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A participação da comunidade na execução penal

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6 A IMPORTÂNCIA DA PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE

Consuelo da Rosa e Garcia [97] expõe que diante da ocorrência de um crime o sentimento social aflora no desejo de punir o sujeito desviante (retribuindo de certa forma o mal que causou à sociedade), de tal sorte que a vontade de expulsá-lo de uma vez por todas da comunidade sobrepõe-se à própria racionalidade humana, seja no fato de "fazer justiça com as próprias mãos" ou simplesmente enclausurá-lo em uma instituição de segurança máxima e ali desejar que permaneça até o fim de seus dias.

Nesse raciocínio, a comunidade crê que a tranqüilidade social é obtida através da segregação social do sujeito que a ofendeu. Trata-se de herança que remonta aos primórdios das civilizações, em que a pena aplicada ao sujeito infrator das condutas impostas pelo grupo social era o banimento.

Todavia, em países como o Brasil, em que não há no sistema jurídico a possibilidade de aplicação de penas de morte ou de prisão perpétua, o que ocorre é apenas a retirada temporária do delinqüente do meio social, sendo o retorno do indivíduo (a liberdade) um fato certo.

Parte da população não tem conhecimento de que o sistema penitenciário é apenas um elo de uma corrente que vai desde a prática do crime até a recuperação da pessoa que o praticou, a fim de que possa ser inserida novamente em uma sociedade de paz. [98]

Dessa forma, é necessário que ocorra o máximo possível de esforço da sociedade em recuperar o indivíduo, trabalhando-se no sentido de prepará-lo para uma sadia e harmônica reinserção social. Nesse sentido, a lição de Márcio Gontijo:

[...] para que a terapêutica criminal logre seu propósito de ressocialização do delinqüente, também é imperioso que a comunidade deixe de cercar a individualidade criminosa daquela aura de antipatia, desconfiança, temor e hostilidade. Comporta, isto sim, conhecer a máxima de Terêncio: "homem sou e nada do que é humano me é indiferente". [99]

A ausência da participação da comunidade na execução penal torna o ambiente carcerário artificial e "não permite realizar nenhum trabalho reabilitador sobre o recluso" [100]. A questão transforma-se em paradoxo, pois se busca a ressocialização de um indivíduo, utilizando como ferramenta a sua segregação da própria sociedade.

Ou ainda pior, nota-se que o indivíduo é colocado em um ambiente (penitenciárias) no qual estão inseridas apenas outras pessoas tidas como anti-sociais, fator que, em tese, apenas acarretará ainda mais a degradação do seu comportamento, o que tem sido chamado de fenômeno da prisionalização (ou prisionização [101]), e consiste no fato de que as regras sociais existentes não possuem qualquer valor no interior dos estabelecimentos penais, sendo que lá existem normas próprias, pertinentes ao submundo carcerário, e às quais o preso, por questão de sobrevivência, é compelido a aceitar.

Rosânea Elizabeth Ferreira aborda a problemática:

[...] Quando um indivíduo ingressa num estabelecimento prisional, as regras sociais que aprendeu não valem mais, devendo ele submeter-se, até mesmo por questão de sobrevivência, às normas existentes no submundo carcerário, começando aí o fenômeno da prisionalização, promovido pela aculturação. [102]

Assim como a lição de Eugênio Raúl Zaffaroni [103], já abordada no início do presente estudo, Erving Goffman traz a ótica da psicologia:

Aparentemente, as instituições totais não substituem algo já formado pela sua cultura específica; estamos diante de algo mais limitado do que a aculturação ou assimilação. Se ocorre mudança cultural, talvez se refira ao afastamento de algumas oportunidades de comportamento e ao fracasso para acompanhar mudanças sociais recentes no mundo externo. Por isso, se a estada do internado é muito longa, pode ocorrer, caso ele volte para o mundo exterior, o que já foi denominado "desculturamento" – isto é, "destreinamento" – que o torna temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária. [104]

Ou seja, com a imersão do indivíduo no cárcere, verifica-se primeiramente o fenômeno da prisionização, o qual é responsável por desestruturá-lo psicológica e socialmente. Porém, como conseqüência direta, tem-se que quando a pessoa alcançar novamente a liberdade estará ela completamente excluída do mundo, tendo perdido toda a percepção de sua individualidade e da sua inter-relação com a sociedade.

