4.Funções da responsabilidade civil
A responsabilidade civil também pode ser estudada segundo suas funções. Na visão de Eugênio Facchini Neto [47], a função clássica da responsabilidade civil é a reparatória, na qual se garante a reparação do dano à vítima do evento, mas o instituto também poderá assumir outras funções, dentre as quais, o jurista destaca a punitiva e a dissuasória.
A função punitiva da responsabilidade civil ressurgiu – pois existiu na antigüidade jurídica, mas foi preterida no decorrer da evolução do direito em razão da prevalência da idéia de que tal espécie de função seria atribuição da esfera penal – da constatação de que a compensação por danos extrapatrimoniais carregava em seu núcleo a idéia de punição ao agente causador do dano. Facchini bem exemplifica o conceito ao asseverar que
Para os familiares da vítima de um homicídio, por exemplo, a obtenção de uma compensação econômica paga pelo causador da morte representa uma forma estilizada e civilizada de vingança, pois no imaginário popular está-se também a punir o ofensor pelo mal causado quando ele vem a ser condenado a pagar uma indenização. [48].
Ademais, cabe referir que os punitive damages, instituto dos sistemas jurídicos da common law, parecem estar perfeitamente alinhados com a função punitiva da responsabilidade civil, que aplica ótica retrospectiva sobre a conduta reprovável e apresenta-se de forma a punir uma ação cometida por um determinado indivíduo.
Por fim, a função dissuasória, diferentemente da punitiva, aplica-se segundo uma visão prospectiva, ou seja, tem por objetivo evitar o cometimento de uma conduta reprovável no futuro, sendo dirigida não só a um determinado indivíduo, mas apresenta caráter geral, pois é endereçada a toda coletividade submetida a um mesmo ordenamento jurídico.
Examinados o conceito e as principais características da responsabilidade civil, passa-se à análise de sua aplicação no que tange aos danos causados pelo Estado.
5.responsabilidade civil do Estado
Ultrapassados os elementos propedêuticos necessários ao enfrentamento do objeto do presente estudo – responsabilidade do Estado por danos decorrentes de planejamento –, impende-se adentrar no mérito do tema.
Antes de mais nada, é preciso definir os contornos do conceito de responsabilidade civil do Estado. Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles que ensina que
Responsabildade civil da Administração Pública é, pois, a que impõe à Fazenda Pública a obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. É distinta da responsabilidade contratual e legal. [49]
Na acepção de Juarez Freitas,
a responsabilidade objetiva do Estado merece ser traduzida como obrigação de reparar ou compensar os danos materiais e imateriais causados a terceiros por ação ou omissão desproporcional e antijurídica dos agentes públicos, nessa qualidade. [50]
O jurista gaúcho fundamenta sua concepção alargada, referindo que o ordenamento pátrio consagra a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, que também devem ser respeitados pelo Poder Público. Assim, as condutas comissivas ou omissivas do Estado que vulnerarem tais direitos serão consideradas ilícitas, ensejando a necessária reparação.
Inovando, Juarez Freitas sugere a incorporação do princípio da proporcionalidade no exame da responsabilidade extracontratual do Estado, como forma de viabilizar a vedação de excesso e de inoperância no agir estatal [51], tudo, sem olvidar-se da reserva do possível.
Ademais, importa referir que resta pacificada na doutrina atual a idéia de que a responsabilidade extracontratual do Estado é regida pelo modelo objetivo, com suporte na teoria do risco administrativo, tendo por fundamentos basilares o princípio da igualdade e da eqüidade [52].
Pelo princípio da igualdade, a "responsabilização do Estado, ou de um todo social, evita o empobrecimento injusto de quem sofreu um prejuízo no seu patrimônio" [53]. Todos os integrantes do corpo social assumirão sua parcela no dano causado. Dessa forma, os ônus e encargos decorrentes de danos provocados pelo Poder Público são repartidos igualitariamente pela sociedade.
