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A participação da comunidade na execução penal

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1 INTRODUÇÃO

Consoante expõe Luiza Nagib Eluf [01], antigamente a sociedade vivia tranqüilamente, sem medos. O "Brasil era menos violento e todos, inclusive os pobres, usufruíam de maior segurança".

Todavia, com o passar do tempo o Estado não atingiu níveis satisfatórios de organização, ocasionando a falência de seus serviços e eclodindo o atual clima de guerra social. Os problemas estruturais que surgiram não foram resolvidos pelos governantes (quer por inércia, quer por falta de êxito nas ações), sendo que os temas pertinentes à Execução Penal e à recuperação de delinqüentes não alcançaram a necessária atenção do Poder Público.

Dentre as maneiras de ação do Estado na oposição à criminalidade, Filippo Grispigni aponta três métodos que se constituem nas mínimas posturas que devem ser adotadas pelas nações com o intuito de melhora na segurança pública, agindo tanto na prevenção quanto na repressão:

a) El peligro de delito da lugar ante todo a una serie de medidas estatales que atienden a la remoción de las causas – antropológicas, físicas y sociales – que determinan al hombre a cometer delitos. Dichas medidas son de la más diversa naturaleza y pertenecen a los más diferentes campos de la actividad estatal, sea jurídica o social (de asistencia o de beneficencia pública), y, como tales, no constituyen conceptualmente un organismo unitario, pudiendo ser indicadas genéricamente como providencias indirectas de defensa criminal (prevención indirecta, remota).

b) Em segundo lugar, el peligro de delito da motivo a la intervención de la actividad de la policía de seguridad, es decir, de aquella parte de la actividad de policía "que tiene por objeto la tutela del orden público" (prevención directa, inmediata).

c) Em tercer lugar, finalmente, el Estado se opone al peligro de delito por médio de la pena [...] (represión con fines de prevención). [02]

No Brasil, o desempenho estatal tem ocorrido de maneira insuficiente, principalmente no que pertine à implementação de políticas de prevenção e recuperação da delinqüência, estimulando assim o avanço da criminalidade.

"Entretanto, não é demasiado dizer que a responsabilidade há de ser atribuída também à sociedade, posto que esta apenas exige; em raras situações colabora" [03], adverte Maurício Kuehne.

Ou seja, de um lado vê-se a inércia do Governo (aqui entendido como os entes políticos estatais) e de outro, que o restante da sociedade costuma ficar passivo frente aos problemas, não apresentando reações efetivas. Todos se alarmam com a elevada violência e manifestam reclamações. Porém, ninguém quer fornecer a sua contribuição pessoal para atenuar o problema.

Desculpas são freqüentes para a falta de ação, sendo que a mais comum consiste na mútua imputação de culpa. O governo responsabiliza a sociedade e vice-versa, de maneira a que ambos permaneçam estáticos, sem que se aborde em definitivo a questão.

Outra corriqueira desculpa verifica-se também no seio da própria sociedade, em que as classes economicamente privilegiadas atribuem todos os defeitos sociais aos pobres. Estes, por sua vez, responsabilizam a ganância desenfreada da classe dominante, a má distribuição de renda, a precariedade dos serviços do Estado, o desemprego, o neoliberalismo e o tráfico de drogas.

Enfim, é tranqüila a conclusão de que a sociedade se encontra desestruturada, pois é evidente o mútuo desrespeito entre todas as suas esferas.

Pressuposto para o alcance de justiça social é que haja um povo que trate a todo ser humano com dignidade e respeito, ao mesmo tempo em que puna os desvios, a criminalidade e a violência, principalmente quando envolvam pessoas que ocupam cargos públicos. Nosso país, apesar de alguns esforços, está longe desse paradigma.

É expressão corrente no Brasil a adoção da popularmente chamada "filosofia do malandro", pois se entende que em um ambiente hostil como a atualidade, somente os mais espertos (na concepção negativa do termo) possuem maiores chances de vencer na vida. Os adeptos dessa "filosofia" não medem esforços para alcançar artificiosamente os seus objetivos. Não respeitam o próximo, praticam atos de corrupção, mentem, enganam, utilizam a violência como instrumento, etc.

