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O direito fundamental do feto anencefálico.

Uma análise do processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54

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VIII. A ADPF NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA [17]

82. Enuncia o § 1º do art. 102 da Constituição da República: "A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei". A referida lei é a Lei n. 9.882, de 03.12.1999, que disciplina o processo e julgamento da ADPF.

83. Prescreve a Lei n. 9.882/99, no caput do art. 1º, que a ADPF será proposta perante o STF e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. No parágrafo único, inciso I, do referido art. 1º está enunciado que também caberá a ADPF quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição. E dispõe o § 1º do art. 4º que não será admitida ADPF quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

84. Nos termos do art. 2º da Lei n. 9.882/99 podem propor a ADPF os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, CF), facultando-se ao interessado sem legitimação ativa solicitar ao PGR que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento de seu ingresso em juízo.

85. À luz dessas prescrições normativas propomos uma primeira noção conceitual de ADPF: ação constitucional, subsidiária da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, provocadora da jurisdição concentrada do STF, em face de relevantes normas ou atos do Poder Público federal, estadual, distrital ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição, sujeitos à apreciação judicial, em defesa da supremacia normativa dos preceitos constitucionais fundamentais.

86. O sistema judicial brasileiro de defesa da supremacia normativa da Constituição apresenta dois modelos de controle da constitucionalidade das normas: o controle difuso e o controle concentrado.

87. No controle difuso, inspirado na experiência judicial norte-americana, todo e qualquer magistrado ou tribunal em toda e qualquer demanda pode verificar se as normas ou os atos ou condutas ou omissões estão em conformidade com os mandamentos constitucionais. O controle da constitucionalidade é difuso porque espalhado entre todos os magistrados e tribunais. [18]

88. No controle concentrado, inspirado na experiência judicial austríaca, a competência para analisar se uma norma está em conformidade com os mandamentos constitucionais é exclusiva de um órgão jurisdicional. Esse órgão jurisdicional concentra o poder de dizer se uma norma é constitucional ou inconstitucional. [19]

89. O sistema brasileiro alberga, em aparente paradoxo, esses dois modelos de controle de constitucionalidade.

90. Nos casos concretos, onde há partes interessadas, sujeitos processuais determinados ou determináveis e, principalmente, se o pedido da ação não se confunde com a causa de pedir da demanda, o controle é difuso. Ou seja, o sistema brasileiro de jurisdição constitucional é difuso na hipótese dos casos concretos nos quais o pedido da ação não se confunde com a causa de pedir.

91. Singelo exemplo: LUÍS foi aprovado, em primeiro lugar na ordem de classificação, em um concurso público para preenchimento de um cargo vago. O administrador, todavia, convoca e nomeia CARLOS, que nem participou do certame, para tomar posse, em detrimento de LUÍS. Este ajuíza uma ação perante o Judiciário pedindo para ser convocado e nomeado, tendo como causa de pedir a inconstitucionalidade do ato administrativo que desrespeitou o mandamento constitucional da exigência de concurso público (Art. 37, II). O pedido é para ser convocado e nomeado. A causa de pedir é inconstitucionalidade do ato administrativo que convocou e nomeou CARLOS, em face do disposto no texto constitucional e em detrimento de LUÍS, aprovado no concurso público.

92. Se o controle das situações concretas é difuso, o controle das situações normativas abstratas ou em tese é concentrado. Compete ao STF verificar a imediata e direta compatibilidade das normas gerais e abstratas com a Constituição Federal. Se a aferição der em relação às Constituições Estaduais a competência será dos respectivos Tribunais de Justiça estaduais. A defesa direta da Constituição Federal é do STF. A defesa direta da Constituição Estadual é do respectivo Tribunal de Justiça. No controle abstrato a jurisdição constitucional pertence concentradamente ao STF (Constituição Federal) ou aos Tribunais de Justiça dos Estados (Constituições Estaduais). O julgamento discutirá se, em tese e abstratamente, a lei fere a Constituição. A situação não é concreta porquanto não se discute "o direito" de partes ou sujeitos determinados ou determináveis, mas se a norma jurídica está conforme a Constituição. [20]

