A obra da chamada Tirolesa do Pão de Açúcar [1], Monumento ícone do Brasil e do Rio de Janeiro, contestada por inúmeros movimentos sociais, como associações de moradores, não só dos bairros, mas também da Cidade [2], por especialistas [3], por entidades profissionais [4] e até por entidades internacionais de preservação [5], segue firme e impávida, ratificando o ditado usado nos “malfeitos” brasileiros: “os cães ladram, a caravana passa”. E quem poderia, de fato e de direito, deter a continuidade da mutilação no Monumento?
Movimentos de políticos, com realização de audiências públicas na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, e até visita desses legisladores ao local, não têm, a meu ver, qualquer efeito prático no estágio em que as obras se encontram, pois esta questão não diz respeito a qualquer tipo de elaboração legislativa ou fiscalização de competência do Legislativo. Isto é apenas agito midiático, que teria sentido e eficácia em momentos de debates que deveriam ter ocorrido (mas, não ocorreram) anteriormente às situações já constituídas.
Para barrar o processo de mutilação do bem nacional tombado e patrimônio mundial, abrindo assim um espaço para rediscussão e revisão do licenciamento da obra, existem apenas duas formas: a primeira seria a própria Administração Pública, no caso o IPHAN ou o Município – os dois entes que participaram ativamente do processo de licenciamento, tendo tomado conhecimento das inúmeras manifestações e argumentos apresentados pelos diversos setores da sociedade quanto a irregularidades/ilegalidades do licenciamento – poderia suspender a obra, abrindo oportunidade para o reexame administrativo da licença. E, verificando a ocorrência de irregularidade/ilegalidade, deveriam agir para anulá-la, pois este é o seu dever, segundo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal [6].
Mas, é difícil esperar uma atitude como esta, nobre e prudente, de qualquer nível da Administração Pública, federal ou municipal, quando ambas lidaram com este processo de licenciamento em segredo, por quase dois anos, sem qualquer cuidado em ouvir a sociedade civil. Não seria agora que teriam uma atitude democrática e aberta à prática de participação social!
A segunda forma, e derradeira alternativa, seria através de decisão judicial (de Juiz) que, provocado por uma ação, e convencido da irregularidade/ilegalidade do licenciamento, poderia decidir, no âmbito deste processo, e até em decisão liminar, suspender a obra para examinar, com lupa e cuidado, as alegações de irregularidade/ilegalidade da licença. Mas, para isso, o Judiciário teria que ser necessariamente provocado, repito, através de uma ação judicial. E aí que mora o busílis da questão.
Registre-se aqui que, ao contrário do que o senso comum acredita, ao Ministério Público, seja ele o federal ou o estadual, não é dada competência legal de embargar qualquer obra irregular, proibí-la ou anular sua licença; só um Juiz pode fazê-lo. O que acontece é que, ao iniciar um processo investigativo civil sobre um fato ou ato administrativo irregular, o Ministério Público já está acenando com uma possibilidade de ação judicial e, com isso, algumas vezes, consegue paralisar o prosseguimento de “malfeitos” junto à Administração Pública. Mas isso depende de a Administração acreditar, ou não, que a investigação civil dará algum resultado efetivo ou concreto.
Mas, como propor uma ação judicial? Qual o caminho? Quem propõe? E, principalmente, quais os custos?
No caso de danos ao patrimônio cultural, ao meio ambiente ou ao urbanismo, – chamados de direitos coletivos/difusos – só dois caminhos judiciais são disponibilizados à sociedade: a ação popular [7], e a ação civil pública [8]. Ambos os tipos de ações judiciais implicam em um alto custo, seja para as pessoas, seja para as associações da sociedade civil; e isto tem impactado enormemente o acesso direto da sociedade à Justiça, como veremos a seguir.
A diferença entre a proposição de uma ação popular e de uma ação civil pública está em quem pode propor a ação. Em outras palavras, ser o autor da ação. No caso da ação popular, o autor da ação só pode ser um cidadão, a pessoa física, eleitor. No caso da Ação Civil Pública (ACP), nunca uma pessoa física pode ser autora. A lei que criou a ACP determinou que só entidades [9] podem propô-la, e, dentre estas entidades, as associações civis e o Ministério Público.
Ora, a questão é que, para propor qualquer ação judicial, seja o cidadão através de uma ação popular, seja uma associação civil através de uma ação civil pública, ambas demandam necessariamente contratar um advogado. E, para isto, é necessário recursos financeiros normalmente altos, para pagar, por um longo tempo, este serviço. É comum que ações deste tipo durem de 5 a 15 anos! Este fato inviabiliza, ou no mínimo, refreia sobremaneira, o acesso à Justiça da sociedade civil e dos cidadãos na luta direta por esses seus direitos fundamentais coletivos/difusos!
