Capítulo I
Introdução
A violência sexual contra crianças e adolescentes provoca debates acalorados na opinião pública, os casos de abuso e exploração sexual contra menores são constantemente noticiados pelos principais veículos de informação e a população demonstra revolta em relação aos relatos de vítimas, haja vista a aparente inércia das autoridades públicas.
No dia 6 de dezembro de 2022, a Polícia Civil do Rio de Janeiro participou da operação nacional chamada “Luz na Infância 10” para cumprir cinco mandados de busca e apreensão contra suspeitos de pornografia envolvendo crianças e adolescentes, comandada pela Delegacia da Criança e do Adolescente.
Segundo o Jornal O Dia, no dia 11 de abril de 2023, a Polícia Federal prendeu em flagrante um homem por armazenamento de vídeos e imagens, em Magé, na Baixada Fluminense, durante uma operação batizada de Arcanjo XII, que teve como meta a repressão da produção, o compartilhamento e a posse de imagens com conteúdo de abuso sexual infantil.
O mesmo jornal noticiou um flagrante similar no dia 5 de abril, na cidade de Barra Mansa, no sul do Rio de Janeiro, por armazenarem e distribuírem material de abuso sexual de menores em uma operação chamada de “Ctrl+L”.
Segundo uma notícia do Portal G1, no Estado do Rio de Janeiro, em 2021, foram registrados cerca de 591 casos de estupro de crianças de até 11 anos.
Diante do grande número de vítimas, foi criada a Lei nº 7.367/2022, que determina a afixação, em local visível em todas as repartições públicas e autarquias municipais, de cartazes informativos com referência à luta contra a pedofilia, ao abuso sexual e à violência contra crianças e adolescentes.
Seguindo a mesma tendência, a Lei Municipal nº 6.863/2021 estabelece o conjunto de ações e campanhas de conscientização desenvolvidas pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro como formas de prevenir e combater a violência e exploração sexual de crianças e adolescentes, a fim de promover campanhas publicitárias para informar os cidadãos sobre o tema, inova ao instituir o treinamento de servidores municipais, preparando-os para identificar sinais de violência em crianças e adolescentes.
Nesse sentido, recentemente, a prefeitura do Rio de Janeiro lançou um Plano Municipal de Enfrentamento às Violências Sexuais contra Crianças e Adolescentes, que foi assinado pela secretária municipal de Assistência Social, Maria Domingas.
A violência sexual contra menores ser um problema que vem ganhando destaque nos últimos anos, conforme os próximos capítulos evidenciarão. Por influência destes esforços, aumentaram as iniciativas de Estado: políticas públicas e mudanças legislativas.
De todo modo, este trabalho terá como foco as políticas de prevenção, que sabidamente são as mais importantes, pois impedem que a violência ocorra. Estas políticas podem se focar na sociedade, nas crianças, nos pais ou nos educadores (Cheng, 2009).
Discussões acerca dos conceitos de violência, abuso e exploração sexual serão tratados neste trabalho, além dos marcos legais do enfrentamento à violência sexual contra menores de idade; as políticas públicas sobre o tema no Brasil; e a associação entre violência sexual e gênero.
1.2. Algumas considerações iniciais sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado no dia 13 de julho de 1990, foi resultado de um grande debate democrático, promovido por inúmeros movimentos sociais, organizações, representantes da sociedade civil e outras tantas instituições de conscientização e preservação da infância.
Graças ao referido estatuto, foram criadas inúmeras políticas públicas de combate ao abuso e exploração de crianças e adolescentes no Brasil na esfera municipal, estadual e federal.
Em especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente conta com uma série de crimes praticados contra a criança e o adolescentes, como o visto no art. 239, que consiste em promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro (BRASIL,1990).
Ainda no que tange ao abuso e exploração de menores, a pornografia infantil está prevista no art. 240 do ECA que a define como o ato de: produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfico, envolvendo criança ou adolescente" (BRASIL, 1990), assim como no art. 241-A do referido estatuto que versa sobre o ato em questão de oferecer, trocar, disponibilizar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou registro que contenha cena de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente" (BRASIL, 1990).
Ainda no mesmo estatuto, o art. 244 é outro exemplo de crime praticado contra a criança que consiste em submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2° desta lei, à prostituição ou à exploração sexual (BRASIL, 1990).
Com base no referido Estatuto, portanto, aos crimes praticados contra menores, por ação e omissão, sem prejuízo do disposto na legislação penal, aplicam-se as normas da Parte Geral do Código Penal e, no que tange ao processo, a parte relativa ao Código de Processo Penal.
Tais tipificações são de suma importância para a estruturação de políticas públicas de prevenção e combate ao problema no território brasileiro.
Ademais, o ECA, o Código Penal e outros mecanismos jurídicos também são importantes para punir agressores e previnir abusos, mas também é importante assegurar simultânea e articularmente às vítimas de forma multidisciplinar o atendimento ambulatorial e/ou psicológico, a inclusão das mesmas em instituições de ensino, o atendimento dos menores no sistema único de saúde, a inclusão das vítimas e seus familiares em programas sociais, isto é, quando se procura enfrentar a “violência sexual contra crianças e adolescentes” (em outras palavras, o abuso e a exploração comercial) não se deveria restringir as intervenções públicas exclusivamente apenas à responsabilização penal dos abusadores e exploradores de forma maniqueísta. Mas também se deveria assegurar simultânea e articularmente, (1) o atendimento médico e/ou psicossocial do abusado ou abusada, do explorado ou explorada em serviços ou programas especializados, (2) a sua inclusão com sucesso na escola, (3) o seu atendimento especializado por serviços do sistema único de saúde, (4) a inclusão das suas famílias (ou dos beneficiários de acordo com a idade) em programas de geração de ocupação, emprego e renda, (5) ou em programas de erradicação do trabalho infantil (NETO, 2019, pg. 52).