93. Singelo exemplo: A União edita uma Lei penal tornando imputáveis criminalmente os menores de 18 anos. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB ajuíza uma ação perante o STF pedindo a declaração de inconstitucionalidade dessa lei em face do dispositivo constitucional que diz que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis (art. 228, CF). Tenha-se que nessa situação o pedido equivale à causa de pedir. A causa de pedir é a inconstitucionalidade da lei e o pedido é que seja declarada essa inconstitucionalidade.

94. Portanto, um critério inicial para verificar se a hipótese é de controle difuso ou de controle concentrado encontra-se na identificação do pedido e da causa de pedir, em princípio. Se o pedido e a causa de pedir se identificarem, o controle é concentrado. Se não houver essa identidade, a hipótese é de controle difuso. O mandado de injunção, a ação popular, a ação civil pública e outras ações coletivas suscitam algumas dificuldades. Neste espaço não tocaremos nelas.

95. Nessa linha, o sistema brasileiro de controle concentrado da jurisdição constitucional do STF reconhece cinco ações que provocam direta e imediatamente a jurisdição concentrada do STF:

95.1. A ação direta de inconstitucionalidade genérica - ADI (arts. 102, I, "a" e 103);

95.2. A ação declaratória de constitucionalidade – ADC (arts. 102, I, "a" e 103);

95.3. A ação direta de inconstitucionalidade por omissão – ADI omissão (art. 103, § 2º);

95.4. A ação direta de inconstitucionalidade interventiva – ADI interventiva (art. 36, III); e

95.5. A argüição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF (art. 102, § 1º).

96. Cada uma delas tem um objeto específico e um procedimento próprio.

97. A ADI genérica tem como objeto as leis ou atos normativos federais ou estaduais, genéricos e abstratos, editados posteriormente à Constituição da República, e que colidam direta e imediatamente com os dispositivos constitucionais supostamente violados.

98. A ADC tem como objeto as leis ou atos normativos federais, genéricos e abstratos, que diretamente repousam seu fundamento imediato de validade na Constituição e que estejam sendo objeto de controvérsias judiciais que causam insegurança jurídica no sistema.

99. A ADI por omissão tem como objeto a omissão inconstitucional de leis ou atos normativos federais ou estaduais, genéricos e abstratos, que inviabiliza a plena concretização da Constituição.

100. A ADI interventiva, de legitimação exclusiva do PGR, tem como objeto a defesa dos princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII) e a execução forçada de lei federal.

101. O objeto da ADPF é a norma ou ato do Poder Público federal, estadual, distrital ou municipal, não necessariamente genérico ou abstrato, que viole preceito constitucional fundamental, ainda que editado antes da Constituição de 1988.

102. A possibilidade de submissão de normas municipais e de normas anteriores à Constituição de 1988 à jurisdição concentrada do STF é uma das principais características da ADPF, posto que nem a ADI nem a ADC têm esse condão, como destacou o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, um dos principais mentores da Lei da ADPF e um de seus principais corifeus. [21]

103. Segundo Gilmar Ferreira Mendes [22] as mudanças ocorridas no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro a partir de 1988 alteraram radicalmente a relação que havia entre os controles concentrado e difuso, com o fortalecimento do controle concentrado perante o STF em detrimento do controle difuso.

104. Para Pollyanna Kelly Maciel Medeiros Martins Alves [23] o instituto da ADPF é apanágio da justiça contemporânea, que é a justiça das massas, dos processos coletivos, das ações com repercussão relevante e geral e que necessitam de respostas imediatas e definitivas.

105. Com efeito, a ADPF 54 se encarta plenamente nessa nova perspectiva da jurisdição constitucional brasileira. Nas sessões de julgamento nas quais o STF entendeu admissível essa ADPF para analisar a presente questão jurídico-constitucional (a exclusão da ilicitude do aborto - ou parto antecipado - de feto anencefálico) esse aspecto inovador da ADPF e a necessidade de uma resposta definitiva ficaram evidenciados nas manifestações dos Ministros da Corte.