Pelo princípio da eqüidade, garante-se a cada indivíduo que, na eventualidade de ser vitimado por dano motivado pelo Estado, o prejuízo decorrente será devidamente ressarcido pela Administração Pública.
No entender de Maria Sylvia Zanella Di Pietro,
Esta doutrina baseia-se no princípio da igualdade dos ônus e dos encargos sociais: assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos. Nessa teoria, a idéia de culpa é substituída pela de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado. É indiferente que o serviço público tenha funcionado bem ou mal, de forma regular ou irregular. [54]
Marcia Andrea Bühring adverte que as atividades de risco do Estado se apresentam mais evidentes no exercício do poder de polícia, onde "a falta de fiscalização ou mesmo o abuso no seu exercício traz a responsabilidade tanto por sua ação ou omissão" [55].
5.1.Responsabilidade por danos decorrentes de planejamento
Inicialmente, cabe referir que o assunto em exame parece não ter despertado a devida atenção do meio jurídico haja vista a escassa produção doutrinária acerca do tema. Todavia, é notório nos dias atuais que as gritantes insuficiências da Administração Pública no âmbito do planejamento eficaz das diversas políticas de sua competência como saúde, educação, segurança pública, infra-estrutura, entre outras, têm gerado crescentes danos patrimoniais e extra-patrimoniais aos cidadãos brasileiros.
Exemplo emblemático do que se coloca aqui é, por exemplo, a crise de infra-estrutura do sistema aéreo brasileiro que, nos últimos dez meses, como exaustivamente veiculado pela mídia nacional [56], contribuiu para a ocorrência de dois acidentes aéreos de grandes proporções.
O primeiro, em 29 de setembro de 2006, em que um Boeing 737 da empresa aérea Gol caiu em Mato Grosso depois de ter colidido em pleno ar com um jato executivo Legacy da empresa norte-americana Excel Air. Nesse acidente, morreram cento e cinqüenta e quatro pessoas. A perícia realizada constatou, entre outros problemas que contribuíram para o desastre, falhas técnico-operacionais do sistema de controle aéreo, cuja gestão, em última análise, é de responsabilidade do Estado.
No segundo acidente, ocorrido em 17 de julho de 2007, uma aeronave Airbus A320 da TAM Linhas Aéreas, em frustrada tentativa de pouso em pista molhada no Aeroporto de Congonhas (São Paulo-SP), acabou colidindo em prédio administrativo da própria TAM, vitimando todos os seus cento e oitenta e um passageiros, seis tripulantes, além de outras pessoas que se encontravam no local do acidente.
Neste caso, o indício da existência da responsabilidade estatal pelos danos decorrentes dessa tragédia parece pairar sobre o fato de que a pista utilizada pela aeronave acidentada havia sido recentemente reformada pela Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária (INFRAERO), em "razão do vasto histórico de derrapagens causadas por excesso de água na pista" [57].
Ressalta-se que a missão declarada pela aludida empresa pública em seu portal na Internet é a de "atender às necessidades da sociedade relativas à infra-estrutura aeroportuária e aeronáutica, de modo a contribuir para o desenvolvimento sustentável do Brasil, primando pela eficiência, segurança e qualidade" [58], tendo em conta que o art. 4º de seu Estatuto estabelece que
Art. 4º A INFRAERO tem por finalidade implantar, administrar, operar e explorar industrial e comercialmente a infra-estrutura aeroportuária e de apoio à navegação aérea, prestar consultoria e assessoramento em suas áreas de atuação e na construção de aeroportos, bem como realizar quaisquer atividades correlatas ou afins, que lhe forem atribuídas pelo Ministério da Defesa. [59] (grifou-se)
A possibilidade de ocorrência de acidentes no Aeroporto de Congonhas, em razão do excesso de água na pista em dias de chuva, era tão evidente que o Ministério Público Federal de São Paulo pleitou judicialmente, sem sucesso, a interdição da pista principal do referido aeroporto em face de cinco episódios dessa natureza terem ocorrido em janeiro de 2007, como noticiado pela imprensa [60].