Ocorre ainda que o tempo passado pelo encarcerado no interior da instituição totalitária, sem que nada de produtivo tenha sido feito, faz com que surja um intenso sentimento de que todo aquele tempo foi perdido e, por isso, o "internado tende a sentir que durante a sua estada obrigatória – sua sentença – foi totalmente exilado da vida" [105].

Atentando-se à importância do tema, a legislação, ao tratar sobre o assunto da execução penal, abordou a participação da comunidade em auxílio ao Poder Público logo nos itens 24 e 25 da Exposição de Motivos da LEP, ficando claro tratar-se de pressuposto basilar e indispensável para a correta aplicação da Lei Penal.

Entretanto, há de se atentar que as ações comunitárias não devem ocorrer apenas após o acontecimento do fato criminoso, pois este é somente o efeito de um problema muito maior – a questão social. Devem-se envidar esforços para que sejam desenvolvidos trabalhos adequados à prevenção da criminalidade, colocando-se termo final ao atual ciclo vicioso de que violência e desigualdade social tem gerado apenas mais violência e mais desigualdade social.

É fácil a percepção de que com a busca de melhorias a própria sociedade será a principal beneficiada, o que repercutirá na vida de todos, criando um ambiente sadio ao pleno desenvolvimento humano.


7 A PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE ANTES DA OCORRÊNCIA DO FATO CRIMINOSO (CARÁTER PREVENTIVO)

Thiago Lopes Lima Naves, ciente de que a maior parcela dos delinqüentes são pessoas socialmente excluídas, apregoa como fator preventivo da criminalidade "a participação da comunidade, na vida das pessoas, anteriormente à execução penal, através de um requisito inerente à condição de dignidade e liberdade humanas: a solidariedade" [106].

Embora a solidariedade seja uma palavra auto-explicativa, do dicionário extrai-se que possui o significado de laço ou vínculo recíproco de pessoas, consistindo em um "sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses dum grupo social, duma nação, ou da humanidade" [107].

Assim, caso fosse aplicada a solidariedade no dia-a-dia das relações pessoais, não haveria exclusão social. A comunidade seria justa, possuiria a equidade por princípio.

Cada pessoa alcançaria a consciência de sua responsabilidade e passaria a ter efetiva participação na elaboração e realização de políticas sociais.

Seriam fornecidas oportunidades a todos, a fim de que se realizassem pessoalmente, por vias condizentes à sua condição humana.

A educação, a saúde e o trabalho seriam garantidos.

Em conseqüência a participação da comunidade seria efetiva na prevenção da criminalidade. Teria atuado antes de uma execução penal, pois evitaria a delinqüência e a aplicação de penas.

Sabe-se que a aplicação da solidariedade nos moldes expostos é utopia. Entretanto, é urgente a necessidade de adoção de políticas sociais que visem à prevenção de delitos, que busquem veementemente a diminuição da exclusão social.

No campo da política, o melhor meio de o cidadão atuar é conscientizando-se da importância do voto, elegendo pessoas que realmente estejam comprometidas com o interesse social, e delas cobrando efetividade nas ações.

Já no âmbito individual, as pessoas devem ter iniciativa de doar um pouco de si para os necessitados, antes mesmo de pensarem em seus interesses particulares. Somente "arregaçando as mangas" e batalhando por um futuro melhor é que o sonho de um mundo mais justo poderá tornar-se mais concreto.

Basta singela análise da sociedade para se perceber que não faltam locais em que é possível encontrar pessoas dispostas a fazerem alianças na busca de melhorias sociais.

De maneira exemplificativa pode-se citar as associações de igrejas, os diversos clubes de serviços existentes, as organizações não governamentais e, em especial, o voluntariado.

Seria interessante também que no âmbito político fossem realizadas campanhas de educação e conscientização do cidadão quanto à importância de que participe de associações civis, ou voluntariamente (de forma individual), no intuito de melhoria da qualidade de vida de todos.

Conforme adverte Carlo Crispim Baiocchi Cappi [108], cumpre ressaltar que não se trata de realizar mero assistencialismo (e.g. distribuição de cestas básicas), mas sim, de fornecer cidadania emancipada, ou seja, procurar dar ao próximo as condições necessárias ao seu desenvolvimento pessoal, a fim de que em curto espaço de tempo possa ele próprio passar a sustentar suas necessidades materiais e intelectuais.