106. Para uma solução dessa dúvida constitucional, dentre os institutos processuais existentes, a ADPF era o mais indicado. Isso porque incabíveis as demais ações diretas (ADI ou ADC) perante o STF, visto que o conjunto normativo impugnado era anterior à Constituição de 1988. Também os demais instrumentos processuais não produziriam os efeitos jurídicos desejados. Assim, acertadamente, o STF julgou cabível a ADPF para enfrentar um tema tão problemático e merecedor de profunda análise e amplo debate pela comunidade dos interessados: a sociedade civil como um todo.

107. Por essa razão, o STF determinou que além da CNTS (Argüente), do PGR e do AGU, partícipes oficiais da "controvérsia constitucional", fosse também aberta à participação de outras instituições e entidades interessadas no desfecho dessa ação, na linha do preconizado por Peter Häberle [24] de uma interpretação aberta e plural do texto constitucional.

108. Isso porque todos somos interessados, todos devemos ouvir e falar. A civilização democrática se comunica antes de decidir as normas que devem pautar as condutas e os comportamentos de seus membros e instituições.


IX. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS ADEQUADOS [25]

109. A noção de paradigma científico foi forjada por Thomas Kuhn [26] como mecanismo de compreensão das transformações científicas e seus fenômenos, visto que os paradigmas são conceituados como as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.

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110. Para Jürgen Habermas [27] um "paradigma de Direito delineia um modelo de sociedade contemporânea para explicar como direitos constitucionais e princípios devem ser concebidos e implementados para que cumpram naquele dado contexto as funções a eles normativamente atribuídas".

111. Nessa senda aberta, tive a oportunidade de externar a seguinte noção de paradigma constitucional de Estado: "o modo de ver e perspectivar a Constituição e o Direito de cada Estado e Sociedade segundo os valores e verdades aceitos de cada época, procurando, na medida do possível, enxergar através dos prismas contemporâneos, sem esquecer-se de que nos situamos em um espaço físico-cultural-histórico distinto ao olharmos o passado, vermos o presente – muitas vezes ainda turvo – e procurarmos vislumbrar o futuro" [28].

112. Escorado no magistério de Menelick de Carvalho Netto [29], divisam-se os seguintes paradigmas: o pré-moderno e o da modernidade. Os da modernidade se subdividem nesses outros paradigmas: liberal, social e democrático. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy [30] leciona em favor do pós-modernismo jurídico, uma resposta cética à crença na modernidade e em seu discurso de racionalidade iluminista.

113. A pré-modernidade, ensina Menelick de Carvalho Netto, se apresentava como o paradigma da indiferenciação normativa entre o direito, a moral, a tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam.

114. Nesse referido paradigma, a depender do seu local de nascimento ou da origem familiar, em uma sociedade cristalizada e dividida em "castas", o ser humano não é vista como indivíduo dotado de direitos e deveres recíprocos (pessoa), mas como um membro de uma coletividade sem valor em si, mas tão-somente válido enquanto útil para essa coletividade (coisa).

115. Na pré-modernidade, a idéia de direitos fundamentais como um núcleo de proteção do ser humano, enquanto indivíduo (pessoa), é inexistente. Em algumas sociedades, a depender das crenças religiosas o ser humano gozava de respeito e dignidade por ser semelhante à divindade e por ser a sua vida pertencente à divindade. Daí que os atentados contra o ser humano poderiam ser considerados como violações aos mandamentos divinos. As principais garantias das pessoas encontravam-se em normas de natureza religiosa. A autoridade divina e os seus sacerdotes se sobrepunham às autoridades políticas.

