Princípios Constitucionais e Execução Penal
O Estado Democrático e Constitucional de Direito é fundado sob o valor da dignidade da pessoa humana, preceito elementar e inerente à própria Democracia e estatuído como fundamento da República, a teor do artigo 1º, inciso III, da Constituição (CF). Todos os princípios constitucionais decorrem desse valor supremo. Por conseguinte, a violação de qualquer dos princípios emanados pela CF vulnera concomitantemente a dignidade da pessoa humana.
Todos os ramos jurídicos são influenciados e devem revelar consonância com os ditames decorrentes desse valor político e jurídico maior. Em relação às disciplinas inerentes às Ciências Criminais [01] tal correlação deve ser ainda mais meticulosa ao passo que nesse campo do Direito se vislumbra a tutela dos bens jurídicos mais relevantes das lesões jurídicas mais graves sob a ameaça de sanções de natureza penal [02], tais como a privação ou restrição da liberdade.
O valor da dignidade da pessoa humana molda assim a execução penal, cujo fundamento ético e político-jurídico é a harmônica integração social do apenado, nos termos do artigo 1º da Lei de Execução Penal [03] (LEP). Destarte, o processo execucional penal é regido, dentre outros, pelos princípios da personalidade da pena [04], individualização da sanção penal [05] e humanidade [06]. É do valor da dignidade da pessoa humana e dos princípios constitucionais relacionados à execução penal que deflui a progressividade do sistema penitenciário brasileiro.
Como é consabido, três são os regimes prisionais – fechado, semi-aberto e aberto – e o cumprimento de pena deve ser dar através do sistema progressivo adotado pela LEP [07]. Sublinha-se que, apesar da nomenclatura adotada, o designado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) não constitui regime prisional, e sim sanção disciplinar de natureza execucional penal [08].
Novos Requisitos para Progressão de Regime
Dois são os requisitos estabelecidos pela legislação execucional penal para a progressão de regime. O primeiro é de natureza objetiva e se verifica pelo cumprimento de um quantum mínimo da pena no regime anterior. O subjacente diz respeito à observância de bom comportamento carcerário, revelando, pois, natureza subjetiva. Até a entrada em vigor da Lei 11.464/07 [09] o requisito objetivo único para progressão de regime era o previsto no artigo 112 da LEP.
Com a vigência do novo diploma legal supra-referido o sistema execucional penal brasileiro passou apresentar dúplice requisito objetivo para progressão de regime: a) o requisito objetivo geral ou ordinário, previsto pelo artigo 112 da LEP e destinado a todos os crimes não rotulados como hediondos – no qual o quantum mínimo de cumprimento exigido para a progressão é de 1/6 da pena; e b) o requisito objetivo especial ou extraordinário, previsto pela nova redação do § 2º da Lei 8.072/90 dada pela Lei 11.464/07 e destinado aos crimes rotulados como hediondos – no qual o patamar mínimo de cumprimento da pena é de 2/5 (dois quintos) para apenados primários e 3/5 (três quintos) para reincidentes.
Em relação aos aspectos temporais vinculados à aplicabilidade da Lei 11.464/07, nomeadamente em relação aos novéis requisitos objetivos estabelecidos para a progressão de regime em crimes legalmente estabelecidos como hediondos, há divergência doutrinária e jurisprudencial.
Vislumbram-se, em suma, dois entendimentos: a) o da retroatividade do requisito objetivo especial ou extraordinário, de modo a admitir a aplicação dos novos patamares mínimos de cumprimento de pena exigidos para a progressão de regime a crimes hediondos praticados antes da Lei 11.464/07; e b) o da irretroatividade dos novos requisitos objetivos previstos pela regra legal em questão, cujo emprego só seria admitido para os crimes hediondos cometidos após o dia 29 de março de 2007, quando passou a Lei passou a vigorar.
O posicionamento que patrocinamos [10] é o da irretroatividade dos novos níveis mínimos de cumprimento de pena para a admissibilidade de progressão de regime para apenados por crimes hediondos. Ainda que do ponto de vista estritamente legal a progressão em crimes hediondos só tenha sido admitida pela Lei 11.464/07, através de uma apreciação principiológica e constitucional já se admitia a progressividade, haja vista a patente inconstitucionalidade [11] de se vedar de modo apriorístico e geral a progressão de regime.
Portanto, se já era possível progredir de regime após o cumprimento de no mínimo 1/6 da pena antes da entrada em vigor da nova lei, os novos patamares de 2/5 e 3/5 de cumprimento da sanção penal para se admitir a progressão de regime são evidentemente mais rigorosos. Logo, por ser menos benéfica ao apenado, tal disposição não retroage. É o posicionamento que se depreende do princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, estatuído pelo artigo 5º, inciso XL, da CF.
Precedentes STF sobre a aplicabilidade temporal da Lei 11.464/07 [12]
Não obstante a recenticidade da vigência da Lei, cuja entrada em vigor se deu em 29 de março de 2007, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou acerca da sua aplicabilidade no tempo em duas decisões monocráticas. Em ambas o entendimento firmado foi no sentido da irretroatividade dos novos requisitos objetivos especial ou extraordinário de 2/5 ou 3/5 de cumprimento mínimo de pena para progressão de regime de apenados primários ou reincidentes em crimes hediondos, respectivamente.
