Um dos novos modismos politicamente corretos com vistas à indicação de supostas virtudes de seus adeptos é a alegação corrente de que não se deve referir às pessoas que sofreram a escravidão como “escravos”, mas como “escravizados”.
Há uma distorção da linguagem e toda uma construção intelectual (ou pseudointelectual), sustentando que o emprego da palavra “escravo” seria componente de um nefasto “racismo estrutural” (sic) e teria o objetivo de instaurar uma “categoria fixa” quando, na verdade, os chamados “escravos” foram “escravizados” contra a sua vontade e por período e circunstâncias passageiros.
Vejamos um exemplo dessa espécie de manifestação:
De fato, a identidade que construímos – o escravo – nunca existiu, senão num léxico que olhava para os africanos como passivos e desprovidos de subjetividade. Os movimentos anticoloniais, as lutas dos movimentos sociais negros no pós-abolição resistiram a essa identificação construída por uma história branca, baseada no dispositivo da branquitude. Os africanos que vieram para o Brasil eram pessoas, reis, rainhas, camponeses, homens e mulheres escravizados contra a sua vontade.
Escravo é, portanto, a produção de uma identidade fixa. Escravizado é uma contingência cruel da vida de uma pessoa, logo, histórica. Abordar em sala de aula o modo como nossa linguagem constitui os objetos de que se ocupa é central, também, na luta antirracista. [1]
Não é aceitável a omissão diante dessas manipulações, sob pena de tornarmo-nos cúmplices do falseamento e da semeadura da ignorância histórica, jurídica e social. Como bem destaca Monedero:
El lenguaje sigue contaminado y lo siguen contaminando los ideólogos, los seudo intelectuales, los periodistas; tanto en artículos de diário como en programas televisivos, tanto en suplementos culturales como en apuntes y textos universitarios. Por tanto, mientras permanezca la enfermidad, el deber de oponerse intelectual y moralmente a la misma también permanece. [2]
O primeiro grande problema com essa postura é que ao invés de procurar a correta descrição histórica dos fatos, com base em fontes primárias e simplesmente naquilo que efetivamente aconteceu, opta-se por uma descrição “histórica” manipulada pela linguagem, ocultando fatos reais e criando fantasias fundadas em posições político – ideológicas. Isso só contribui para a formação de ignorantes e em nada auxilia a devida memória da atrocidade que foi a escravidão no Brasil e no mundo.
Logo de início se vislumbra uma invencionice que é comum, evitando-se a pesquisa e o estudo de bibliografia que realmente narre a escravidão tal como se processou no Brasil, na África e no mundo. É praticamente invariável uma visão terrivelmente provinciana inadequada para a descrição do fenômeno da escravidão.
Alguns ocultam a bibliografia sobre a questão por pura ideologia, outros nem sequer mais sabem de sua existência, estão presos em um buraco escuro de ignorância e não hesitam em puxar jovens para a sua cegueira.
Infelizmente o fenômeno histórico da escravidão atingiu todos os povos, independente da cor e já era uma prática no continente africano quando os europeus ali chegaram para negociar seres humanos. Os árabes e as próprias populações africanas já praticavam há muitos séculos a servidão humana, seja derivada de conflitos tribais, seja em razias de verdadeira caça humana. Portanto, afirmar que a escravidão é algo que atingiu somente a população negra e que foi produto original da civilização ocidental europeia, é uma falsidade ou um erro histórico de proporções épicas, o qual, inobstante, tem sido inculcado nas consciências de nossos jovens por pessoas absolutamente despreparadas intelectual e moralmente para o ensino. Também de mesmas proporções é a falsidade e o erro da afirmação de que as pessoas que foram trazidas, por exemplo, para o Brasil eram somente Reis, Rainhas, camponeses livres etc. Não. Havia pessoas que eram já “escravas” ou, se preferirem, “escravizadas” ou submetidas à “servidão”, ainda que em algum momento tivessem anteriormente ocupado outras posições sociais. Isso devido ao fato de que a escravidão já existia na África há muitos e muitos séculos antes da chegada dos Europeus. É claro que também os Europeus raziaram povos autóctones e realmente tornaram escravos Reis, Rainhas, camponeses etc. Mas, é uma meia-verdade, o que sempre corresponde a uma mentira inteira.
Para maior aclaramento sobre o tema, sugere-se aos interessados a leitura, dentre outras, das obras de Robert C. Davis [3], Tidiane N’Diaye [4] e Jean – Marie Lambert [5].