Pode-se afirmar com segurança que quanto maior o grau de cidadania do povo, menores serão os índices de violência.


8 A PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE NA EXECUÇÃO PENAL

8.1 REGRAS DA ONU

O Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre prevenção do crime e tratamento de delinqüentes, realizado em Genebra no ano de 1955, culminou com a adoção de regramentos denominados "Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros" [109].

Nesses regramentos foram editados itens relacionados diretamente ao assunto da participação da comunidade na execução da pena privativa de liberdade. São eles: itens 58, 60.1, 60.2, 61, 80 e 81.1.

O primeiro item citado dispõe que a finalidade e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é, em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Para tanto, o tempo de prisão deve ser aproveitado para assegurar que o delinqüente, quando regresse à sociedade, queira e seja capaz de respeitar as leis e de se auto-sustentar.

O segundo, que se deve tentar reduzir as diferenças existentes entre a vida na prisão e a vida livre, respeitando-se assim a dignidade do preso e resgatando o seu senso de responsabilidade.

O terceiro, que sejam tomadas providências no sentido de que ocorra um retorno progressivo do recluso à sociedade, o que pode ser alcançado com um regime preparatório para a completa liberação, como, por exemplo, a libertação condicional.

O quarto, que no tratamento seja enfatizado que os presos continuam a fazer parte da sociedade, e não que dela foram excluídos. E, para tanto, deve-se recorrer à cooperação dos organismos comunitários, bem como sejam adotadas gestões que visem proteger os direitos relativos aos interesses civis, benefícios sociais e direitos previdenciários dos presos.

O quinto, que desde o início do cumprimento da pena deverá ser considerado o futuro do recluso depois de libertado, devendo ser estimulado e auxiliado a manter ou estabelecer relações com pessoas ou organizações externas, aptas a promover os melhores interesses da sua família e da sua própria reabilitação social.

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O sexto, que se deve buscar auxiliar os presos na obtenção de documentos de identificação e que, após libertados, alcancem trabalho, moradia e vestuário adequados. Importante também que sejam fornecidos meios materiais para que cheguem em seu destino (v.g. pessoa que reside em Curitiba e está presa em Piraquara, é prudente que quando seja libertada lhe forneçam uma passagem de ônibus para que possa retornar ao lar) e para que possam se manter no período imediatamente seguinte ao da libertação.

No entanto, dentre os itens apresentados, o de nº 58 é o que merece maior destaque, pois realça a preparação do preso para o seu retorno sadio ao convívio em sociedade. Esse é o cerne da questão, a ressocialização, motivo pelo qual as outras regras estabelecidas demonstram formas de como atingir a finalidade a que a pena se dispõe, sendo essencial a atuação direta da comunidade na educação e no estímulo de condutas cidadãs no delinqüente, buscando-se a sua recuperação.

Daí a razão das inúmeras previsões de que membros da comunidade devem atuar diretamente no trato do prisioneiro, a fim de que possa ele sentir que está inserido no contexto social e que a sociedade não lhe "deu as costas", estando sinceramente preocupada com o seu bem-estar e recuperação.

8.2 REGRAS DE TÓQUIO

As Regras de Tóquio, editadas pelas Nações Unidas, constituem-se em regras internacionais mínimas sobre as medidas não privativas de liberdade e dedicam itens acerca da abordagem da participação da comunidade, a saber: itens 17.1, 17.2, 18.1, 18.2, 18.3 e 18.4. No entanto os dois primeiros itens mencionados emergem como peças fundamentais.

O item 17.1 destaca que a participação da comunidade complementa a ação da administração da Justiça Penal, constitui-se em recurso fundamental e é um dos fatores mais importantes para fortalecer os vínculos entre os delinqüentes submetidos a medidas não-privativas de liberdade (bem como suas famílias) e a sociedade. Por esses fatores, o item apregoa que a comunidade deve ter a sua participação incentivada.

O segundo item citado assinala que "a participação da comunidade deve ser vista como uma oportunidade para que seus membros contribuam para a proteção de todos" [110].

Damásio Evangelista de Jesus [111], ao comentar as citadas regras, expõe que a participação da sociedade pode ajudar os delinqüentes a estabelecer vínculos significativos na comunidade, ampliando as possibilidades de relação e apoio que podem continuar mesmo após ter terminado a aplicação da medida não-privativa de liberdade. Os serviços que a comunidade pode prestar são singulares e qualitativamente diferentes dos proporcionados pelas organizações oficiais. Acrescenta ainda que a autoridade de execução deve estudar a conveniência de celebrar acordo com grupos comunitários, especificando a natureza da sua participação e a forma como devem trabalhar.