116. À luz do paradigma da pré-modernidade, a questão do aborto, assim como quase todas as demais questões, era tratada como assunto divino ou da coletividade. A vontade particular do indivíduo era irrelevante. Se as prescrições religiosas da coletividade condenassem o aborto e/ou o abandono de recém-nascidos que não fossem sadios e úteis para a coletividade, o aborto e o abandono eram combatidos. Mas se acaso houvesse um sentimento de utilidade coletivo, o aborto não era proibido nem tido como pecaminoso, e os recém-nascidos com deformidades ou que não fossem sadios eram abandonados ou sacrificados, porquanto inúteis para aquele grupo coletivo.

117. Na sociedade pré-moderna, o ser humano tinha de cumprir o seu destino de ser útil à coletividade. E o seu destino estava traçado no momento de seu nascimento, a depender do local ou do núcleo familiar. "Ao nascer sabia-se como se ia viver e como se iria morrer". O homem, e sobretudo a mulher, não eram pessoas, mas coisas, objetos à disposição de outros homens ou à disposição da divindade. Essa coisificação do homem explicava a aceitação da escravidão humana como algo normal naquela sociedade pré-moderna. O homem não era senhor de si mesmo, ainda que fosse senhor de outrem.

118. A história da humanidade organizada em núcleos coletivos deu-se no contexto da pré-modernidade social. Após um longo caminho, o paradigma da pré-modernidade foi superado pelo da modernidade. Modernidade compreendida como diferenciação racional entre a religião, a política, a moral e o direito. E também como apresentação do ser humano como indivíduo, ser indiviso dotado de razão e de direitos e deveres (pessoa). A data simbólica do nascimento do indivíduo como pessoa é o 14.07.1789: Revolução Francesa.

119. A Revolução Francesa foi um marco na história da sociedade ocidental. O ideal iluminista da racionalidade de todo o gênero humano como pessoa indivisa, senhor de sua própria vida, sem os grilhões da Igreja (religião), da Sociedade (moral) e do Estado (direito) e como agente livre e senhor de sua própria vida era uma novidade retumbante. Em uma sociedade arcaica, cristalizada, delimitada por castas sociais, o lema da "liberdade, igualdade e fraternidade" como novo tripé sobre o qual se assentarão as novas estruturas sociais foi avassalador, revolucionário. A promessa de que todos nascem livres e iguais em direitos e oportunidades conquistou muitos adeptos e empolgava setores economicamente abastados, elites intelectualizadas e as massas populares, no campo e nas cidades. Também despertava a reação dos setores "prejudicados" por essa novidade revolucionária.

120. Se o homem pré-moderno cumpria o seu destino, traçado no momento de seu nascimento, o homem moderno faz o seu destino, independentemente de seu nascimento, do local de nascimento ou de sua ascendência familiar. Como símbolos desses dois modelos de homem são Alexandre Magno e Napoleão Bonaparte. Aquele como homem da pré-modernidade, e este como homem da modernidade.

121. Alexandre Magno cumpriu o seu destino de grandiosidade e glória, iniciado com as conquistas de seu avô e consolidadas com o domínio estabelecido por seu pai. A ele cabia seguir a trilha aberta e assenhorear-se de toda a Grécia e de todo o Mundo conhecido. Ser grande era o seu destino. Ele o cumpriu.

122. Napoleão Bonaparte fez o seu destino, a despeito do nascimento humilde em uma província sem importância alguma para a França. Por sua capacidade de adaptação e sobrevivência, e dotado de grande argúcia política e militar, ascendeu ao posto máximo da política francesa e se apresentava como o principal agente revolucionário daquele período histórico. Ser grande não era o seu destino, mas ele fez outro para si. Marcou a história também, assim como Alexandre Magno.

123. A primeira fase da modernidade ocidental foi a do paradigma liberal. A liberdade era a pedra angular sobre a qual se assentava a nova percepção da sociedade e do Estado. Em nome da liberdade e da autonomia do indivíduo, ser dotado de razão e vontade, senhor de sua vida e destino, a função do Estado e do Direito era reduzir ao máximo a intrusão na vida particular. O indivíduo era livre para autonomamente fazer as suas escolhas, para estabelecer os seus pactos contratuais. O Estado deveria se abster ao máximo de intrometer-se nas relações sociais individuais. O indivíduo é cidadão na medida em que vota e é votado e adquire direito ou obrigações contratuais.