Após décadas, é válido apontar que apesar de todas as conquistas advindas da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente e de todas as suas qualidades, o estatuto apresenta problemas de caráter estrutural e programático, no que tange a efetivação de medidas de combate a violação de direitos de crianças e adolescentes, porém, passadas já três décadas da implantação do ECA, o que se tem percebido é que este potente arcabouço ético-legal ainda padece de condições estruturais, programáticas e, na ponta executiva, de ações que respondam à efetivação esperada, sendo comuns falhas na rede de proteção, parcos ou descontínuos serviços de atendimento, e dificuldades técnicas e institucionais na execução de medidas protetivas, de modo articulado, competentes e ágeis, como a situação requisitada (AMARO, 2022, pg. 29).
Nesse mesmo sentido, não foi possível observar na prática a efetividade de todas as conquistas jurídicas no que tange à infância e juventude nas políticas sociais e em tantas outras medidas governamentais por inúmeros motivos, pois na trincheira da redemocratização, as conquistas advindas das lutas sociais asseguraram do ponto de vista jurídico, da Constituição Federal, Lei Orgânica de Saúde, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica de Assistência Social, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e do princípio da prioridade absoluta, sem distinção de classe, raça, etnia, orientação sexual, gênero. Essa conquista jurídica não teve concretude na realidade, pois não houve mudança cultural, política e social no Estado brasileiro e na sociedade (PINI & SILVA, 2020, p.169).
3. Contextualização: Violência Sexual
Segundo as Nações Unidas, mais da metade dos menores do mundo com idades compreendidas entre os 2 e os 17 anos sofreram violência emocional, física ou sexual, com consequências devastadoras para o seu bem-estar mental (RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO 2021-2022/PNUD).
A Violência Sexual pode ser definida de forma ampla, ou mais estrita, conforme os códigos legais. Kelly (1988) definiu o fenômeno como qualquer ato físico, visual, verbal ou sexual que é vivenciado por uma mulher ou garota no momento ou a posteriori como ameaça de agressão que possui o efeito de machucá-la ou degradá-la e/ou tira a sua capacidade de controlar o contato íntimo.
Para a autora, identificam-se como forma de agressão à mulher: o abuso, a intimidação, a coerção, a ameaça, o uso da força, dentre outras.
Essa definição é extremamente ampla e ao mesmo tempo limitadora, pois primeiramente define o termo como todo e qualquer ato de violência perpetrado contra o gênero feminino; porém exclui o gênero masculino, trazendo no fundo desta definição a ideia de que a violência sexual é um fenônemo propriamente associado às relações de gênero dentro da sociedade. Anteriormente, Kelly (1987) desenvolveu o conceito de contínuo de violência, que considera violência além ato em si, mas como o produto de uma sucessão de eventos. Esta abrangência dada pelo conceito possibilita uma aproximação da vida rotineira e a completude do fenômeno, sem um foco total em conceitos como ‘’estupro’’ ou ‘’abuso’’ em si; possibilitando analisar toda a construção social de um caso de violência, sobretudo causada pelo comportamento masculino.
Ademais, há atos de violência em si, ou ações precedentes, que podem passar desapercebidos, pois não são codificados criminalmente. E não apenas os comportamentos ‘’aberrantes’’, mas também os ‘’típicos’’ podem ser considerados como relevantes, à luz do conceito desenvolvido por Kelly (1988).
A considerar a abrangência conceitual proposta pela autora, o rol de formas de violência sexual se expande. No seu estudo, ela identificou 11 diferentes:
Ameça de violência;
Assédio sexual;
Pressão para fazer sexo;
Agressão sexual;
Ligações telefônicas obscenas;
Sexo coercitivo;
Violência doméstica;
Abuso sexual;
Atentado ao pudor;
Estupro;
Incesto.
Brown (2011) dividiu estas formas de violência entre ‘’comportamentos centrais de violência sexual’’ (ameaça de violência, assédio sexual, pressão para fazer sexo e agressão sexual) e ‘’padrões de comportamento associado com diferentes classes de violência sexual’’ (ligações telefônicas obscenas; sexo coercitivo; violência doméstica; abuso sexual; atentado ao pudor; estupro; incesto).
Todavia, o mais importante é ter em conta que a violência sexual é um fenômeno complexo, que vai muito além do ato e si, mas possui motivações que podem ser explicadas por comportamentos criminosos em questão pelos costumes e normas sociais, trazendo uma necessidade de um ponto de vista sócio-cultural em relação ao problema.
1.4. Definições de Abuso Sexual Infantil
O abuso sexual infantil vem recebido maior destaque ao longo dos anos, por sua espalhada incidência por todo o mundo; e as políticas públicas vem sendo implementadas para prevenção ou enfrentamento mais amplo do problema.
A definição de abuso sexual infantil é uma necessidade tanto para fins operacionais, quanto para a identificação de caso. Para ilustrar a importância e a necessidade de uma definição, segue trecho do estudo da Inter-agency Working Group On Sexual Exploiation of Children (2016, p.1).
Palavras importam porque afetam como nós conceituamos problemas, priorizamos assuntos e forjamos respostas. O uso inconsistente da linguagem pode levar a leis e respostas inconsistentes de políticas públicas sobre o mesmo assunto. Apesar da existência de definições legais para um número de crimes sexuais contra crianças, há uma confusão considerável ao redor do uso terminológico diferente relacionado à exploração sexual e o abuso de crianças. Até mesmo quando os mesmos termos são utilizados, há um desacordo em relação ao seu sentido de fato, levando com que se use as mesmas palavras para se referir a ações e situações diferentes. Isto criou significantes desafios para a programação e desenvolvimento de políticas, desenvolvimento da legislação, coleta de dados, levando a respostas falhas e limitas e métodos ineficazes de mensuração de impacto ou estabelecimento de objetivos (Inter-agency Working Group On Sexual Exploiation of Children, 2016, p.1)
Trickett (2006) apontou a ‘’vagueza’’ e ‘’variabilidade’’ dos conceitos apresentados nas pesquisas como um fator gerador de confusão e imprecisão nos estudos realizados. Para obter mais força científica, sabemos que uma pesquisa necessita de rigidez conceitual para melhor operacionalização dos conceitos e que estes sejam definidos pelos pesquisadores sobre o assunto de forma mais uniforme possível, para que seus resultados possam ser considerados e comparados.