Infelizmente, isso é o que ocorre em todos os âmbitos da sociedade e do Poder Público. Diariamente vislumbra-se na imprensa a veiculação de notícias correlatas.

Qualquer cidadão que reflita um pouco sobre a atual conjuntura social fica decepcionado. Da decepção decorre a postura de negação da cidadania e a ausência de patriotismo. Em um plano mais amplo tais fatores acarretam falta de garantias individuais, coletivas, de direitos humanos e de organização social.

Enquanto não for colocado termo final à "filosofia do malandro", a violência social somente aumentará, vitimando a todos, indistintamente. Todavia, é forçoso concluir que isso está longe de acontecer.

Não há empenho da comunidade na construção de um ambiente menos hostil. Ao contrário, o comportamento normalmente assumido é o de ausência de compromisso, de depredação, de destruição.

De igual forma, não há reflexão acerca das verdadeiras raízes da criminalidade, as quais na realidade são claras e de fácil percepção.

A falência das instituições penais, assim como o elevado e crescente índice de delinqüência são os resultados da crise atual.

Todos os dias, sem exceção, a criminalidade possui destaque na mídia, o que repercute de maneira a contribuir para que a população tenha maior temor e sentimento de insegurança.

E, diante desse quadro, a maior parcela da sociedade apenas assiste aos acontecimentos de maneira atônita, realmente como meros espectadores recebendo e assimilando visões já previamente definidas pelos meios de comunicação.

Quando muito, as únicas condutas adotadas são a de cobrança de maior repressão ao crime, a elevação das penas, ou a piora das condições de tratamento dispensadas aos presos. Acredita-se, equivocadamente, que o temor que porventura um delinqüente possa sentir seja instrumento hábil a inibir a prática criminosa.

Porém, a prática tem demonstrado a falácia da adoção dessa linha de política penal. Exemplos como a edição da Lei dos Crimes Hediondos, ou as péssimas condições carcerárias dispensadas aos presos certamente não contribuíram para a redução da criminalidade.

Por conseqüência lógica, é preciso que ocorra mudança de postura.

Principalmente, as pessoas precisam perceber que elas próprias podem contribuir para modificar esse quadro alarmante, atuando ativamente em auxílio ao Poder Público. É necessário desenvolver no povo a consciência de que "o crime é um problema social e comunitário, nasce na comunidade e nela deve encontrar fórmulas de solução positivas" [04].

René Ariel Dotti [05] explica que a conseqüência da passividade é a falta de operacionalização de ações que visem à "recuperação", "ressocialização", "reinserção" e "reeducação social" dos delinqüentes. Todas essas expressões que designam a ideologia da salvação do condenado conquistaram fácil trânsito jurídico e permearam os mais variados sistemas normativos. No entanto, não raramente se exaurem na literalidade dos textos, tornando-se muletas legais vazias de conteúdo.

Para que haja mudança nesse quadro, faz-se urgente a ação da comunidade em apoio ao Poder Público.

O campo em que se pode agir é vasto. De plano pode-se distinguir a atuação em três momentos: a) a prevenção da prática criminosa (ou seja, antes de que ocorra a delinqüência); b) o momento do cumprimento da pena; e c) o momento posterior ao alcance da liberdade pelo indivíduo. Atuando-se corretamente nestes três momentos, extinguir-se-ão as principais causas de criminalidade.

Nesse intuito, da implementação de ações da comunidade na busca por uma sociedade melhor, promove-se o presente estudo, o qual visa apresentar o tema ao leitor, iniciando com uma abordagem histórica sobre a evolução do direito penal, passando-se por uma visão do sistema jurídico pátrio (fornecendo subsídios para o seu entendimento), analisando alguns dos principais fatores criminógenos (a pena de prisão, a questão social e a influência da mídia), até alcançar a análise dos três momentos supra descritos.

Procura-se não só demonstrar os instrumentos para a (re) inserção social do indivíduo que cometeu o fato criminoso, mas também explicitar os meios de colaboração com a atividade do Poder Judiciário, permitindo maior efetividade e celeridade na prestação jurisdicional.

Assim, pretende-se que ao final do estudo seja possível concluir pela importância e relevância da atuação da comunidade, alcançando motivação para o exercício de ações positivas frente às questões penais e sociais.