Importa também esclarecer que não condiz com a verdade a afirmação de que a qualificação de alguém como “escravo” diz respeito a “uma identidade fixa” (sic), quando se sabe que ao longo da História sempre foi possível a libertação por alforria, manumissão, situações em que a condição de “escravo” era temporária etc. Essa espécie de alegação faz com que as pessoas que a recebem, normalmente sob um manto de “autoridade intelectual” de um professor ou orientador, se tornem extremamente limitadas em seu horizonte de conhecimento. E a finalidade da educação deveria ser exatamente o oposto, ou seja, a ampliação dos horizontes de conhecimento das pessoas.
Outro aspecto relevante é que os defensores dessas manipulações linguísticas usam de falácia para sustentar seu ponto, mais especificamente da conhecida “Falácia do Espantalho” [6], criando uma alegação inexistente e impotente e forjando uma vitória argumentativa inevitável. No caso, afirmar que alguém alegaria que os africanos capturados e trazidos ao Brasil para sofrerem a escravidão estariam de alguma forma interessados ou desejariam tal situação. Afirmar que a qualificação de “escravo” traria essa afirmação absurda e indefensável. Pela cabeça de nenhuma pessoa sã poderia passar tal ideia estapafúrdia quanto ao suposto desejo de ser escravo, a não ser que também se esteja referindo a excepcionais casos de patologia mental com relação a indivíduos que pretendam ser submetidos à servidão ou escravidão.
Mesmo quando na antiguidade um autor como Aristóteles menciona a natureza das pessoas, indicando que algumas seriam adequadas à escravidão (e não se tratava de uma questão de cor ou raça naquele contexto), não existe a afirmação de que tais pessoas tivessem a vontade ou desejo de serem escravos. Aristóteles pode ter defendido a escravidão naquele seu contexto histórico – social (e aqui é preciso precaver-se de anacronismos), mas jamais cometeu a insanidade de afirmar uma espécie de anseio por ser escravo. [7] Em suma, o argumento alegado e supostamente derrubado pela manipulação linguística não existe, é um “espantalho” erístico.
Os danos intelectuais e morais ocasionados pela manipulação da linguagem, falseando a História são incomensuráveis, pois atingem o espírito humano e o deformam com potencial de irreversibilidade.
Providencial a passagem de Gurgel, com fulcro nas ideias de Iris Murdoch:
A grande romancista Iris Murdoch está certa: não é nenhum exagero dizer que nos transformamos em criaturas espirituais quando passamos a ser criaturas verbais, porque as diferenças fundamentais, as distinções que realmente importam, só podem ser esclarecidas por meio das palavras. E se as palavras são o espírito, então a qualidade de uma civilização depende da sua habilidade para discernir e revelar a verdade – e discernir e revelar a verdade depende do alcance e da pureza do seu idioma; e também da forma como utilizamos nosso idioma (grifo no original). [8]
A discussão sobre o emprego da palavra “escravo” ou “escravizado” se fosse somente estéril e não altamente destrutiva de saberes, seria um mal menor.
É simplesmente errado histórica e juridicamente afirmar que pessoas foram somente “escravizadas” e não eram efetivamente convertidas em “escravas” em determinadas épocas e lugares. A condição de “escravo” é jurídica e derivada de uma instituição jurídica, a “escravidão”. Uma das debilidades intelectuais criadas pela pretensa eliminação do emprego da palavra “escravo” é a incapacidade das pessoas saberem que é possível ser escravizado sem ser escravo, mas não é viável ser escravo sem ser escravizado. O sistema jurídico que adotava a instituição da “escravidão” e permitia o trabalho escravo atribuía aos indivíduos não a condição de “escravizados”, mas de “escravos”. Esse “status” jurídico geralmente implicava na equiparação dos escravos a coisas ou animais (“res”). Por isso, podiam ser escravizados, explorados, comercializados, castigados etc. Afirmar que os escravos ao longo da História (brasileira e mundial) não existiram e eram escravizados é ocultar ou fingir não saber de todo um arcabouço jurídico e social que abrigava a nefasta instituição da “escravidão” e a condição jurídica de “escravo”. Em suma, é uma alienação inadmissível. E essa alienação pode ensejar uma impressão, com o passar do tempo, de existência supostamente real de uma graduação de gravidade entre ser “escravo” e ser “escravizado”, o que pode contribuir até mesmo, num futuro, para que a condição de “escravizado” seja de alguma forma aceitável, dado o abrandamento que hoje é cultivado com alegadas boas intenções, das quais, conforme o dito popular, “o inferno está cheio”. Num mundo onde já se fala tanto de transumanismo, com o potencial surgimento de uma elite genética, essa espécie de irresponsabilidade linguística e suas consequências no intelecto, na sociedade e na cultura, não pode passar em branco. Quem sabe num futuro horroroso a crença no poder das palavras de mudar a realidade como num “nominalismo mágico”, venha a legitimar o tratamento de alguns humanos menos dotados em comparação com os transumanos, como “escravizados”. Afinal, não seria tão cruel, já que não seriam “escravos”, mas “apenas” (sic) “escravizados”. Parece loucura, não é? Pois é exatamente à insanidade e à debilidade moral e intelectual que a manipulação linguística se dirige.