Para uma definição, segundo Mathews & Cólin-Veneza (2017) é necessário partir do consenso de que o abuso sexual de menores é um fenômeno complexo e multi-fatorial, além de considerar todo o conhecimento acumulado por diversas áreas: pesquisa científica, jurídica, políticas públicas, prevenção e pelo estabelecimento de normas sociais.
Para efeito exemplificativo, é importante citar a definição - bastante difundida - da OMS e que auxilia pesquisadores e profissionais da área na identificação de casos.
O envolvimento de uma criança em atividade sexual, na qual ele ou ela que lhes ocorre sem compreensão, é inapta a dar o consentimento informado, ou no qual a criança não tem o desenvolvimento preparado e não pode dar o consenso, ou que viole as leis ou tabus sociais. O abuso sexual é evidenciado por esta atividade entre a criança e um adulto ou outra criança que pela idade ou desenvolvimento é em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder, a atividade tem como objetivo a gratificação ou a satisfação das necessidade de outra pessoa (Organização Mundial da Saúde, 2003, p. 75).
Essa definição é uma das mais usadas, por ser uma das mais completas. Considera os seguintes elementos: a) a incompreensão da criança e a falta de consciência do ato; b) a perspectiva legal e a social de tabu; c) o abuso pode ser feito tanto por adulto quanto por outra criança em posição superior; d) não considera a satisfação ou gratificação do violentador apenas sob o aspecto físico, dando margem a diversos tipos de abuso.
É importante adicionar alguns aspectos não mencionados na definição da OMS, mas que serão muito importantes:
O ambiente onde o abuso sexual ocorre: muitas vezes no próprio seio familiar, ou em escolas, igrejas, etc.
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A amplitude da forma como abuso ocorre: não ocorrendo apenas através de contato físico e/ou penetração
Matheus & Cólin-Veneza (2017), buscando uma definição científica, chegaram a um modelo conceitual, separando a definição por seus conceitos-chave: criança; consentimento. sexual; e abuso.
Tabela 1 - Definição de Matheus & Cólin-Veneza (2017)
Conceito-Chave |
Definição |
Criança |
a ser considerada por duas perspectivas: do desenvolvimento das capacidades e a cronológica-legal, de idade propriamente dita. |
Consentimento |
a ser avaliado pela aparência de verdadeiro consentimento, mas também perguntando à vítima se de fato o ato foi livre, voluntário e sem participação coercitiva. |
Sexual |
considera atos em que ocorrem o contato físico e também os que não ocorrem, mas que tenham o objetivo de alcançar gratificação sexual física ou mental |
Abuso |
‘’é um termo que carrega um alto nível de falibilidade derivado da inescrupolisidade dos atos, que por sua vez seguem quatro indícios:uma relação de poder, a criança está posta em situação de desigualdade, a vulnerabilidade da criança está sendo explorada em seu detrimento e a ausência de um consenso verdade’ |
1.5. Exploração Sexual de crianças e adolescentes
A literatura sobre o tema apresenta inúmeros termos que indicam a violência sexual contra crianças e adolescentes, tais como violência sexual propriamente dita, agressão sexual, vitimização sexual, exploração sexual, maus tratos, servícia sexual, ultraje sexual, injúria sexual, crime sexual, abuso sexual doméstico, violência sexual doméstica, incesto e abuso sexual incestuoso (LIMA, 2018, p.31-32).
Nesse sentido, a exploração sexual de crianças e adolescentes costuma ser produto da privação econômica, fome, miséria e consumo de drogas por um desconhecido, ao passo que o abuso sexual ocorre, na maioria dos casos, por parte de um parente ou conhecido (CHILHOOD FUND, 2022).
Em outras palavras, o abuso sexual é toda forma de relação ou jogo sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, com o objetivo de satisfação desse adulto e/ou de outros adultos. Pode acontecer por meio de ameaça física ou verbal, ou por manipulação/sedução. Na maioria dos casos, o abusador é uma pessoa conhecida da criança ou adolescente – geralmente familiares, vizinhos ou amigos da família.
A exploração sexual, comumente, é caracterizada pelo abuso da posição de um indivíduo para a comercialização e a geração de lucro através da prática sexual de outra pessoa. Porém, a definição pode vir a ser mais ampla, como sugere a definição dada pela ONU em 2003, que é considerada um marco, onde qualquer abuso real ou tentativa de uma posição de vulnerabilidade, poder diferencial ou confiança para fins sexuais, incluindo, entre outros, lucrar monetariamente, socialmente ou politicamente com a exploração sexual (GERASSI).
Segundo o ordenamento jurídico brasileiro e convenções internacionais, a exploração sexual comercial infantojuvenil, em especial, pode se manifestar por meio da utilização de menores na prostituição, na pornografia, no chamado turismo sexual e no tráfico para fim de exploração sexual, mas também é importante apontar outros termos sobre o tema em questão (INSTITUTO INTERAMERICANO DEL NIÑO, LA NIÑA Y ADOLESCENTES/IIN/OEA, 1998).
Ainda no que tange à exploração sexual infantojuvevil, a chamada prostituição infantil é um tipo de exploração sexual envolvendo menores em que figuras como facilitadores, aliciadores, agenciadores e outros tipos de infratores se beneficiam financeiramente dos abusos dos menores (GLOBAL STUDY ON SEXUAL EXPLOITATION OF CHILDREN IN TRAVEL AND TOURISM, 2016).
1.6. Os diferentes tipos de exploração sexual de crianças e adolescentes
A pornografia infantil, por sua vez, se opera com a reprodução, consumo, produção, venda, distribuição, comercialização e aquisição de qualquer tipo de material pornográfico envolvendo menores de idade, estando interliganda com outras formas de exploração sexual como o tráfico de crianças e adolescentes e a protituição infantojuvenil (LANDINI, 2000, p. 31).
Por outro lado, o turismo sexual seria a exploração sexual de crianças e adolescentes por pessoas que conduzem visitantes a destinos turísticos, ou seja, existe a exploração sexual no turismo, uma atividade ilegal praticada por pessoas que conduzem visitantes a destinos turísticos, oferecendo-lhes relações sexuais com crianças e adolescentes da região visitada. (VERAS, 2010, p. 407).