Como consequência, e para evitar o ônus civil de manter por anos uma ação judicial, com pagamento de advogado para defesa dos direitos que são coletivos/difusos (e não pessoais), as associações civis e cidadãos têm recorrido incessantemente ao Ministério Público, oficiando-lhe para dar notícia dessas infrações, e solicitando-lhe que proponha a ação judicial necessária à paralisação dos malfeitos administrativos.
Acontece que o Ministério Público, seja ele federal ou estadual, tradicionalmente mais afeito às ações públicas penais, tem tido bem pouca estrutura interna dedicada ao tamanho dos problemas e das infrações aos direitos coletivos/difusos. E, além disso, é comum constatar que alterações na sua estrutura administrativa, e as movimentações dos promotores dedicados a esta área vêm prejudicando não só a apuração dos danos aos direitos coletivos/difusos, como também a continuidade e a eficiência das ações civis públicas relacionadas a esses temas.
E, quando ao final de longa apuração (por vezes por mais de meses, quiçá anos), a notícia de danos ao interesse público resulta na proposição de ação judicial pelo Ministério Público, a sociedade passa a ter que torcer pela celeridade de decisões judiciais que garantam a própria existência destes direitos, muitas vezes próximos de desaparecer.
Para tanto, é fundamental que o Judiciário, acostumado que está em lidar majoritariamente com conflitos de interesses pessoais e privados, estivesse também bem estruturado, com robustez e eficiência, para resolver estas macroquestões de direitos públicos fundamentais. Isto só seria possível pela compreensão de que estas ações de danos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, ou ao bem-estar urbano são danos a centenas, ou milhares de pessoas, e que a lentidão das decisões judiciais nestes processos pode acarretar a irreversibilidade da perda, pela sociedade, desses mesmos direitos.
Podemos concluir com isto que, ao se garantir, pela lei, os direitos públicos subjetivos fundamentais ao meio ambiente, à preservação do patrimônio cultural, e direito à cidade urbanizada para todos, é necessário que se garanta também a eficácia do acesso à Justiça, como última instância de garantia desses direitos; e que este acesso seja facilitado e desobstruído de seus entraves e retardamentos, sem o quê a concessão desses direitos se resume a meros discursos políticos e legislativos.
Portanto, dar atenção à estrutura administrativa estável e especializada, tanto do Ministério Público, quanto do Judiciário para lidar e resolver os inquéritos e ações relativas aos direitos públicos fundamentais coletivos/difusos, é tão importante quanto sua previsão constitucional e legal. Enquanto isto não ocorrer, os direitos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, e à cidade urbanizada têm corrido o grave risco de irem se acabando, no lento cozimento dos processos judiciais, para deleite dos que acreditam que, somente se pode garantir estes direitos fundamentais através, após, ou subordinado ao fomento da economia e ao crescimento econômico!
Estamos ainda no estágio em que temos somente a previsão constitucional e legal desses direitos públicos fundamentais, mas sem garantia efetiva destes direitos à sociedade, para que esta possa agir, diretamente, sua defesa, o que só se dará pelo acesso desobstruído à Justiça: a sociedade ganhou, mas ainda não os levou…
E este é o caso, infelizmente, da mutilação da grande rocha do penhasco do Pão de Açucar e do Morro da Urca, para as obras esportivas privadas da Tirolesa, que continuam bem, obrigada.
Notas
[1] Ver em : http://www.soniarabello.com.br/existe-licenca-para-matar-o-caso-da-mutilacao-do-pao-de-acucar-no-rio/
[2] Disponível em: https://drive.google.com/drive/u/4/folders/1UwXqh92q8MOv2VTaXeqTK2hH_k-oIxvp
[3] Manifestações Técnicas, disponíveis em:
https://drive.google.com/file/d/1Nh6Iqj-WrYvHsN6KwRzSPRq31yld1-LH/view (Carlos Delphim);
https://drive.google.com/file/d/1L-i44B3dW6BIHWLSUgbqXdtvBirtoD5Y/view (Lia Motta)
https://drive.google.com/file/d/1YTbgQNUbnyBvaJGp_I-ejgEdXc4sNmS3/view (Ephim Shluger)
[4] Manifestações institucionais, disponíveis em:
https://drive.google.com/file/d/1hvsVCNfK4YOP-bCJlwcL7vj3ibUD0drv/view
https://drive.google.com/file/d/1IWGj59-aT7bfvfQ7G4fYpOuLwrpAA3yi/view
https://drive.google.com/file/d/10QHOfGzBSWEIU9bgV1d-dlAtRo4FVaMK/view
[5] Manifestação de Entidades Internacional de Preservação, disponível em https://drive.google.com/file/d/1wL2v_sfOKH6qC-vzHmFHN19KKmReveHR/view
[6] Súmula 473 do STF: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
[7] Lei de ação popular, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4717.htm
[8] Lei de ação civil pública, disponível em: http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%207.347-1985?OpenDocument
[9] legitimidade para propositura da ACP (lei 7347/85): Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V – a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.