124. À luz desse paradigma, a questão do aborto diz respeito à autonomia do indivíduo, à livre disposição de seu corpo e ao respeito à sua vontade. Nessa perspectiva liberal, a mulher teria todo o direito de abortar, pois ela é senhora absoluta de seu corpo. Ademais, o feto ainda não seria um ser plenamente racional, enquanto que a mulher, ser dotada de razão, vontade e sentimento, deveria ter respeitada a sua escolha de abortar ou não, uma vez que cabe a ela fazer o que melhor lhe aprouver com o seu corpo.

125. O paradigma liberal restou superado pelo paradigma social. Em nome da liberdade do indivíduo, de sua autonomia da vontade e da consciência racional de cada um e de uma igualdade formal, o liberalismo provocou a prevalência dos mais fortes em relação aos mais fracos. No plano formal, tanto os mais abastados quanto os menos afortunados tinham igual liberdade, mas na prática, esse sistema engendrou uma sociedade socialmente injusta, porquanto imperava gritantes desigualdades.

126. O paradigma liberal cede espaço para o paradigma social. Em nome da igualdade material, as liberdades formais sofrem restrição e o Estado, até então absenteísta (um "guarda-de-polícia" ou gendarme), que só deveria intervir para garantir o cumprimento dos contratos e manter a paz pública e a boa ordem social, é obrigado a intrometer-se na vida social e particular das pessoas.

127. No quadro do paradigma social o Estado, por meio de um Direito intervencionista, avoca tarefas que eram próprias dos indivíduos e da própria sociedade. O Estado se envolve nas relações de trabalho, nas relações econômicas, passa a intervir na propriedade, aumenta o quadro de serviços públicos como saúde, educação, cultura, intervém, inclusive, nas relações familiares. No paradigma social a liberdade do indivíduo e a autonomia de sua vontade sofrem redução em nome do interesse estatal, confundido como o interesse da própria sociedade ou público.

128. No paradigma social, a questão do aborto deixa de ser um tema privativo do indivíduo e se torna de interesse do Estado. O indivíduo, assim como a propriedade e os bens, deve ter uma função social, deve ser útil ao Estado. Nessa linha, a depender da sociedade, não cabia a mulher livremente dispor de seu corpo ou do feto que albergava em seu ventre, pois tanto ela – a mulher – quanto o feto poderiam ser úteis para o Estado. Obviamente que se descobrissem a "inutilidade" do feto, o Estado poderia autorizar a prática do aborto. O interesse do Estado – e não o da mulher ou o do feto – deve prevalecer. O Estado era tudo, o indivíduo era reduzido a nada, ou simples instrumento de vontade e grandeza estatal. O indivíduo, em vez de cidadão, é cliente dos serviços e favores estatais.

129. Essa perspectiva de gigantismo do Estado e achatamento do indivíduo teve como modelos exemplares o nazifascismo e o social-comunismo, e como símbolos retumbantes o holocausto judeu promovido durante a Segunda Grande Guerra e os "Gulags" soviéticos. As explosões das duas bombas nucleares nas cidades japonesas também servem como símbolos do desprezo às vidas inocentes.

130. A superação do paradigma social pelo paradigma democrático ensejou um novo modelo de atuação do Estado, da Sociedade e da Pessoa. O espaço público é território livre para a participação do indivíduo como cidadão consciente de seus direitos e deveres, co-responsável por si e pela comunidade. O Estado e o seu direito são instrumentos racionais que permitem a livre participação dos interessados nas formulações e execuções das políticas públicas, com o respeito à diversidade e à pluralidade.