Nesse sentido, o tráfico de menores de idade para fins de exploração sexual é toda facilitação de deslocamento e saída de crianças e adolescentes com intuito de forçá-los a exercerem a prostituição ou qualquer outra forma de exploração de caráter sexual, dentro e fora do território nacional (RELATÓRIO SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS, 2022).
1.7. Lares abusivos
Infelizmente, inúmeros dados indicam que a violência sexual infantojuvenil é um problema crescente no Brasil tendo caráter de continuidade e ocorrendo até mesmo nos lares das vítimas, onde 233 crianças sofrem violência por dia no Brasil, a cada ano cerca de 527 mil sofrem abusos sexuais no Brasil, 70% das vítimas são crianças e adolescentes (AMARO, 2022, p. 30).
Nesse sentido, no que se refere às características da violência sexual contra menores, 37,26% dos eventos tiveram caráter de repetição, 62% ocorreram onde a vítima residia, 87,9% dos casos contra crianças e adolescentes, o agressor era do sexo masculino e 64, 8% tinham vínculo familiar ou eram conhecidos da vítima (AMARO, 2022, p. 30).
Os dados apontam ainda que os criminosos são parentes na maioria dos casos (caracterizando o chamado abuso sexual incestuoso), refletindo uma perversa lógica de poder das relações familiares, onde inúmeros dados apontam que 80% dos casos de abuso sexual contra menores são perpetrados no contexto doméstico, tendo duração mínima de um ano. A violência que golpeia crianças edifica-se como uma relação de poder, edificada na presença de alguém em condições de desenvolvimento superior, no que diz respeito à idade, força, autoridade, situação econômica ou social, que usa dessa condição para assediar, seduzir, coagir, intimadar, manipular, usar e apropriar-se do outro (a vítima) com a finalidade de obter satisfação sexual e outros tipos de violência, como negligência, maus-tratos física e violência psicológica (AMARO, 2022, pg. 33).
A violência intrafamiliar, por exemplo, é muito mais complexa do que parece, pois o abuso sexual costuma se manifestar por meio de diferentes tipos de abusos no seio familiar, ocorrendo em conjunto com outras formas de violência na maioria das vezes: física e emocional.
É preciso também compreender que na prática cotidiana não encontraremos um único tipo de violência, ou seja, os tipos de violência são praticados simultaneamente e, muitas vezes, a violência psicológica possibilita o exercício do abuso sexual, ou a violência física que intimida, não deixando de ser também uma violência psicológica (MOREIRA & SOUZA, 2012, pg. 19).
Contrariando o senso comum, a sociedade e o estado devem e podem interferir na esfera privada de indivíduos envolvidos no que se entende por abuso sexual incestuoso: “Entretanto, como vimos, de acordo com a lei, em uma situação de violência familiar contra criança, podemos e devemos interferir”. (MAGALHÃES, 2005, pg. 45).
Nesse sentido, a violência contra menores de idade tem deixado de ser tratada como um fato natural ou como um modo particular de os pais lidarem com os seus filhos, para ser tratada como um grave problema a ser combatido tanto pelo Estado, como pela sociedade civil e as próprias famílias (MOREIRA & SOUZA, 2012, pg. 16).
1.8. Uma sociedade desigual que explora suas crianças e adolescentes
O comércio sexual e a exploração sexual comercial são sustentados e mantidos pelas forças do consumismo, pobreza e violência comunitária (JONES et al (2014, pg 71).
Como o Brasil é um país cheio de desigualdades sociais (gênero, raça e classe), com uma parcela significativa da população vivendo em condições miseráveis, problemas como a exploração sexual de crianças e adolescentes são muito recorrentes.
Ao longo da história, a questão da violência de caráter sexual tem sido associada às classes sociais empobrecidas, em outras palavras, é atribuída a ocorrência de tal violência à pobreza, ao desemprego, à vulnerabilidade social e econômica dos sujeitos, são diversos os fatores que culminam para a reprodução da violência, dentre eles: os fatores econômicos, sociais, culturais e psicológicos (VIEIRA, pg. 108, 2018).
Nesse sentido, no contexto da exploração sexual por meio do tráfico, a chamada vulnerabilidade social é geralmente usada para referir-se a fatores inerentes, ambientais ou contextuais que aumentam a suscetibilidade de um indivíduo ou grupo a serem traficados. Tais fatores, que são consensuais, incluem violações dos direitos humanos, como a pobreza, a desigualdade, a discriminação e a violência de gênero que contribuem para a criação de privação econômica e condições sociais que limitam a escolha individual facilitando para os traficantes e exploradores cometimento de crimes (RELATÓRIO SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS, pg. 12, 2020)
A partir disso, um ponto a ser considerado ao longo desta pesquisa é o caráter desigual da sociedade brasileira, baseado na dominação, opressão, exploração e violência, que tem condenado milhões de crianças e adolescente à miseria e a diferentes formas de violência sexual, pois a Nação é construída com base em mitos fundantes de dominação, opressão, exploração, violência, típicos do colonianialismo, do elitismo eurocêntrico, do corporativismo privilegiador e do formalismo cartorial (NETO, 2019, pg. 57).
1.9. Marcos Legais: As convenções e tratados internacionais
A criação de convenções e tratados internacionais de proteção dos direitos de crianças e adolescentes foi fundamental para a promoção de mudanças nas políticas públicas de proteção aos menores de idade implementadas no Brasil e mais especificamente no Rio de Janeiro.
No que tange a convenções internacionais, a chamada Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1973) e a Organização das Nações Unidas (ONU, 1989) foram responsáveis pela criação de mecanismos de proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes em diferentes contextos como o de abuso e exploração sexual (MOREIRA, 2020).
Uma das principais convenções internacionais de proteção aos direitos dos menores é a chamada Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, na qual é possível encontrar dispositivos que garantem o tratamento de menores de idade como titulares de direitos, logo passíveis de proteção contra qualquer forma de violência sexual.
A convenção das Nações Unidas sobre os direitos da Criança revolucionou ao operacionalizar a proteção dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes promovendo cuidados e responsabilidades por parte da sociedade e do Estado no que tange à infância e juventude em variados contextos, haja vista a convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança convida a assegurar as duas prerrogativas maiores que a sociedade e o Estado devem conferir à criança e ao adolescente, para operacionalizar a proteção dos seus Direitos Humanos:”cuidados” e responsabilidades.” (NETO, 2019, pg. 45-46).