Todavia, a INFRAERO comprometeu-se, mesmo assim, a providenciar o conserto da pista, aplainando as depressões onde a água ficava empoçada, tendo a pista sido liberada para operação, após a referida reforma, cerca de vinte dias antes do acidente.
Assim, quer parecer que estes acidentes aéreos, exemplos colhidos da vida nacional atual, relacionam-se diretamente ao tema desse ensaio – responsabilidade objetiva do Estado pelos danos decorrentes de planejamento –, pelo que a discussão desta matéria apresenta-se necessária, pois poderá contribuir para o desenvolvimento e utilização de mecanismos jurídicos que possam estancar efetivamente esta crescente desordem social provocada pela insuficiência generalizada da Administração Pública.
Inicia-se com a abordagem do conceito de planejamento. Helio Saul Mileski assevera que
Em qualquer campo da atividade humana, especialmente os que envolvam a produção de bens e serviços, seja propiciando a geração de riquezas, seja para o atendimento do interesse coletivo, é imprescindível a utilização do planejamento, no sentido de que possa haver uma utilização adequada e pertinente dos recursos materiais, humanos e financeiros e que possibilite uma ação racional, com mais eficácia e eficiência, para o atingimento dos objetivos propostos. Quando essas questões envolvem o Poder Público e a sociedade, tendo em conta a precariedade de recursos para o atendimento do elevado grau das necessidades coletivas, com muito mais razão deve o Estado se utilizar do planejamento, a fim de poder investir e prestar melhores serviços, com uma aplicação mais inteligente de seus parcos recursos. [61]
Na lição de José Afonso da Silva, "planejamento é um processo técnico instrumentado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos" [62].
De se perceber que o artigo 174 [63] da Constituição Federal atribui expressamente ao Estado a função de planejamento enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica, ressaltando sê-lo determinante para o setor público e indicativo para o privado.
Todavia, Mileski refere que o modelo federativo adotado pelo Estado brasileiro oferece dificuldade à
conciliação de um sistema harmônico e integrado de planejamento, embora a Constituição busque esse desiderato ao prever que "a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento" (art. 174, § 1º). [64]
A concepção de planejamento na Administração Pública brasileira remonta a 1948, quando o governo de Eurico Gaspar Dutra elaborou o Plano Salte, desenvolvendo ações prioritárias aos setores da saúde, alimentação, transporte e energia.
A Constituição Federal de 1967 e o Decreto-Lei nº 200/67 (que dispôs sobre a organização da Administração Federal e estabeleceu diretrizes para a Reforma Administrativa), criaram o Ministério de Planejamento e Coordenação Geral.
A Constituição de 1988 introduziu no direito financeiro o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias. A Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) trouxe capítulo (II) específico ao planejamento orçamentário, indicando a consagração do planejamento na Administração Brasileira no que toca à correta gestão dos recursos públicos.
Vera Lúcia Valle Figueiredo, enfrentando o tema da responsabilidade civil do Estado por dano decorrente do planejamento, colacionou trecho do artigo Responsabilidade por Dano decorrente de Planejamento Econômico, de Almiro do Couto e Silva (RDP, nº 63, pág. 129, item 4), defendido em Canela-RS, em 1981, no III Congresso de Direito Administrativo, no qual o jurista expressa o seguinte entendimento:
Fica assim claramente visto que, nos regimes de corte democrático, o primeiro problema jurídico que o planejamento projeta no plano lógico - o da sua admissibilidade em face da Constituição - é hoje, senão uma indagação de valor puramente histórico, pelo menos uma questão de simples medida. Efetivamente, não se discute mais que o planejamento seja possível dentro dos regimes democráticos. O que se pode discutir é se determinado plano, sob suspeita de violar direitos e garantias individuais, será ou não conciliável com a Constituição. [65]
5.2.Planos indicativos, incitativos e imperativos
Couto e Silva conclui no sentido de que o Estado não pode deixar de indenizar quando provoca dano ao administrado por descumprir planos a que se obrigara. Estabelece também, em seu estudo, a diferenciação entre plano indicativo, incitativo ou estimulativo e imperativo.