Ao fundamentar as decisões com base no princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes acenaram o entendimento de que em relações aos crimes hediondos praticados antes de 29 de março de 2007 o requisito objetivo para a progressão de regime continua sendo geral ou ordinário previsto no artigo 112 da LEP, qual seja, cumprimento mínimo de um quantum de 1/6 da pena.
"[...] a progressão de regime, conforme art. 2º, §2º da Lei 8.072, com a redação dada pela Lei 11.464 de 2007, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 da pena se primário o réu. Esta última alteração legislativa não pode retroagir para alcançar o delito, em tese, cometido pelo paciente, pois o fato, segundo a sentença [...] teria ocorrido em 26.10.2006, antes, portanto, de estar em vigor legislação mais gravosa. Assim, aplicando-se a legislação anterior, o paciente poderia progredir de regime ao cumprir 1/6 da pena imposta (art. 112 da Lei de Execução Penal), ou seja, no caso em exame, já faria jus à progressão." (STF. HC 91.360 MC/SP. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Julgamento: 28/05/2007. Publicado no DJ de 04/06/07, p. 00031 – sem destaque no original.)
"No caso concreto, vislumbra-se, ao menos em tese, possível violação ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa (Constituição Federal, art. 5o, inciso XL). Isto porque, dos documentos acostados aos autos pelos impetrantes, verifica-se que, tanto o fato criminoso, quanto a prolação da sentença condenatória, ocorreram em momento anterior à vigência da Lei 11.464/2007." (STF. HC 92.477-8 MC/SP. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento: 17/09/2007.) [13]
Reafirma-se, portanto, o entendimento de que os novos patamares mínimos de cumprimento de pena estabelecidos na LCH para a progressão de regime (2/5 no caso de apenados primários e 3/5 em relação a reincidentes), por serem mais gravosos que o requisito objetivo geral ou ordinário previsto no artigo 112 da LEP (1/6 de cumprimento da pena privativa de liberdade), somente têm aplicabilidade em relação aos crimes praticados a partir da entrada em vigor da Lei, ou seja, 29 de março de 2007 – princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais severa.
Referências
BERNARDES NETO, Napoleão. Da irretroatividade dos novos patamares para progressão de regime em crimes hediondos: primeiras manifestações judiciais. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10236>.
BERNARDES NETO, Napoleão. Lei nº 11.464/2007: aspectos introdutórios à nova disciplina legal para a progressão de regimes em crimes hediondos . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1480, 21 jul. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10183>.
BERNARDES NETO, Napoleão. O ideário iluminista e o descompasso com a legislação penal atual: o exemplo do RDD. Revista Direito e Política, Itajaí, v. 2, n. 1, 1º quadrimestre de 2007. Disponível em: <http://www.univali.br/direitoepolitica>.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
GOMES, Luiz Flávio. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
LEAL, João José. Crimes Hediondos: a Lei 8.072/90 como expressão do Direito Penal da severidade. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2006.
LEAL, João José. Direito penal geral: propedêutica penal, teoria da norma penal, teoria do crime, teoria da pena, questões jurídicopenais complementares. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2004.
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao Processo Pena: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2005.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
Notas
01 Consideram-se disciplinas relacionadas às Ciências Criminais os direitos penal, processual-penal e de execução penal, assim como criminologia e política-criminal.
02 A respeito da tipologia das sanções de natureza penal, observar o artigo 5º da CF, especialmente os incisos XLVI e XLVII.
03 A LEP foi instituída pela Lei 7.210/84.
04 Artigo 5º, inciso XLV, da CF.
05 Artigo 5º, inciso XLVI, da CF.
06 Artigo 5º, incisos III, XLIX e L, da CF.
07 Artigo 112 da LEP.
08 Acerca da temática: BERNARDES NETO, Napoleão. O ideário iluminista e o descompasso com a legislação penal atual: o exemplo do RDD. Revista Direito e Política, Itajaí, v. 2, n. 1, 1º quadrimestre de 2007. Disponível em: <http://www.univali.br/direitoepolitica>.
09 A Lei 11.464/07 previu a possibilidade de progressão de regime para apenados por crimes hediondos, até então vedada legalmente por força do artigo 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90). O referido § 1º teve a redação alterada pela nova lei e passou a prever expressamente a progressividade de regime, mesmo nos casos de crimes rotulados como hediondos.
10 Os fundamentos político-jurídicos do nosso posicionamento foram estabelecidos em: BERNARDES NETO, Napoleão. Lei nº 11.464/2007: aspectos introdutórios à nova disciplina legal para a progressão de regimes em crimes hediondos . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1480, 21 jul. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10183>.
11 O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a vedação absoluta e irrestrita ao direito à progressão de regime de condenados por crimes hediondos, ao julgar o HC 82.959, relatado pelo Ministro Marco Aurélio.
12 A respeito das primeiras manifestações judiciais dos tribunais de justiça a respeito da irretroatividade do novo requisito objetivo para progressão de regime em crimes hediondos: BERNARDES NETO, Napoleão. Da irretroatividade dos novos patamares para progressão de regime em crimes hediondos: primeiras manifestações judiciais. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10236>.
13 Extraído da página de notícias da AMAGIS – Associação dos Magistrados Mineiros, sob o título "STF dá progressão a condenado que cumpriu 1/6 da pena" e publicado em 20/09/2007. Disponível em: <http://www.amagis.com.br>.