Após ser ratificada pelo Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990, a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas passou a ser aplicada no âmbito interno do Brasil por meio da implementação de políticas públicas de proteção a menores de todo gênero.
Já a Convenção n° 182 da OIT de 1999 versa, mais especificamente, sobre o combate às piores formas de trabalho infantil como a exploração comercial de crianças e adolescentes expressa na prostituição, na pornografia e na venda de menores.
A partir disso, a referida Convenção da OIT promove a criação de programas de ação comunitária, governamental ou até mesmo programas do tipo bolsa-escola em caráter emergencial para o combate à exploração sexual infantojuvenil em todas as suas formas, tendo em vista que essa Convenção coloca prioridade máxima à erradicação do trabalho infantil, seja ela feita pela criação de normas internas, pela criação de programas de ação comunitária, governamental ou programas bolsa-escola, sendo importante agir com rapidez e eficácia, ou seja, os membros desta Convenção têm o dever de elaborar medidas em caráter emergencial”. (HOLANDA, 2010, pg. 27).
Ainda é possível apontar a existência do chamado Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 5.007, de 8 de março de 2004), cujo teor contém propostas de combate a diferentes formas de exploração sexual infantil, que leva em conta questões de índole social: “Reconhecendo as necessidades especiais das crianças particularmente vulneráveis ao recrutamento ou utilização em hostilidades contra o disposto neste Protocolo, em virtude de sua situação econômica ou social ou de sexo” (BRASIL, 2004).
Outro exemplo de convenção é o Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, principalmente mulheres e crianças (Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004)1, no qual o tráfico de adultos e menores é definido como o "[...] recrutamento, recebimento e transporte de pessoas contra a própria vontade para fins de exploração" (BRASIL, 2004).
Ademais, a Declaração de Estocolmo de 1998 define a exploração sexual infantil “como uma espécie de violência e coerção contra crianças, que pode incluir o trabalho escravo sexual e outras formas modernas de escravidão” (Estocolmo, 1998).
1.10. Os Direitos das crianças e dos adolescentes: Algumas considerações sobre o Estatuto da Criança e do Adolescentes
Após décadas de mobilizações populares, a Contituição Federal passou assegurar a efetividade dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de todos os cidadãos brasileiros independente da idade, classe social, raça, gênero ou credo: “[...] trata de assegurar, através de mecanismos de exibilidade específicos, a efetividade dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos cidadãos”. (NETO, 2019, pg. 51).
Assim sendo, a partir de uma visão essencialmente protetiva dos direitos dos menores brasileiros, o art. 227 da Constituição Federal de 1988 aponta que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (BRASIL, 1988).
A partir disso, a chamada Doutrina da Proteção Integral foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro através do artigo 227 da Constituição Federal, que declarou ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (FERREIRA & DOI, pg. 2, 2018).
Nesse sentido, os direitos das crianças e dos adolescentes são garantidos tanto pela Constituição Federal de 1988 (CF- 1988) quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990- ECA).
O ECA pormenoriza os direitos garantidos na Contituição Federal de 1988, evidenciando os instrumentos de participação democráticos e controle das políticas públicas de proteção a essa população (FARINELLI & PIERINI, pg. 64, 2016), consagrando a ideia de proteção integral da infância e juventude.
Assim, o ECA surgiu após a constituinte como uma espécie de complemento ao arcabouço contitucional e também ao proposto na Convenção dos Direitos da Criança com uma visão mais humanizada e realista sobre a infância e a juventude, produto da articulação de movimentos sociais e mudanças legislativas aos longo de décadas, já que o ECA é produto do estágio civilizatório alcançado pela sociedade, repousando em uma Constituição que prometeu ao povo brasileiro expecialmente liberdade e justiça social. Projetando nos mesmo moldes da Convenção dos Direitos da Criança, prescreveu um projeto de convivência entre adultos e crianças baseado no respeito e no desenvolvimento de potencialidades. Somente foi possível porque, à época, a paz e o progresso social eram valores agregadores de pessoas e instituições no fundar de um status infantojuvenil civilizado, em que direitos e deveres poderiam se entrelaçar de forma harmônica, difundindo a utopia do bem-estar social (PAULA, 2020, p.36).
Outrossim, de forma revolucionária o Estatuto da Criança e do Adolescente surgiu no início da década de 90 como produto de inúmeros debates promovidos, sobretudo, na década de 80, considerando a violência contra menores um problema de saúde pública, com a defesa da obrigatoriedade da comunicação dos crimes perpetrados contra menores e o combate aos aludidos abusos por parte da sociedade como um todo, tendo em vista que todos os debates acumulados na década de 1980 contribuíram para a elaboração do ECA em 1990. O Estatuto inova, ao considerar a violência contra crianças e adolescentes como problema de saúde pública, e que, como tal, deve ser enfrentado pelos diversos setores da sociedade, assim como torna obrigatória a comunicação de tais ocorrências à autoridade competente (LIMA, 2018, p.40).
1.11. O Estupro de vulnerável e a exploração comercial de menores no ordenamento jurídico brasileiro
1.11.1. O Estupro de vulnerável
Visando acabar de uma vez com discussões relativas a idade da vítima e tantas outras de caráter doutrinário e jurisprudencial, surgiu o delito de Estupro de Vulnerável, fruto da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009.
Segundo GRECO (pg. 688, 2020), a partir dessa novidade jurídica, surgiu um critério objetivo para a análise da figura típica por meio da idade, mesmo no caso de vítima prostituída.
Ocorre, tal qual aponta GRECO (pg. 689, 2012), para que se opere o crime, o agente deverá, obrigatoriamente, ter conhecimento do fato da vítima ser menor de 14 anos, pois, caso contrário, poderá ser alegado o erro de tipo que, a depender do caso, poderá levar até mesmo à atipicidade do fato.
Outrossim, é também considerada vulnerável a vítima que possui alguma enfermidade ou deficiência mental, não possuindo o necessário discernimento para a prática do ato sexual, ou aquela que, por qualquer outro motivo, não pode oferecer resistência, conforme se verifica no art. 217 do Código Penal (GRECO, pg. 689, 2012).
