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Considerações sobre a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes de planejamento

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6.Notas sobre a discricionariedade nos atos de planejamento

Uma indagação recorrente sobre o assunto, diz com a possibilidade das atividades de planejamento e as que dele derivem acontecerem ou não sob o manto da discricionariedade da Administração Pública.

E a dúvida é absolutamente pertinente ao tema porque se se admitir que elas encontram-se cobertas pela discricionariedade, as ações de elaboração e execução de planejamento ficariam, em tese, excluídas de um controle efetivo, dando azo a amplo leque de modificações durante sua implementação, sem que isso pudesse vir a ser contestado pelas diversas formas de controle [68] existentes em nosso sistema jurídico.

Ao contrário, se as referidas ações de planejamento do Estado forem consideradas normas vinculadas, obrigando-lhe determinada conduta, as modificações supervenientes eventualmente procedidas sujeitariam-se de forma ampla e irrestrita ao crivo do controle interno, externo, social e judicial do ato administrativo, definido por Juarez Freitas como "declaração unilateral da Administração Pública ‘lato sensu’ ou de quem exerça atividade delegada, de natureza infralegal, com fito de produzir efeitos no mundo jurídico" [69]. E é inafastável concluir que qualquer planejamento estatal gera efeitos no mundo jurídico.

Importa colacionar o entendimento de Juarez Freitas sobre o ato discricionário:

Nos dias que correm, entretanto, com a feliz expansão da sindicabilidade (decorrente de princípios), tudo indica que devem ser afastados os critérios exclusivamente políticos, dada a natureza jurídica dos atos emanados legitimamente pela autoridade, inclusive no campo das políticas públicas e de planificação. Vai daí que não merece prosperar a escolha não-fundamentável juridicamente. O mérito (relativo a juízos de conveniência ou de oportunidade) pode até não ser diretamente controlável, em si, mas o demérito o será sempre. [70]

Aduz, ainda, o jurista gaúcho que

...ver-se-á que a autoridade administrativa, em realidade, jamais desfruta de liberdade pura de escolha ou de conformação a ponto de agir em desvinculação com os princípios constitucionais, ainda que a sua atuação guarde – eis o ponto focal – uma menor subordinação à legalidade estrita do que à concretização dos atos vinculados. Em outras palavras, qualquer ato discricionário que se torne lesivo a um dos princípios fundamentais pode e deve ser anulado. [71]

Assim, diante dessas considerações doutrinárias, entende-se que a dúvida sobre a classificação dos atos de planejamento, se vinculados ou discricionários, esteja plenamente superada diante da evolução de nosso direito administrativo que, influenciado e cogentemente submisso ao atendimento normas constitucionais, aí incluídos seus princípios, já admite, em boa hora, que até mesmo os atos discricionários são sindicáveis na medida do exame de sua conformidade aos contornos da Constituição Federal, em especial aos ditames dos direitos e garantias fundamentais.

Ademais, nessa linha de raciocínio, pensa-se que seja possível examinar também a questão da responsabilidade objetiva do Estado por falta de planejamento, como parece ter acontecido nos dois acidentes aéreos já mencionados neste trabalho que decorrem, a toda evidência, da crise do sistema aéreo brasileiro. É que a falta de planejamento, em verdade, revela omissão e/ou inoperância do Poder Público, hipóteses que também configuram causa de responsabilidade civil quando resultam em danos a terceiros.

Considerando-se que o ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria do risco administrativo, já abordada em tópico apartado, tem-se que bastará ao lesado – ou seu espólio no caso do evento danoso resultar em morte da vítima – indicar o dano e o nexo de causalidade entre ele e o agir comissivo ou omissivo do Estado. Por sua vez, ao Poder Público caberá mover-se no sentido de provar a existência de eventuais excludentes ou atenuantes de sua responsabilidade a fim de ver afastado o dever de reparar e/ou compensar o dano ocorrido.


7.Da jurisprudência

Em termos jurisprudenciais, pesquisa realizada no portal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul evidenciou algumas demandas ajuizadas em face do Estado relacionadas com questões decorrentes de falha ou ausência de planejamento do Poder Público.

O primeiro acórdão colacionado, cujo julgamento data de 26 de março de 1996, fundado na responsabilidade objetiva do Estado, condenou o Poder Público a indenizar particular por danos decorrentes de falha de planejamento em obras de duplicação de rodovia.