Na seara jurídica, graduandos que cheguem ao nível universitário com ideias como a criticada neste texto terão muita dificuldade em entender por que há em nosso Código Penal (artigo 149, CP) um crime com “nomen juris” de “Redução a Condição Análoga à de Escravo” e não um crime de “Escravidão” ou “Escravização”. Atualmente ninguém pode ser reduzido a “escravo” porque não existe esse “status” jurídico e nem a instituição da “escravidão”. É, porém, possível que seja tratado “como se fosse” um “escravo”, que seja “escravizado”, hoje sim, apenas escravizado e não escravo. E isso somente ocorre porque a escravidão, com a figura jurídica do “escravo”, foi abolida um dia. Note-se que o jogo de palavras, a manipulação linguística torna não somente a compreensão da evolução jurídica confusa, como também o próprio entendimento da sucessão histórica dos fatos. Tudo fica nebuloso, afetando a capacidade cognitiva das pessoas.
Como explicam Mirabete e Fabbrini:
Refere-se a lei à condição análoga à de escravo por não mais existir a situação jurídica de escravo no país. A escravidão é um estado de direito em virtude do qual o homem perde a própria personalidade, tornando-se simples coisa, e, assim, a condição a que alude a lei é de um estado de fato semelhante àquele. [9]
Analisando a questão sob um prisma interdisciplinar entre o Direito Penal e Direito do Trabalho, Pereira também afirma que a correta denominação para a conduta de exploração do trabalho em condições insalubres e sem a devida contraprestação é de “trabalho em condição análoga à de escravo”, já que desde o advento da Lei Áurea (Lei 3.353, de 13 de maio de 1888), não existe, juridicamente, “trabalho escravo”, mas somente o trabalho desenvolvido numa “condição análoga à de escravo. A figura do “escravo” foi extinta do mundo jurídico brasileiro. [10]
Sim, a figura do “escravo” foi juridicamente extinta, mas existiu. Não é possível adotar uma postura afetada e deliberadamente obliterar parte da História, reescrever o que de fato ocorreu, substituindo o verdadeiro devir histórico por um ato de vontade, sobrepondo a ideologia aos fatos, o “ser” a um “dever – ser” impositivo e voluntarista.
Seria semelhante afirmar que os menores de 16 anos não foram em nossa época “incapazes” para os atos da vida civil, mas “incapacitados”, já que tal condição lhes era imposta por lei (Código Civil artigo 3º.) ou no linguajar estereotipado que se tem cultivado ultimamente, por “opressão de uma sociedade preconceituosa e capacitista” (sic). Acaso num futuro, a capacidade civil se adquira, por exemplo, aos 14 anos, afirmar que os atuais “incapazes” não eram “incapazes”, mas “incapacitados” é uma falsidade histórica e um erro jurídico crasso. Também afirmar que essa era uma condição “fixa” seria falso, já que pode haver casos de emancipação (voluntária, judicial ou legal), isso sem contar o passar do tempo e aquisição da capacidade pela idade. Essas manipulações linguísticas não mudam a realidade em nada, mas embotam o intelecto terrivelmente.
Sirva este texto para denunciar a manipulação linguística a que todos estamos sendo submetidos, mas com mais intensidade nossos jovens, pois que esse é o primeiro passo para a debilitação intelectual e moral necessária com vistas à imposição vertical da hegemonia cultural, mantendo as pessoas presas em “gaiolas de ideias” das quais muito dificilmente poderão se libertar. Aí sim, fazendo surgir uma multidão atônita e impotente de escravizados intelectuais que, talvez um dia, até mesmo possam ser convertidos em “escravos” sem nem mesmo compreender o que está acontecendo e tudo o que perderam.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
DAVIS, Robert C. Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos – Escravidão branca no mediterrâneo, na costa da Berbéria e na Itália, de 1500 a 1800. Trad. Leonardo Castilhone. Campinas: Vide Editorial, 2021.