Os novos tipos penais e as penas mais gravosas inauguradas, devem conduzir à implantação de políticas públicas de prevenção criminal voltadas também para as vítimas do delito que, em diversas situações são expostas a extrema condição de vulnerabilidade social, sendo alvo fácil de violação de sua dignidade (NUNES, pg. 66, 2016).
Sem dúvidas, o ordenamento jurídico brasileiro, no que tange à questão penal, se tornou mais favorável aos interesses das vítimas, menos preconceituoso no que tange ao gênero femino e mais rigoroso na punição dos criminosos.
1.11.2. A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes (ESCCA) no ordenamento jurídico brasileiro
A exploração sexual é a prática criminosa de “troca por sexo” ou sexo transacional, em que a criança ou adolescente é submetido a contato sexual em troca de dinheiro, comida, objetos de interesse como telefone celular, entre outros bens de consumo (BRAZIL TALK, 2021), ou seja, trata-se da mercantilização dos corpos dos menores.
Isto é, a ESCCA é uma “doença social”, representando umas dos lados mais sombrios do Brasil, produto da miséria material e moral de toda a sociedade brasileira.
Segundo o Art. 218-B do Código Penal, o crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável consiste em submeter, induzir ou atrair à prostituição alguém menor de 18 anos ou que, por qualquer enfermidade, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone (BRASIL,1940), sendo uma das formas de trabalho infantil mais cruéis e degradantes existentes.
Em outras palavras, o tipo penal acima citado descreve o que se entende por tráfico de menores para fins de exploração sexual no contexto brasileiro, definido pelo Oganização Internacional do Trabalho como uma das piores formas de trabalho envolvendo menores.
Ocorre que para incorrer no tipo penal em análise, é necessário o conhecimento do agente sobre a idade da vítima e da sua condição de prostituta ou outra forma de exploração sexual ante a conduta criminosa de outrem, de forma que a realização do ato sexual pela vontade própria do menor de idade não caracteriza o favorecimento previsto na norma examinada (DAGUER, 2019).
É que se o agente não sabe da condição de menor da vítima não há crime, pois ocorre o que se entende por erro de tipo, tema já explorado anteriormente neste artigo no tópico que trata do chamado estupro de vulnerável.
Ainda no que tange ao tema exploração comercial, segundo o art. 149-A do Código Penal (Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940), o tráfico de pessoas (menores ou não) consiste nos atos de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso com a finalidade de exploração sexual (BRASIL, 1940).
Ademais, o art. 231 do mesmo Código define o crime de tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (adultos, crianças e adolescentes) como o ato de promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro (BRASIL, 1940).
Fora isso, a Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016, versa sobre o tráfico interno e internacional de pessoas (de variadas faixas etárias), assim como medidas de atenção às vítimas “Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas” (BRASIL, 2016).
Tabela 2 - Evolução da Legislação desde Nova Constituição
1.11.4. As piores formas de trabalho envolvendo crianças e adolescentes
O trabalho infantojuvenil sempre existiu, já que os menos favorecidos de todo gênero e faixa etária foram explorados pelas classes dominantes de forma constante ao longo dos séculos: a exploração da mão-de-obra infantil é, na verdade, um problema muito antigo, um mal de profundas raízes históricas, sempre presente e difícil de ser eliminado. (CESTARI & MELLO, 2016,p. 3).
Nesse sentido, nos termos do artigo 3º da Convenção n. 182, a expressão “as piores formas de trabalho infantil” abrange todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; b) a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia a ou atuações pornográficas; c) a utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais como definidos nos tratados internacionais pertinentes e, d) trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças (TEIXEIRA & MIRANDA, 2013).
Diante disso, o estudo do trabalho de crianças e adolescentes deve levar em conta múltiplos fatores e a relação da exploração em questão com o processo de acúmulo de capital: “[...] aponta o trabalho precoce na forma de chaga social na medida em que avança o processo de acumulação do capital. (FONSECA, 2015, p.208).
O trabalho de crianças e adolescentes nada mais é que consequência do capitalismo, que sempre promoveu a mercadorização de menores, ou seja, o trabalho infantojuvenil sempre esteve presente na história da humanidade, tornando o menor uma mercadoria na sociedade capitalista. (SILVA, 1999, p.2).
Por outro lado, muitos ideólogos capitalistas defedem a natureza de tradição cultural da exploração do trabalho de menores, onde a prática em questão é apenas um produto do sistema capitalista: “[...] Ela não é resultado da vontade das famílias dos trabalhadores, muito menos de determinada tradição cultural, como os ideólogos do sistema capitalista costumam afirmar.” (SILVA, 1999, p.3).
O trabalho de crianças e adolescentes apontado como um mal a ser combatido por diferentes legislações é, antes de tudo, contrário ao desenvolvimento natural de consciência dos menores: “[...] então, que consciência pode estar em desenvolvimento numa infância/adolescência inserida precocemente na exploração do trabalho?” (FONSECA, 2015, pg. 217)
Por esses e tantos outros motivos, a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943), produto das mobilizações de movimentos sociais ao longo decádas, estabeleceu uma idade mínima, vedando algumas modalidades laborativas envolvendo menores e a prática trabalhista em determinados locais por meio de normas individuais e coletivas do trabalho, por isso nesse documento legal foram reunidas normas de direito individual e coletivo de trabalho, de fiscalização do trabalho e de direito processual do trabalho. (CEZAR, 2008, pg. 1)
A Constituição Federal, também protetiva no que se refere ao direitos dos menores, prevê a idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art.7º, XXXIII (BRASIL, 1988), ao passo que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) veda qualquer tipo de trabalho ao menor de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos”, segundo a Consolidação das Leis do Trabalho, o Contrato de aprendizagem é um contrato ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de quatorze anos e menor de vinte quatro anos inscrito no programa de aprendizagem formação tecnico-profissional metódica, compatível com seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação (BRASIL, 1943).
Nesse mesmo sentido, a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008) versa acerca das piores formas de trabalho infantil a serem combatidas pela comunidade internacional, pelos países e pela sociedade: A Convenção n. 182 constitui instrumento complementar à Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, tratando especificamente das piores formas de trabalho infantil e da ação imediata para sua eliminação (TEIXEIRA & MIRANDA, pg. 6, 2013), sendo mais um marco para o combate do problema social em questão.
