está, sem dúvida, submetido á lei. Se não houvesse essa submissão, estaria instaurado o regime arbitrário, contrário ao Estado de Direito adotado por nossa Carta Magna, por cujo retorno tanto lutamos no Brasil, depois de um longo e triste período de ditadura militar.

Mas o "regime de legalidade", em oposição ao regime de arbítrio, não significa submeter o magistrado ao culto idólatra da lei.

O valor maior, portanto, é a Justiça. Estrela guia que acompanha o juiz no seu ofício. Se há um conflito entre a lei e a Justiça, prevaleça a Justiça, por fidelidade à própria lei, que não é um amuleto, mas deve ter como fim a Justiça, o bem comum e os valores oriundos da Ética.

É missão de cada um, operador do instrumento de paz social a que se cognominou Direito, indagar de seus pressupostos básicos à lucidez das áreas multidisciplinadores da Ciência Jurídica, para dar real sentido a nossa Constituição.


NOTAS

(1) Delmanto. Código Penal Comentado. 4º Edição. Edição Renovar. Pág. 409.

(2) DE JESUS, Damásio E. 3º Volume, 12º Edição, pág. 141.

(3) MIRABETE, Julio Fabrini. Volume 2, 12º Edição. Pág. 478.

(4) Delmanto. Código Penal Comentado. Pág. 410.


BIBLIOGRAFIA

DE JESUS, Damásio E. Direito Penal. Parte Especial. 3º Volume. 12º Edição. Ed. Saraiva. São Paulo, 1998.

DELMANTO, Celso. DELMANTO, Roberto. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. Código Penal Comentado. 4º Edição. Edição Renovar. São Paulo, 1998.

INFORMA JURÍDICO, CD-ROM de Jurisprudência e Ementário.

INTERNET. Site: www.stj.gov.br

Site: www.stf.gov.br

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. 2º Volume. Parte Especial. 12º Edição. Ed. Atlas. São Paulo, 1997.

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Sobre o autor
Bruno Macedo Dantas

acadêmico de Direito na Universidade Potiguar, em Natal (RN)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Bruno Macedo. Estupro presumido: apontamentos acerca da presunção de violência elencada no art. 224, alínea "a" do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1040. Acesso em: 28 mar. 2024.

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