2 SÍNTESE DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL E SUA RELAÇÃO COM A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE

"O direito comparado revela que o ponto de partida da história da pena coincide com o ponto de partida da história da humanidade" [06]. O direito penal "surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou" [07]. Assim, a origem da pena também é remota, "perdendo-se na noite dos tempos" [08].

Claro é que o direito penal como atualmente conceituado, com a noção de sistema orgânico, permeado de princípios e fundamentos, somente foi alcançado recentemente, sob o ponto de vista histórico. Mas, pela ótica da existência de regras de conduta que se não obedecidas acarretam punição, verifica-se que acompanha o homem desde os primórdios das civilizações.

O objetivo da análise da evolução histórica dos sistemas punitivos é verificar os momentos e a extensão da atuação da sociedade na execução penal, para que se permita uma construção lógica do atual estágio de desenvolvimento que se encontra o pensamento legislativo e jurídico sobre a questão.

Porém, desde o início deve-se compreender que a história não se apresenta em evolução linear, eis que por vezes apresenta avanços e em outras retrocessos, sendo expressão dos momentos econômicos, sociais e culturais vivenciados pela civilização, apresentando semelhanças e diferenças marcantes em cada sociedade.

Dada a complexidade e extensão do conteúdo histórico, notadamente o elevado número de sociedades conhecidas, o estudo focar-se-á primeiramente em verificar as origens dos sistemas punitivos, demonstrando-se na seqüência as fases da vingança penal, prosseguindo-se com a análise apenas das principais características de algumas das sociedades mais marcantes da história, passando-se, ao final, à abordagem das escolas de Direito Penal, sob o enfoque da punição e da participação popular.

2.1 ORIGENS MÍSTICAS E RELIGIOSAS

Em tempos primitivos vivia-se em um ambiente místico e acreditava-se que todos os fenômenos naturais maléficos eram resultantes das forças divinas que, encolerizadas, estavam exigindo a reparação por algum fato humano que lhes tivessem desrespeitado.

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Assim, com o intuito de aplacar a ira dos deuses surgiram os tabus, que eram proibições religiosas, sociais e políticas que quando não obedecidas acarretavam castigo. "O castigo infligido era o sacrifício da própria vida do transgressor" [09] ou a "oferenda por este de objetos valiosos (animais, peles e frutas) à divindade, no altar montado em sua honra" [10].

Ainda sob o crivo do misticismo existiam os totens os quais assumiam formas de "animais, vegetais ou qualquer objeto considerado como ancestral ou símbolo de uma coletividade" [11] e que se acreditava serem protetores do clã ou tribo.

Mesmo quando começaram a surgir leis, como no início das civilizações grega, hindu e romana, era ela parte integrante da religião, o que fazia com que o direito também fosse apenas uma das faces da religião [12]. E, dada a origem santa das leis, Platão teceu a afirmação de que "obedecer às leis é obedecer aos deuses" [13].

Somente com o decorrer do tempo, com a evolução cultural, científica, política e social é que se passou a dissociar o direito e a religião.

2.2 FASES DA VINGANÇA PENAL

Partindo-se da divisão apresentada por Magalhães Noronha [14], tem-se que a vingança penal divide-se em três fases: a vingança privada, a vingança divina e a vingança pública. Tais períodos são uma tendência de acontecimento em todas as sociedades. Todavia, eles não se sucedem integralmente e, com o advento de um não necessariamente ocorre o desaparecimento do outro, podendo ocorrer ao longo dos tempos a existência concomitante dos princípios característicos de cada um. Em suma, nota-se que "uma fase penetra a outra, e, durante tempos, esta ainda permanece a seu lado" [15].

A vingança privada tem início com a reação pessoal frente ao agressor, sucedendo-se batalhas entre as famílias e grupos. Ou seja, cometido um crime, ocorria atuação direta da sociedade, sendo a pena executada pela própria vítima, familiares ou grupo social.

Havia desproporcionalidade entre o delito e a punição, pois o sentimento de vingança fazia com que a punição fosse exacerbada e muitas vezes atingia não só o ofensor, mas também todo o grupo a que pertencia.