Outrossim, a Consolidação das Leis do Trabalho veda, em seu Art. 405, o trabalho contrário à “moralidade”, a fim de proteger os interesses de crianças e adolescentes, considerando prejudicial à moralidade do menor o trabalho: a) prestado de qualquer modo, em teatros de revista, cinemas, boates, cassinos, cabarés, dancings e estabelecimentos análogos; b) em emprêsas circenses, em funções de acróbata, saltimbanco, ginasta e outras semelhantes; c) de produção, composição, entrega ou venda de escritos, impressos, cartazes, desenhos, gravuras, pinturas,competente, prejudicar sua formação moral; d) consistente na venda, a varejo, de bebidas alcoólicas (BRASIL, 1943), sendo também de grande importância na limitação na vida laborativa de menores em diferentes contextos no território nacional.
Capítulo II
2. A violência sexual contra crianças e adolescentes e Gênero
Há diversos fatores que podem ser associados ao que se entende por violência sexual perpetrada contra menores de idade, especialmente relações de poder associadas e gênero, idade, classe, raça e etinicidade. Porém, o principal fator-risco apontado é o gênero, quer dizer: ‘’ser mulher’’.
Segundo dados do Ministério da Saúde (2011 e 2017), cerca de 85% do total dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes vitimizaram meninas e jovens mulheres entre 0 e 19 anos.
Nesse mesmo sentido, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (2017-2021), a partir de dados de atendimentos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, mostra que 70% das vítimas são do sexo feminino.
Os dados refletem, entre tantos outros fatores, uma cultura baseada na desigualdade de gênero, no machismo e na objetificação dos corpos de mulheres desde a infância (CHILDHOOD, 2019).
O gênero é o fator social mais significativo na violência sexual contra crianças e adolescentes. Não apenas é que as mulheres correm maior risco de serem abusadas e os homens mais propensos a cometer crimes sexuais; o gênero tem se mostrado importante de várias maneiras (JONES, 2014, 244).
Tudo isso ocorre porque a sociedade brasileira discrimina as mulheres em todos os contextos: no meio esportivo, no meio acadêmico, no meio corporativo e até no, aparente livre de preconceitos, meio artístico.
É comum ver mulheres sendo dispensadas de empregos por conta de uma gravidez, assim como profissionais do sexo feminino qualificadas ganhando menos que homens igualmente preparados.
A desigualdade de gênero está presente em todos os lugares, assim como a objetificação dos corpos femininos de mulheres e meninas como é possível ver na indústria fonográfica, no cinema, na internet, no jornal, em revistas e até na televisão em novelas, programas de TV e propagandas.
Em especial, a visão de que o Brasil é rota de sexo facil foi resultado de desastradas campanhas -sexistas- de divulgação do país no exterior, veiculadas pela Embratur nas décadas de 1970 e 1980. Tais campanhas de marketing vendiam o país como um lugar de praia, samba e mulheres, objetificando as cariocas por completo (OBSERVATÓRIO DO 3º SETOR, 2020.)
Sem dúvidas, propagandas como a citada acima e o machismo já presente no Brasil foram responsáveis pela promoção de uma maior objetificação da mulher brasileira, tendo consequências gravíssimas visíveis na mercantilização, tipicamente sexista e capitalista, de mulheres e meninas no chamado turismo sexual.
Por conseguinte, como aponta VIEIRA (2018) a violência de gênero vem acompanhada de inúmeros preconceitos e tantas outros tipos de violências, assim como o que a causa não é só o machismo, mas também o capitalismo e o patriarcado. Nesse contexto, no que se refere à objetificação das mulheres na sociedade, a mulher passa a ser uma espécie de item utilizado ao bel prazer do homem, da moda, de todos os interesses outros que não a vida feminina deveria ser (BOLSON & RITCHER, pg. 5, 2019).
2.1. Normalização da violência sexual contra meninas
A sociedade brasileira, assim como boa parte das sociedades do Ocidente, apresenta problemas no trato com a violência sexual perpetrada contra meninas, haja vista o constante reinforço a esteriótipos de gênero encontrados nas relações interpessoais, no dia a dia, na cultura e na mídia.
Na verdade, parece existir uma tendência entre as meninas vítimas de violência sexual de relativização dos abusos sofridos e até mesmo de “racionalização” do ocorrido por meio de “desculpas” para os abusos, isto é, incorporando o discurso machista do impulso sexual “tipicamente masculino”, as vítimas descrevem os homens como incapazes de controlar os próprios impulsos sexuais (Phillips; Hlavka, 2014, pg. 8).
A partir disso, questões como os modelos comportamentais de gênero são de grande importância na compreensão das dinâmicas da violência em questão e como as vítimas e até mesmo os agressores lidam com os fatos, pois os estereótipos de gênero representam crenças culturalmente definidas sobre homens e mulheres que são internalizadas através da socialização (Krause; Roth, 2010, pg. 2).
Estudos sugerem que esquemas cognitivos, incluindo crenças culturais sobre homens e mulheres, podem ser ativados e influenciar mais no comportamento durante eventos estressantes da vida (Krause; Roth, 2010, pg. 31), por isso os “padrões sociais de conduta atreladas a um determinado gênero” são tão importantes no que tange ao entendimento do abuso sexual perpetrado contra meninas e sua eventual triviliazação por parte das vítimas, dos molestadores e da coletividade.
Em outras palavras, em situações estressantes, quando crenças centrais sobre si mesmo, os outros e o mundo social são severamente desafiados, os indivíduos podem recorrer a padrões aceitos socialmente como certos, bem como estereótipos de gênero internalizados, a fim de dar sentido ao seu abuso ou ao menos justificá-lo. Por exemplo, o abuso pode ativar estereótipos de gênero internalizados no que tange a vulnerabilidade feminina, sua impotência e até mesmo sua sexualidade (Resick e Schnicke 1992; Krause; Roth, 2010, pg. 32), levando à banalização total da violência de gênero.