131. No quadro democrático o indivíduo é cidadão com mútuas responsabilidades e recíprocos direitos. Reconhece-se que o Estado, sozinho, não é suficiente para tornar viável a boa convivência de todos os seus membros, e que a Sociedade deve ser co-responsável nas tarefas mais importantes. No trinômio revolucionário francês, o paradigma democrático é o da fraternidade, síntese e superação dos outros dois paradigmas, sem, contudo, aniquilá-los. No paradigma democrático, todos os indivíduos são seres dotados de dignidade e merecedores de respeito e consideração.

132. No paradigma democrático a questão do aborto se torna mais complexa. Pois de um lado estão os legítimos interesses da mulher em ter respeitada a sua livre autonomia sobre o seu corpo, e de outro lado há o legítimo interesse de parcela da sociedade em proteger todos os seus membros, sejam nascidos ou que estejam por nascer, independentemente da sua utilidade ou viabilidade.

133. Parcela dos Estados democráticos, com a população livre e participativa, tem adotado uma postura "conciliatória" permitindo as práticas abortivas até um determinado período de gravidez (até a 14ª semana de gestação). Em regra até a formação das conexões cerebrais ou desenvolvimento do cérebro. Entendem que ausente o cérebro, o feto é desprovido de sentimentos e emoções, e ainda não possui o principal diferencial da espécie humana: a racionalidade.

134. À luz desse quadro, uma vez descoberta uma doença que implique na morte imediata do feto após o parto, a tendência é tornar lícita e socialmente aceitável a prática abortiva, pois não seria justo com a mulher submetê-la a uma gravidez que não resultaria em vida.

135. Sucede, todavia, que a depender da idéia de vida a partir da concepção independentemente de sua viabilidade, os legítimos interesses da gestante podem ceder aos legítimos interesses daqueles que defendem a sacralidade da vida (entendida como transcendente e indisponível), e que o feto, por ser vivo e humano, não é coisa pertencente à mulher, porquanto todas as pessoas só pertencem a si mesmas, de modo que em favor dos interesses do feto, sejam as gestantes constrangidas a não abortarem e permitirem o curso natural da gravidez, como responsabilidade e conseqüência de seu ato de engravidar.

136. A gravidez resulta de um ato vontade da mulher, salvante nos casos de estupro. Na sociedade moderna e democrática, os indivíduos devem conhecer os riscos de sua conduta e arcar com as conseqüências de seus atos. O ato sexual livremente consentido é um ato de risco que pode resultar em uma gravidez. O feto, por ser humano, não pode ser objeto da livre vontade da gestante.

137. Assim como os filhos não pertencem aos pais, as mulheres aos homens, os empregados aos patrões, o feto não pertence à mãe, pois não é coisa, não pode ser apropriado. Só coisas são apropriáveis. O ser humano nunca deve ser coisificado, nem apropriado, nem pertencer a ninguém. O ser humano nunca deve ser objeto, mas sempre sujeito.

138. Por essa razão, o risco de uma gravidez deve ser assumido pela gestante no momento em que resolve livre e consentidamente manter relações sexuais ou que deseja engravidar. Isso é um risco.

139. Nada obstante, a despeito de a sociedade civilizada ser um espaço de riscos, ainda há os perigos, como nas selvas e na barbárie. A mulher pode ser vítima de um estupro ou pode ser constrangida a casar ou mesmo a engravidar. Nessa situação não há como obrigar a mulher a assumir a responsabilidade de um ato que não resultou de sua livre vontade, de sua atividade de risco. Assim como se a gravidez ensejar perigo de morte para a gestante, ela também pode abortar para salvar a própria vida.

140. Percebe-se, portanto, que em uma sociedade democrática, aberta, livre e pluralista, o tema do aborto – e em particular do feto anencefálico - é problemático, não encontra uma resposta fácil e imediata e diz respeito não somente à mulher gestante, mas a todos os membros interessados da sociedade, motivados não apenas por crenças religiosas, mas pela fé e esperança na própria humanidade.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O direito fundamental do feto anencefálico.: Uma análise do processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1555, 4 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10488. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Palestra proferida no evento "Sexta Jurídica", organizado pela Seção Judiciária da Justiça Federal no Estado do Piauí, em Teresina, 27/09/2007.

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