Em tempos remotos da História da humanidade, época houve em que o homem fazia justiça pelas suas próprias mãos. Era a vingança privada, violenta e quase sempre eivada de demasias. Sem observar, mesmo aproximadamente, a lei física da reação igual e contrária à ação, o ofendido e os do seu agrupamento procediam desordenada e excessivamente, de modo que, às vezes, aquilo que constituía ofensa a um indivíduo passava a sê-lo relativamente à comunidade toda a que ele pertencia, travando-se lutas e guerras que o ódio eternizava. [16]

A história presenciou lutas acirradas entre grupos e famílias que se debilitavam até a extinção e, na busca por preservação, surge o talião, em que o castigo passa a ser delimitado e proporcional à ofensa, assim como se reconhece a personalidade da responsabilidade criminal, castigando-se apenas o autor da infração. "A pena de talião, embora hoje se nos afigure brutal, significa indiscutivelmente uma conquista" [17]. No contexto histórico foi um verdadeiro progresso para os sistemas punitivos até então conhecidos. Posteriormente, adotou-se a composição pecuniária, em que o ofensor comprava do ofendido o direito de represália.

Na fase da vingança divina o povo era somente destinatário das punições. O objetivo da repressão era a satisfação da divindade, ofendida pelo crime. Havia rigor e crueldade nas punições.

Com o enfraquecimento do poder das instituições religiosas, o Estado passa a ter exclusividade na aplicação de punições, surgindo então a fase da vingança pública, em que prevalecia a vontade do soberano e todo delito era considerado uma ofensa à integralidade da sociedade.

As penas também eram severas e cruéis, sendo que com o intuito de intimidação surgiram os suplícios (espetáculos em que as penas eram executadas em praça pública).

O Direito Penal, pródigo na cominação da pena de morte, executada pelas formas mais cruéis (fogueira, afogamento, soterramento, enforcamento etc.), visava especificamente à intimidação. As sanções penais eram desiguais, dependendo da condição social e política do réu, sendo comuns o confisco, a mutilação, os açoites, a tortura e as penas infamantes. Proscrito o sistema de composição, o caráter público do Direito Penal é exclusivo, sendo exercido em defesa do Estado e da religião. O arbítrio judiciário, todavia, cria em torno da justiça penal uma atmosfera de incerteza, insegurança e verdadeiro terror. [18]

Porém, o horror do cenário e o estado de reificação a que eram submetidas as pessoas passou a despertar na população o sentimento de compaixão, suscitando na consciência comum a necessidade de modificações. Surgiram então protestos contra a injustiça na aplicação da pena (não só injustiça na própria pena, como a corrupção que permeava o aparato da Justiça).

O Estado foi obrigado a repensar a forma da execução penal, atendendo aos anseios humanitários da sociedade. Então se finalizam os períodos de vingança, surgindo o período humanitário, adiante analisado.

Assim, diz-se que nessa fase de transição o povo teve a mais importante atuação na aplicação da pena, pois foi ele o principal responsável pela sua humanização [19].

Prossegue-se agora à análise das características em algumas das sociedades.

2.3 EVOLUÇÃO NAS SOCIEDADES

2.3.1 Direito Chinês

O antigo sistema penal chinês possuía caráter sagrado e místico, estando materializado no Livro das Cinco Penas, que consistiam na "amputação do nariz, amputação das orelhas, na obstrução dos orifícios do corpo, na perfuração dos olhos e na morte" [20].

As cerimônias eram públicas e a pena capital era executada geralmente através da forca, decapitação, esquartejamento e enterro com vida. "A vingança e o talião apareciam como vertentes básicas de toda uma ideologia de terror e de martírios" [21].

2.3.2 Direito Persa

Em uma primeira época vigorava na Pérsia a vingança privada, regulada pelo talião. Após, com o advento do islamismo surgiu uma nova fase, em que os crimes eram considerados ofensas à majestade do soberano e, por isso, as punições eram muito cruéis.

2.3.3 Direito Hebraico

"Após a etapa da Legislação Mosaica, evolui o Direito Penal do Povo hebreu com o Talmud" [22], no qual houve a substituição da pena de talião pela multa, prisão e imposição de gravames físicos. Ocorreu também a extinção da pena de morte, que cedeu lugar à prisão perpétua sem trabalhos forçados.