DORNELES, Mauricio da Silva, PEREIRA, Nilton Mullet. Escravo, não. Escravizado! Disponível em https://sul21.com.br/opiniao/2020/03/escravo-nao-escravizado-por-mauricio-da-silva-dorneles-e-nilton-mullet-pereira/ , acesso em 19.05.2023.
GURGEL, Rodrigo. O Mínimo Sobre Literatura. Campinas: O Mínimo, 2023.
LAMBERT, Jean – Marie. História da África Negra. Goiânia: Kelps, 2001.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MONEDERO, Juan Carlos. Lenguaje, Ideología y Poder – La palabra como arma de persuasión ideológica: cultura y legislación. 2ª. ed. Bella Vista: Ediciones Castilla, 2016.
MURDOCH, Iris. Existentialists and Mystics - Writings on Philosophy and Literature. New York: Penguin Books, 1999.
N’DIAYE, TIDIANE. O Genocídio Ocultado – Investigação histórica sobre o Tráfico Negreiro Árabo – Muçulmano. 3ª. ed. Lisboa: Gradiva, 2020.
PEREIRA, Cícero Rufino. O “Velho” Trabalho Escravo e as Perspectivas do Tema a Partir da EC 81/2014. Revista de Direito do Trabalho. Volume 40, n. 159, p. 13 – 38, set./out., 2014.
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de ter Razão. Trad. Alexandre Krug e Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[1] Cf. DORNELES, Mauricio da Silva, PEREIRA, Nilton Mullet. Escravo, não. Escravizado! Disponível em https://sul21.com.br/opiniao/2020/03/escravo-nao-escravizado-por-mauricio-da-silva-dorneles-e-nilton-mullet-pereira/ , acesso em 19.05.2023.
[2] MONEDERO, Juan Carlos. Lenguaje, Ideología y Poder – La palabra como arma de persuasión ideológica: cultura y legislación. 2ª. ed. Bella Vista: Ediciones Castilla, 2016, p. 18. Tradução livre: “A linguagem continua contaminada e a continuam contaminando ideólogos, pseudo-intelectuais, jornalistas; tanto em artigos de jornais como em programas de televisão, tanto em suplementos culturais como em notas e textos universitários. Portanto, enquanto a doença permanecer, o dever de se opor a ela intelectual e moralmente também permanece”.
[3] DAVIS, Robert C. Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos – Escravidão branca no mediterrâneo, na costa da Berbéria e na Itália, de 1500 a 1800. Trad. Leonardo Castilhone. Campinas: Vide Editorial, 2021, “passim”.
[4] N’DIAYE, TIDIANE. O Genocídio Ocultado – Investigação histórica sobre o Tráfico Negreiro Árabo – Muçulmano. 3ª. ed. Lisboa: Gradiva, 2020, “passim”.
[5] LAMBERT, Jean – Marie. História da África Negra. Goiânia: Kelps, 2001, “passim”.
[6] Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de ter Razão. Trad. Alexandre Krug e Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24. A retórica (no aspecto “erístico”) apresentada por Schopenhauer é explicitada em vários estratagemas. Um deles ficou conhecido como “Técnica do Espantalho”, consistindo em expandir uma ideia alheia, criando um opositor aparentemente potente, quando, na verdade, nada há ou muito pouco a combater. A vitória no debate ou a superação do argumento do opositor é então apresentada como uma grandiosa conquista, quando, na realidade, não passa de uma bravata. Anote-se que não se está aqui também afirmando qualquer “vitória” ou “superação” de ideias, mas tão somente justificando a reação às afirmações em destaque, cabendo a cada leitor fazer seu próprio julgamento quanto aos argumentos apresentados sobre o tema.
[7] ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999, p. 15.
[8] GURGEL, Rodrigo. O Mínimo Sobre Literatura. Campinas: O Mínimo, 2023, p. 109 – 110. Para acesso ao original de Murdoch: MURDOCH, Iris. Existentialists and Mystics - Writings on Philosophy and Literature. New York: Penguin Books, 1999.
[9] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 168.
[10] PEREIRA, Cícero Rufino. O “Velho” Trabalho Escravo e as Perspectivas do Tema a Partir da EC 81/2014. Revista de Direito do Trabalho. Volume 40, n. 159, set./out., 2014, p. 13.