No entendimento de Lúcia Valle Figueiredo,
Planos indicativos são aqueles em que o governo apenas assinala em alguma direção, sem qualquer compromisso, sem pretender o engajamento da iniciativa privada.
De outra parte, planos incitativos são aqueles em que o Governo não somente sinaliza, mas pretende também o engajamento da iniciativa privada para lograr seus fins. Nesses planos há não apenas a indicação como também, e, muitas vezes, promessas com várias medidas, quer por meio de incentivos, ou por qualquer outra forma para que a iniciativa privada colabore. Nessas hipóteses, contam os administrados que aos planos aderem com a confiança, a boa fé e a lealdade da administração. Portanto, se modificações houverem, certamente, em casos concretos existirão prejuízos.
Já os planos imperativos falam por si próprios, ou seja, a própria palavra, define-os. Imperativo é o que deve ser observado. O problema será aferir, no caso concreto, a conduta estatal, a conduta do lesado para verificação se há de se colocar alguma excludente e o dano causado e, também, se o ato foi lícito ou ilícito. Todavia, mesmo lícito, dependendo das circunstâncias poderá haver responsabilidade estatal, conforme já averbamos no item 4 deste estudo. [66]
Dessa forma, apesar de expressamente não referir, parece ser possível extrair do raciocínio da jurista que os danos decorrentes de modificação de planos indicativos, por não incitarem ou determinarem a adesão dos particulares não seria suscetível de gerar responsabilidade civil do Estado, já que ela expressamente refere que, em razão da capacidade vinculativa ao particular, os planos incitativo e imperativo gerariam responsabilidade civil do Estado na eventual superveniência de dano ao particular.
Lúcia Valle Figueiredo, perfilando-se à corrente defendida por Couto e Silva, entende que a Administração deve ser responsabilizada por danos decorrentes de modificação de planejamento, citando o exemplo da máxi-desvalorização do cruzeiro ocorrida nos idos de 1979, durante a execução do Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico, quando o Governo, apesar de constantemente reafirmar, nos veículos de comunicação de massa, sua intenção de manter a mini-desvalorização, portanto, mantendo a política adotada, procedeu a máxi-desvalorização, levando expressivo número de empresas à falência, uma vez que deviam em dólares.
Lúcia Figueiredo aduz, ainda, que sobre o assunto, Canotilho manifestou-se em trabalho intitulado "Responsabilidade decorrente de Atos Lícitos (1974) com o seguinte entendimento:
(...) Não discutiremos aqui se o plano é uma realidade jurídica autônoma ou se não passa de um conjunto de instrumentos diversos que não ganham qualquer qualificação jurídica especial pelo facto da sua reunião. (...) Especialmente, importa enfrentar a questão de saber qual a tutela do particular afectado pela mudança de planos econômicos à sombra dos quais tinha feito os seus prognósticos e criado situações econômicas irreversíveis.
(pág. 203).
E, ainda, Canotilho vai afirmar serem necessárias a proporcionalidade e utilidade da modificação, concluindo:
(...) Estas promessas podem ser medidas de direção, originadoras de um grau de confiança e boa fé nos destinatários que os leve, ancorados na proteção administrativa, a arriscarem-se a negócios financeiramente ruinosos. Parece-nos seguro ser de exigir à administração o exato conhecimento das suas possibilidades a fim de evitar que, através de promessas não mantidas, leve os particulares a compromissos e a riscos que eles não dominam e que não correriam se não fossem as garantias dos entes públicos. Mas a demonstração da falta de cumprimento da promessa ou promessa será, talvez, elemento imprescindível ao desencadeamento do fenômeno indenizatório." (pág. 208) [67]