Surgiram garantias rudimentares em benefício do réu, tais como a punição da denunciação caluniosa e do falso testemunho.

2.3.4 Direito na Grécia Antiga

No início da civilização grega as leis, propriamente ditas, estavam intimamente ligadas às crenças religiosas, assim como as punições eram as inerentes a tal espécie de sistema. Entretanto, somente eram titulares de direitos os cidadãos gregos, sendo que aos excluídos (mulheres, escravos e estrangeiros) impunham-se apenas obrigações e punições.

Nesse contexto, o destaque da legislação grega foi o código de Sólon, que consistiu em uma verdadeira revolução social, na qual as leis passaram a aplicar-se a todos [23].

2.3.5 Direito Romano

Destaca-se a Lei das XII Tábuas (século V a.C.), pois "com ela inicia-se o período de vivência legislativa com a conseqüente limitação da vingança privada, pelo talião e pela composição" [24]. Buscou-se, assim, a proporcionalidade entre o delito e a punição. Ou seja, a reação à ofensa era limitada à prática de um mal idêntico ao sofrido.

Consistiu também em uma ampla revolução no sistema anteriormente vigente, em que apenas os cidadãos eram detentores dos direitos e obrigações decorrentes da lei (excluíam-se os escravos e os estrangeiros), passando a lei a possuir caráter público e aplicável a todos. Deixou-se ainda de atribuir o caráter santo à lei, para entendê-la como manifestação da vontade humana, passível de alteração por essa mesma vontade [25].

No ano de 509 a.C. surge a Lex Valeria [26], que submeteu ao requisito da confirmação popular as sentenças condenatórias à pena capital prolatadas por magistrados contra cidadãos romanos, aumentando a participação comunitária no juízo de aplicação das penalidades.

2.3.6 Direito Germânico

No Direito Penal germânico [27] inicialmente também vigia a vingança de sangue, sendo que a reação era feita individualmente ou através do grupo familiar, o que originou a Faida, ou seja, ordem consuetudinária em que o agressor era entregue à vítima ou aos seus parentes para que exercessem o direito de vingança. Com o fortalecimento do poder estatal, foi gradativamente substituída pela composição, inicialmente voluntária, depois obrigatória (havia o dever de compensar o prejuízo sofrido com importâncias em pecúnia).

No âmbito processual "vigoravam as ‘ordálias’ ou ‘juízos de Deus’ (prova de água fervente, de ferro em brasa etc.) e os duelos judiciários, com os quais se decidiam os litígios" [28] (pessoalmente ou através de lutadores profissionais [29]).

Passa-se então à época franca (ano 481), em que se erige um Estado unitário e percebe-se que o Direito não é só um costume popular dedicado aos deuses, mas também vontade estatal. Adota-se uma "política criminal consciente, como metódica repressão ao crime" [30], em que a objetividade penal e a composição são privilegiadas.

2.3.7 Direito Canônico

No período do Direito canônico, ordenamento jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana, eram aplicadas penas que atingiam bens espirituais e direitos eclesiásticos (v.g. excomunhão e penitência); e bens jurídicos de ordem leiga (v.g. integridade física, liberdade, patrimônio). O escopo era o arrependimento, a correção do delinqüente, o restabelecimento da ordem social, a exemplaridade da punição e a purgação da culpa, "o que levou, paradoxalmente, aos excessos da Inquisição" [31].

Na hipótese de necessidade de aplicação da pena de morte eram os casos remetidos às cortes laicas, as quais tinham sua atuação conhecida e autorizada pela Igreja.

Dentre as características do sistema [32], destacou-se a contribuição para a humanização das penas e a imposição de limite real e definitivo à vingança privada.

2.3.8 Direito Medieval

Também denominado de Direito Penal comum [33], consistiu em fase na qual ocorreu a fusão dos postulados romanos, germânicos, canônicos e dos direitos nacionais, passando a ter destaque o papel dos juristas.

O Absolutismo político responsabilizou-se por agravar o Direito Penal, caracterizando-se pela crueldade na execução das penas (quase sempre corporais e aflitivas), com objetivo apenas de vingança social e intimidação, sendo utilizados os suplícios (espetáculos em que as penas eram executadas em praça pública).