Ressarcimento de danos em prédio inundado pela água da chuva: obras de duplicação de rodovia estadual pelo DAER. Responsabilidade objetiva da Administração Pública. Solidariedade da empreiteira contratada para execução das obras. Desmatamento da vegetação. Movimentação de terras. Captação de água proveniente da rodovia, superior à vazão. Residência construída sobre a canalização. Se as obras de duplicação de rodovia estadual desviam o curso natural das águas da chuva ou impedem seu escoamento através de bueiro preexistente, ocasionando rompimento de tubulação sob residência familiar e causando prejuízos, respondem solidariamente pelos danos a autarquia estadual encarregada pelo planejamento e a empreiteira contratada para a execução das obras. sentença mantida. apelações desprovidas. (Apelação Cível Nº 195122130, Nona Câmara Cível, Tribunal de Alçada do RS, Relator: Regina Maria Bollick, Julgado em 26/03/1996)

Também importa registrar acórdão em apelação e reexame necessário negando fornecimento de medicamento ao postulante em razão do fármaco não constar na lista de medicamentos do Poder Público em respeito ao planejamento da distribuição de recursos elaborado pelo Poder Executivo conforme se verifica na ementa abaixo:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. LEGITIMIDADE PASSIVA. Os entes públicos, por força de normas através das quais se organizou o Sistema Único de Saúde, assumiram cada qual certas responsabilidades, conforme previsto na Lei nº 8.080/90 e nas NOB-SUS 01/96 e 01/02. Cabe ao município o fornecimento dos medicamentos que constarem na Portaria nº 2.475/06 do Ministério da Saúde, a qual contém a relação nominal de produtos farmacêuticos essenciais. Salvo hipóteses excepcionais, a legitimidade do Estado do Rio Grande do Sul passa pela disciplina das Portarias nº 2.577/06, do Ministério da Saúde, nº 238, da Secretaria de Saúde, e da Lei-RS nº 9.908/93, art. 1º e parágrafo único. O fornecimento de fármacos não listados nessas relações não é imputado aos órgãos públicos de saúde, em respeito ao planejamento da distribuição de recursos elaborado pelo Poder Executivo, visando ao menor gasto com o alcance dos fins estipulados, pois, do contrário, beneficiar-se-ia o indivíduo em detrimento da grande massa de necessitados. MEDICAMENTO NÃO FORNECIDO PELA REDE PÚBLICA. Sem justificativa para a pretensão a medicamentos não fornecidos pela rede pública, não é possível determinar-lhes o alcance, não exsurgindo risco de vida. A análise da pretensão do autor da ação não prescinde do cotejo entre a sua necessidade individual, os custos resultantes para o Poder Público e, em última análise, à sociedade, não havendo como se negar o flagrante rompimento do princípio da isonomia ao se conceder tratamento diferenciado àquela, enquanto outros necessitados aguardam a satisfação do fornecimento dos medicamentos de que necessitam. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. VOTO VENCIDO. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70019527035, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, Julgado em 24/05/2007)

Também verifica-se que o Tribunal de Justiça gaúcho (TJRS) já se manifestou no sentido de entender que não deve imiscuir-se nas questões de planejamento, atividade exclusiva do Poder Executivo, contudo, ratificando sua possibilidade de intervir nos atos e omissões administrativos dos quais resultem prejuízos aos usuários de serviços públicos. No caso colacionado, o TJRS condenou a Administração Pública a adotar providências no sentido de recuperar rodovia que se encontrava em estado precário de manutenção.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ATO OU OMISSÃO ADMINISTRATIVOS. CONTROLE JUDICIAL. POSSIBILIDADE. ESTRADA ESTADUAL. CONSERVAÇÃO. OBRIGAÇÃO DO DAER. RST 101. TRECHO BACOPARI-CAPÃO COMPRIDO. PRECARIEDADE. DIREITO À VIDA E À SEGURANÇA DOS ADMINISTRADOS. REALIZAÇÃO DE OBRAS. LIMINAR. MULTA DIÁRIA POR DESCUMPRIMENTO. ESTADO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. EXCLUSÃO DA LIDE. Os atos da Administração Pública estão submetidos ao controle judicial. O Poder Judiciário pode avaliar o atendimento ao Direito, a motivação do ato tendo em vista critérios como a finalidade, a razoabilidade e o atendimento aos princípios constitucionais e ao interesse público. Tal avaliação não significa interferência, porque o Judiciário atua no caso concreto, no presente. O Poder Judiciário não age com os atributos da generalidade, abstratividade e impessoalidade, características estas próprias da lei e não do ato judicial. A atuação do Judiciário na fiscalização dos atos e omissões administrativos é corretiva e repressiva, e não prospectiva, esta sim o campo próprio do Executivo e de seu planejamento. Verificando-se, pela prova dos autos e com base nos fatos públicos e notórios, que a população tem sofrido graves riscos com a continuidade do estado precário da RST 101, no trecho entre Bacopari (Mostardas) e Capão Comprido (Tavares), deve a autarquia responsável pela conservação das rodovias estaduais, como a RST 101, incluir no orçamento verbas suficientes para a realização das obras necessárias à garantia da vida e da segurança dos administrados, usuários da rodovia. O descaso da Administração com as estradas, expondo permanentemente a população a riscos, não se trata apenas de ilegalidade, mas de descumprimento da própria Constituição Federal (art. 5º, caput). O Poder Público, independentemente da esfera governamental, tem dever constitucional de proteger a vida e a segurança dos seus cidadãos, e assim, por óbvio, o Estado do Rio Grande do Sul, dentro da necessária, normal, cotidiana e rotineira utilização, pelas pessoas, de um de seus bens (as rodovias, conforme art. 7º, IX, da CE/89), seja de forma própria ou mediante os entes públicos ou privados, a quem eventualmente se atribua ou se delegue a tarefa, como, no caso da conservação das rodovias estaduais, o DAER (art. 1º, IV, da Lei Estadual nº 11.090/98). Passado o prazo razoável para o início das obras, deve incidir multa diária em caso de descumprimento, a qual visa a desestimular o Poder Público a desobedecer ao comando judicial. Inviável se exigir o cumprimento da obrigação de fazer, com imposição de sanção pelo eventual descumprimento, diretamente do Estado do Rio Grande do Sul, que possui, para a tarefa específica, ente autárquico próprio ao qual a atividade está expressamente atribuída. Nessa situação, deve ser concedida a liminar postulada pelo Ministério Público, para determinar ao DAER que tome as providências atinentes à realização de obras de recuperação na RST 101, devendo o Estado ser excluído da lide. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO. (Agravo de Instrumento Nº 70017086257, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, Julgado em 13/12/2006)