8.3 DISPOSITIVO LEGAL FUNDAMENTAL

O fundamento precípuo que versa sobre a participação da comunidade na Execução Penal encontra-se prescrito no art. 4º da Lei nº 7.210 de 11 de Julho de 1984 (LEP), o qual dispõe que o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.

Importante frisar que, em regra, a lei não contém expressões ou palavras desnecessárias. Assim, mister perceber que o dispositivo em exame não prescreve uma faculdade do Estado em recorrer à cooperação da comunidade, mas sim, um dever.

A maneira pela qual o legislador dispôs a norma tem sua razão de ser, e consiste justamente na consciência das dificuldades enfrentadas no Brasil pela máquina estatal (não só no âmbito penal, mas em todas as esferas). Sua finalidade principal é a de envolver todas as pessoas nas questões penais, demonstrando claramente a necessidade da realização de um esforço coletivo na melhoria da sociedade e, conseqüentemente, na qualidade de vida de todos, pois é a própria comunidade a maior beneficiada.

A esse respeito:

[...] Afirma Miguel Reale Junior que a comunidade pode colaborar, trazendo à rigidez da administração penitenciária o sopro da vida livre, agindo como fiscal ou auxiliando na tarefa de assistir o encarcerado.

Com o dispositivo não está o Estado eximindo-se da tarefa que lhe é pertinente, mas apenas afirmando que cabe à própria comunidade uma parcela de responsabilidade na reintegração daquele que delinqüiu. A sanção penal sempre se constituiu em um estigma social que acompanha o sentenciado mesmo após a sua liberação definitiva, e o mundo do cárcere, submetido autocraticamente aos agentes do Estado, precisa ser arejado e fiscalizado por pessoas alheias ao sistema, não se podendo prescindir da contribuição da comunidade nessa e em outras tarefas de assistência ao preso, internado e egresso. [112]

Luiz Flávio Gomes destaca que incumbe também aos próprios juízes a responsabilidade em "procurar promover essa integração comunitária" [113], atuando principalmente na divulgação da importância da participação da sociedade, firmando convênios, esclarecendo às pessoas a maneira e o local em que podem prestar serviço voluntário, etc.

Acresce-se que a atuação da comunidade na execução penal muito mais do que uma necessidade é ainda um dever de cidadania, conforme salienta Carlo Crispim Baiocchi Cappi [114] ao tratar da imperiosidade do auxílio que deve ser prestado pela sociedade civil organizada ao ente estatal na melhoria das condições do sistema punitivo. Afirma citado autor que "não podemos abrir mão de prestar auxílio direto na recuperação do apenado. Devemos servir de instrumento de apoio no difícil processo de reeducação do criminoso" [115].

Cândido Furtado Maia Neto traz nota ao dispositivo em comento, no sentido de que:

É imprescindível a participação da sociedade civil para a reintegração do preso, a fim de que compreenda o objetivo, finalidade e utilidade da pena privativa de liberdade. Necessário se faz a presença constante de segmentos da comunidade, como: organizações não governamentais, empresários, instituições filantrópicas, igrejas, universidades, imprensa, etc..., no interior dos presídios para assistir e verificar o tratamento e o respeito aos Direitos Humanos do preso. [116]

Por fim, ressalte-se que o artigo 4º da LEP guarda relação direta com o artigo 1º do mesmo diploma legal, o qual expõe como objetivo da Execução Penal efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal, assim como proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Sobre o dispositivo, anota Maurício Kuehne:

A Sociedade como um todo muito vem discutindo a respeito da pena de prisão e do Sistema Penitenciário. Vê-se, pela disposição acima, que a preocupação fundamental no que concerne àquele que delinqüiu, é no sentido de reinseri-lo no contexto social. Sabe-se, contudo, que as dificuldades são múltiplas e diversas. [...] [117]

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Sobre o autor
Ayrton Vidolin Marques Júnior

assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (PR), laureado com o Prêmio Professor Milton Vianna, pós-graduando em Direito Criminal pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES JÚNIOR, Ayrton Vidolin. A participação da comunidade na execução penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1544, 23 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10447. Acesso em: 26 jun. 2024.

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