Na realidade, a lei penal dos tempos medievais tinha como verdadeiro objetivo provocar o medo coletivo. Não importa a pessoa do réu, sua sorte, a forma em que ficam encarcerados. Loucos, delinqüentes de toda ordem, mulheres, velhos e crianças esperam, espremidos entre si em horrendos encarceramentos subterrâneos, ou calabouços de palácios e fortalezas, o suplício e a morte. [34]

2.4 PERÍODO HUMANITÁRIO

Tem início no decorrer do Iluminismo, e a Justiça Penal deixa de ser um meio de vingança para se tornar um instrumento de punir. Inicialmente foi a doutrina jusnaturalista (cristã e racionalista) responsável por defender os direitos humanos diante do Estado.

E, nesse ambiente político-cultural, de crítica e de reforma, surgiram os chamados precursores dos sistemas penitenciários, os quais preocuparam-se com a situação das prisões e possibilitaram a criação de política criminal mais justa. São exemplos:

Cesare Beccaria, autor de "Dos Delitos e das Penas", onde apresenta uma série de postulados acerca da humanização das sanções criminais, os quais servem de referencial até hoje; John Howard que escreveu "O estado das prisões na Inglaterra e no País de Gales", onde relata as péssimas condições dos cárceres que visitou em vários países, e Jeremy Bentham, discípulo de Howard, que além de escrever "Teoria das penas e das recompensas" onde defende o utilitarismo da pena, foi o criador do panóptico, modelo arquitetônico de prisão celular. [35]

Desse período decorrem os fundamentos da estrita legalidade dos crimes e das penas; a afirmação de que a finalidade da pena é a prevenção geral e a utilidade; a reafirmação da necessidade de proporcionalidade entre o crime a pena; a abolição da tortura e da pena de morte, passando a prisão a ser adotada como pena, e não somente como instrumento de custódia; a clareza das leis; a separação das funções estatais; e a igualdade de todos perante a lei.

2.5 ESCOLAS DE DIREITO PENAL

A Escola Clássica fundamenta-se nos ideais iluministas, trazendo a noção de imputabilidade, decorrente do livre arbítrio.

Prossegue-se à fase da Escola Positivista, em que se destacam como objeto do estudo do Direito Penal não só o crime e a pena, mas também o delinqüente e o processo.

Na Escola Crítica, assim como na sua antecedente, a pena tem a função de defesa da sociedade.

Subseqüentemente surge a Escola Moderna Alemã, em que ocorre o desenvolvimento da política criminal e a pena passa a ser orientada de acordo com a personalidade do delinqüente.

Seguem-se a Escola Técnico-jurídica (adota-se a medida de segurança aos inimputáveis e a pena, aplicável aos imputáveis, possui as funções preventiva geral e especial), Correcionalista (fundada na pena privativa de liberdade), e alcança-se o Movimento de Defesa Social, em que ocorre exame crítico do sistema, com vocação humanista e apelo às ciências humanas. Realizou-se uma aproximação pluridisciplinar do problema criminal visando a proteção do ser humano e a garantia dos direitos do homem.

2.6 EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

A História do Direito Penal no Brasil pode ser dividida em 04 períodos: pré-colonial, colonial, imperial e republicano.

No período pré-colonial eram exclusivamente os indígenas que habitavam o país. Não havia legislação e, portanto, os regramentos eram consuetudinários e permeados por misticismo. Adotava-se principalmente a vingança privada, sem uniformidade nas punições aplicadas contra as condutas ofensivas. Conheciam-se também maneiras de composição do dano.

Conforme salienta João Bernardino Gonzaga [36], havia uma noção, ainda que rústica e empírica, do talião. Assim, aplicava-se certa proporcionalidade entre a ofensa e a punição, adotando-se principalmente sanções corporais (sem tortura) e a expulsão da tribo.

Mas, "dado o seu primarismo, as práticas punitivas das tribos selvagens que habitavam o nosso país, em nenhum momento influíram na nossa legislação" [37].

Com o descobrimento do Brasil em 1500 passaram a vigorar as normas do Direito português, na seguinte ordem cronológica: Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521), Compilação de Duarte Nunes de Leão (1569) e Ordenações Filipinas (1603).