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8.Conclusão

A título de colaborar no debate sobre o importante e atualíssimo tema da responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do planejamento, este trabalho iniciou revisitando os principais elementos do instituto da responsabilidade civil, como os principais modelos em que se divide – objetivo, subjetivo, misto e socializado –, funções que desempenha (indenizatória, punitiva e dissuasória), e teorias que a fundamenta (culpa, risco-proveito, risco-criado, riscos relativos ao Estado e garantia).

Em seguida, foram trazidos à colação, estudos elaborados por juristas nacionais e estrangeiros sobre a específica matéria da responsabilidade civil por erro de planejamento, onde ficou claro que o assunto ainda não mereceu a devida importância do mundo acadêmico, tendo em conta o reduzidíssimo acervo doutrinário encontrado acerca do tema.

Constatou-se que o planejamento do Estado, ainda que possa ser considerado como ato discricionário da autoridade administrativa, diante das luzes propiciadas pela vanguardeira doutrina do direito administrativo constitucional, também restará obrigatoriamente submetido aos mecanismos de controle para fins de verificação de sua conformidade com as inafastáveis regras constitucionais, garantindo-se, dessa forma, a anulação dos atos de planejamento considerados inconstitucionais. Nesse sentido, foram colacionados alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, relacionados com planejamento, nos quais se verificou que o tema planejamento do Poder Público vem ganhando relevo nas questões relativas ao exame da responsabilidade civil estatal.

Verificou-se que a responsabilidade civil do Estado, em nosso ordenamento, fundamenta-se na teoria do risco administrativo, sendo possível responsabilizar objetivamente o Poder Público por danos decorrentes tanto de sua ação quanto de sua omissão na realização de suas atividades voltadas à satisfação do interesse público em razão da aplicação do postulado da proporcionalidade que veda tanto o excesso quanto a inoperância estatal, incluindo-se, nesta última hipótese, a falta de planejamento.

Por fim, diante de tudo quanto foi exposto, conclui-se que a responsabilidade civil do Estado por dano decorrente de planejamento apresenta-se, no plano teórico, como efetiva possibilidade doutrinária, sendo defendida, inclusive, por juristas nacionais e estrangeiros renomados como J.J. Gomes Canotilho, Almiro do Couto e Silva e Lúcia Valle Figueiredo.

Todos comungam, em termos nucleares, com a idéia de que o particular ao aderir ou ao ser compelido pela força coercitiva do Estado a se submeter a um determinado planejamento governamental, age dentro do princípio da confiança e da boa-fé. Dessa forma, se do planejamento incitativo ou imperativo do Estado decorrer danos ao patrimônio do particular, este terá direito de buscar a reparação dos prejuízos pelo Estado.

Todavia, no plano material, verifica-se que é ainda rarefeita a utilização da aludida teoria entre nós, evindenciando-se a necessidade de intensificação dos debates do assunto no meio jurídico como forma de consolidar sua aplicação, haja vista tratar-se a responsabilização civil do Estado por danos decorrentes do planejamento de importante instrumento de reparação patrimonial do particular lesado pelo Poder Público e de indispensável ferramenta no controle social nas ações de planejamento do Estado.

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Sobre o autor
Cleber Demetrio Oliveira da Silva

Sócio da Cleber Demetrio Advogados Associados, da RZO Consultoria e Diretor Executivo do Instituto de Desenvolvimento Regional Integrado Consorciado (IDRICON21), Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS, Especialista em Gestão de Operações Societárias e Planejamento Tributário pelo INEJE, Mestre em Direito do Estado pela PUCRS, Professor de Ciência Política no curso de graduação da Faculdade de Direito IDC, de Direito Administrativo em curso de pós-graduação do IDC e Professor de Direito Administrativo e Direito Tributário em cursos de pós-graduação do UNIRITTER da rede Laureate International Universities.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira. Considerações sobre a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes de planejamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1540, 19 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10428. Acesso em: 26 abr. 2024.

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