Há uma tendência entre as meninas vítimas de abuso sexual de banalização dos fatos ocorridos, conforme um estudo conduzido por Hlavka as vítimas declaravam não ter vontade de fazer “tempestade em copo d’água” no que se referia as suas experiências comunicando as mesmas para autoridades competentes (Hlavka, 2010, pg. 10), ou seja, a negação, advinda de preconceitos e esteriótipos comportamentais incorporados culturalmente, no que se refere a agressão de caráter sexual é tamanha que influi no registro da ocorrência dos acontecimentos
2.2. Cultura de estupro e violência contra meninas
Outra questão importante a ser abordada é a cultura de estupro presente na maioria das nações ocidentais, que nada mais é que um dos fatores que explicam a aceitação de qualquer forma de abuso sexual contra meninas.
A cultura de estupro seria um conjunto de crenças culturais gerais que apoiam a violência dos homens contra as mulheres, incluindo a ideia de que essa violência é um fato da vida, de que existe uma associação entre violência e sexualidade, que os homens são ativos enquanto as mulheres são passivas, e que os homens têm direito à relação sexual. Isso também produz os “mitos de estupro” predominantes, como o de que mulheres gostam de ser estupradas e dão crédito à ideia de que existem linhas "borradas" em torno do consentimento, que geram a descrença generalizada nas vítimas de estupro e as baixas taxas de condenação dos perpetradores (Alison Phipps; Ringrose; Renold; Jackson, 2018, pg. 1).
Nesse sentido, fica claro que uma das forças centrais que influenciam os papéis que assumimos e a maneira como vemos e julgamos a nós mesmos e outros é a nossa socialização de gênero. Na cultura ocidental, gênero muitas vezes forma uma base de um indivíduo identidade. A infância e a adolescência representam períodos em cuja identidade de gênero está constantemente sendo moldada e, por sua vez, molda as experiências de alguém (Martin; Ruble, 2009; Krause; Roth, 2010, pg. 32), por isso é possível afirmar que a cultura de estupro está diretamente associada a questões relativas aos padrões sociais preestabelecidos.
2.3. Estudos
Recordando a definição de Kelly (1987): ‘’qualquer ato físico, visual, verbal ou sexual que é experienciado por uma mulher ou garota no momento ou a posteriori como ameaça de agressão que possui efeito de machucá-la ou degradá-la e/ou tira a sua capacidade de controlar o contato íntimo’’, podemos caracterizar o fenômeno da violência sexual a partir da perspectiva feminina.
As evidências científicas no sudeste do Brasil (Bassani et al, 2009), mostram que a única subpopulação que possui por si só alto risco de sofrer abuso sexual infantil é definido pelo gênero feminino. Uma análise global da prevalência do abuso sexual entre crianças mostram que 1 entre 12 meninos já experenciaram algum abuso sexual antes dos 15 anos, enquanto entre as meninas a razão é de 1 entre 5. (Gurvinder & Dinesh, 2013) Em situações de guerra, o estupro de mulheres é utilizado oportunisticamente e também como arma de guerra para obtenção de outros objetivos (Davies & True, 2015)
Esta perspectiva carrega consigo um sentido mais profundo, de cunho social e cultural. Quer dizer: existem hábitos e comportamentos perpetrados dentro da sociedade que tornam a mulher uma vítima preferencial. É importante lembrar que ao se considerar o fator cultural, devemos considerar o fato de haver culturas diferentes com normas e valores diferentes, em que a igualdade nas relações de poder entre homens e mulheres mudam. Em culturas mais feministas, em que as relações de poder são mais igualitárias, existe a menor propensão à violência sexual de gênero; enquanto em culturas em que se presume uma superioridade de poder masculino, existe maior incidência deste tipo de crime (Gurvinder & Dinesh, 2013).
Krause & Roth (2010) apontam a evolução dos estudos sobre esta associação, a partir de estudo que levam a discussão desde um ponto de vista comportamental intrínseco dos dois gêneros. Esta associação foi explicada por diversos fatores, a começar por características esteriotipadas como a ‘’alta feminilidade’’ (afetuosidade, carinho e empatia) em oposição a características tipicamente masculinas como confiança, decisão e força. Estes estudos empreendidos por (Hegelson, 1994) mostraram que a feminilidade se associa mais às vítimas de abuso.
Aparentemente este estudo pode estar por revelar uma ‘’culpabilização da vítima’’ por suas atitudes e características inerentes, porém é revelador sobre a percepção do agressor sobre o abusado. A figura feminina, mesmo que mais esteriotipada, gera no agressor uma ação violenta, pois ele tem uma visão distorcida em relação ao gênero feminino.
Outras pesquisas mostram que o abuso sexual leva ao reforço de esteriótipos sobre o gênero feminino (vulnerabilidade, desamparo e sexualidade) nas vítimas (Krause et al, 2002), que passam a sentir-se inferiores aos homens a partir do trauma. As sobreviventes indicam conviver com esteriótipos de ‘’virgens’’ e ‘’vadias’’ na sua vida rotineira.
Em relação à parte do agressor sexual, há a indicação de que a própria a socialização e comportamentos masculinos como a culpabilização da vítimas são típicos e fomentadores de atos de violência. (Unger, Norton & Luca, 2009).
Considerações finais
A violência sexual perpetrada contra crianças e adolescentes tem raízes sociais das mais diversas, em muitos casos, sendo fruto da desigualdade de gênero e da pobreza em muitas de suas manifestações.
Diante disso, este trabalho partiu de análises de cunho sociológico e psicológico para entender o problema e suas possíveis soluções.
Nesse sentido, ficou muito claro que meninas são vítimas de violência sexual de gênero, pois a sociedade é machista, sexista e existe o que se entende por cultura de estupro.
Não é à toa que as políticas públicas e outras medidas de caráter governamental devem levar em conta tal especificidade: meninas são as maiores vítimas de violências sexuais.
Ocorre que a maior parte das políticas públicas adotadas têm se mostrado demasiadamente ineficientes em inúmeros aspectos, não apenas na observância da predominância de gênero, preocupando os estudiosos do assunto.
Sem dúvidas, o que se entende por violência sexual contra crianças e adolescentes deve ser encarado como um problema grave social, sem sensacionalismo por parte da opinião pública e com a adoção enérgica de soluções por parte das autoridades públicas.