Característica marcante é a de que todas eram orientadas "no sentido de ampla e generalizada criminalização" [38], com severas punições, tais como a pena de morte, queimaduras [39], "açoite, amputação de membros, galés, degredo etc." [40].

Havia ainda verdadeira "inflação de leis e decretos reais destinados a solucionar casuísmos da nova colônia" [41]. Na prática, a isso se aliavam os poderes que eram conferidos a donatários através das cartas de doação, criando uma realidade jurídica particular, na qual predominava, em verdade, o arbítrio dos donatários.

Pode-se afirmar, sem exagero, que se instalou tardiamente um regime jurídico despótico, sustentado em um neofeudalismo luso-brasileiro, com pequenos senhores, independentes entre si, e que, distantes do poder da Coroa, possuíam um ilimitado poder de julgar e administrar os seus interesses. De certa forma, essa fase colonial brasileira reviveu os períodos mais obscuros, violentos e cruéis da História da Humanidade, vividos em outros continentes. [42]

Após a independência do Brasil, tendo início o período imperial, foi sancionado o Código Criminal do Império do Brasil, no ano de 1830, inspirado nas idéias de Benthan, Beccaria e Mello Freire, no Código Penal Francês de 1810, no Código da Baviera de 1813, no Código Napolitano de 1819 e no Projeto de Livingston de 1825, conforme informa Cezar Roberto Bitencourt [43].

Tal diploma legal trouxe importantes inovações e garantias para o sistema, tais como "o princípio da legalidade, as regras sobre tentativa, elemento subjetivo, autoria e participação, casos de inimputabilidade, causas de justificação, agravantes e atenuantes" [44], espécies e regras gerais de aplicação das penas.

Proclamada a República, adveio o Código Penal de 1890, que ignorava por completo os avanços doutrinários, com graves defeitos de técnica, motivo pelo qual foi alvo de inúmeras críticas. Com o intuito de sanar os defeitos foi editada uma elevada quantidade de leis extravagantes, o que formou uma "verdadeira colcha de retalhos" [45], culminando na concentração conhecida como Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe (1932).

Inúmeros foram os projetos de novos códigos. Enfim, sancionou-se o projeto de Alcântara Machado em 1940, surgindo o Código Penal que vigora desde 1942 até os dias atuais, mas com algumas modificações, dentre as quais destacam-se a Lei nº 6.416/77 (que procurou atualizar as sanções penais) e a Lei nº 7.209/84 (que instituiu nova parte geral).

E, em 1988, consolidando o Estado Democrático de Direito surge a atual Constituição da República Federativa do Brasil ("lei fundamental e suprema" [46] do Estado) que traz inspirações humanistas [47], principalmente no concernente ao respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III).

Garantias foram tornadas definitivas em seu art. 5º, tais como, dentre outras, a vedação de instituição de juízo ou tribunal de exceção (inciso XXXVII), a estrita legalidade (XXXIX), a pessoalidade e individualização da pena (XLV e XLVI), a vedação quanto à imposição de penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento, e quaisquer outras que se mostrem cruéis (XLVII), e o respeito à integridade física e moral dos presos (XLIX).

2.7 CONCLUSÃO SOBRE A EVOLUÇÃO

A sociedade sempre esteve presente na execução penal. Por vezes, a participação ocorreu em menor grau, em que as pessoas foram meramente destinatárias da sanção ou espectadoras (vinganças divina e pública). Por outras, a atuação foi ativa e profunda, com a movimentação popular na própria execução das punições (vingança privada) ou na reforma de sistemas punitivos então vigentes (transição para o período humanitário).

Mas, o principal é que dessa ação da comunidade durante os séculos decorreu a humanização da pena e a implementação de políticas penitenciárias, permitindo o atual estágio de desenvolvimento, em que se concebe a cooperação entre a sociedade e o Poder Público na implementação de soluções e ações que visem à melhora da segurança pública e da própria sociedade como um todo.

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Sobre o autor
Ayrton Vidolin Marques Júnior

assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (PR), laureado com o Prêmio Professor Milton Vianna, pós-graduando em Direito Criminal pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES JÚNIOR, Ayrton Vidolin. A participação da comunidade na execução penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1544, 23 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10447. Acesso em: 1 mai. 2024.

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