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Considerações sobre o art. 236 do Código Eleitoral

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07/10/2007 às 00:00
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5. Visão crítica dos posicionamentos externados nos itens 4.1, 4.2, 4.3 e 4.4.

Em que pese respeitáveis os quatro posicionamentos acima mencionados, crê-se não ser possível fazer interpretações tão restritivas do artigo 236 do CE, ou, ainda, considerá-lo revogado ou simplesmente inconstitucional. Salvo melhor juízo, a garantia do direito ao voto e o direito à segurança não só podem como devem coexistir no nosso ordenamento jurídico. As propostas hermenêuticas vistas nos itens 4.1, 4.2, 4.3 e 4.4 esvaziam de maneira muito significativa a garantia do direito ao voto editada pelo legislador positivo.

RUI STOCCO e LEANDRO DE OLIVEIRA STOCCO não compartilham do entendimento que o art. 236 do CE estaria revogado. Sustentam esses autores que: "...o só fato do advento da Constituição Federal e do disposto no seu art. 5º, inciso LXI não tem o condão de impedir que a lei específica (Cód. Eleitoral) estabeleça regras de exceção e de validade temporária para o período eleitoral, voltadas à proteção e regularidade do pleito e para assegurar o direito constitucional do exercício da cidadania através da manifestação da vontade, expressada através do voto. Aliás, este Código Eleitoral foi posto a lume quando vigorava uma outra Constituição, que já previa a possibilidade de prisão com as garantias que especificava e nas hipóteses previstas em lei infraconstitucional, cuja sede principal é o Código de Processo Penal" (p. 751).

A época de eleições (independentemente dos cargos em disputa), pelas suas características específicas e grandes transformações, que dizem respeito à própria organização do Estado, é um período de exceção. E nesse período de exceção deve ter primazia a legislação eleitoral.

São vários os motivos que ainda justificam, embora com alguns temperamentos, a garantia prevista no artigo 236 do Código Eleitoral. Mencionar-se-á alguns.

1) especialmente nas eleições municipais, é assaz comum os candidatos aos cargos eletivos majoritários ou proporcionais se elegerem por escassa margem de votos, que algumas vezes não chega a uma dezena. Candidatos nas eleições proporcionais perdem eleições ou tornam-se suplentes por um ou dois votos. Nas últimas eleições municipais (2004), candidatos foram eleitos com apenas dois ou três votos de vantagem sobre seus adversários [19]. Em outros casos, candidatos à vereança obtiveram o mesmo número de votos, tendo a ocupação do cargo eletivo de ser decidida por critérios de desempate [20]. Nessas situações, vê-se bem que a prisão de um ou dois eleitores do candidato que se sagrou vencedor, feita no período do art. 236 do CE, poderia inverter completamente o resultado das eleições, fraudando-se, assim, a vontade popular.

2) A prisão de candidatos e fiscais e Delegados de partidos ou coligações, especialmente após o término da votação, poderia ensejar fraudes nas eleições por falta de fiscalização na apuração de votos.

Antes do advento das urnas eletrônicas, a apuração dos votos era feita manualmente, com anotações em planilhas, e sujeita a vários erros, de forma que uma fiscalização intensa dos partidos era primordial para que não houvesse distorção da vontade popular externada nas urnas.

Claro que hoje, em razão da utilização das urnas eletrônicas, as apurações dos votos não se estendem por vários dias, como antigamente, e as chances de fraudes e erros diminuíram bastante, mas nem por isso a fiscalização deve ser negligenciada, pois é fator de legitimação do pleito.

FÁVILA RIBEIRO faz as seguintes observações ao comentar o § 1º do art. 236 do Código Eleitoral (os grifos não constam do original):

"Enquanto para os mesários e fiscais de partidos não houve cronometração de tempo, em relação aos candidatos recua essa garantia aos 15 dias que precedem as eleições. Para os mesários, o lapso de tempo pode ser mais dilatado se for cometido à própria mesa receptora o encargo de proceder também à contagem de votos, nos termos dos arts. 188-189 do Código Eleitoral. Se houver essa distensão funcional, persistirão em atividade os mesários, ficando ainda amparados pela garantia até o completo encerramento dos trabalhos.

"No tocante aos fiscais, para os que devam atuar exclusivamente nas atividades pertinentes à votação, logo após a sua realização ficam desprovidos da garantia eleitoral. Para os que estejam no desempenho de atividade de fiscalização na fase de apuração é compreensível que se dilate a garantia até que se concluam os trabalhos de apuração da circunscrição em que estejam participando. Quanto aos candidatos retrocede a proteção legal a 15 dias antecedentes ao pleito, e deve manter-se eficaz enquanto estiver pendente a apuração para que tenham ensejo de assistir e participar de todos os trabalhos em resguardo de seus interesses e da própria mecânica representativa. (2000, pp. 417-418).

3) A prisão do eleitor é vedada desde cinco dias antes do pleito para que ele não possa ser preso enquanto se desloca para a sua seção de votação. Em 1932, quanto a garantia da vedação à prisão no período eleitoral foi criada, o Brasil era um país em que a maioria da população vivia em zonas rurais, distante, portanto, dos locais de votação. Não raro, o deslocamente até uma sessão eleitoral poderia levar alguns dias. Os meios de transporte também eram precários, de forma que o eleitor se deslocava com carroças ou até mesmo a pé, fazendo dois ou três dias de caminhada.

Mesmo nos dias atuais, o eleitor pode levar dias para deslocar-se até sua seção eleitoral. Isso ocorre especialmente quando o eleitor mora em um Estado da Federação e vota em outro. É comum eleitores sequer transferirem seu título para a cidade em que moram, justamente para no dia da eleição poderem visitar familiares e parentes na cidade a qual seu título eleitoral ficou vinculado.

4) Outro motivo para vedar a prisão no período eleitoral foi evitar o abuso da força policial para intimidar o eleitor. Era comum, especialmente nas pequenas comunas, uma espécie de subordinação da polícia aos poderosos locais. Policiais eram facilmente cooptados pelos ‘coronéis’ locais e atuavam a seu serviço, intimando eleitores com ameaças de prisão para que votassem ou deixassem de votar em determinados candidatos. Muitas vezes a prisão era feita em caráter de represália, imediatamente após a eleição, motivo também para que a garantia eleitoral fosse estendida para até 48 horas após o encerramento da votação.

Não é incomum membros das corporações policiais, especialmente nas pequenas cidades, terem afinidades com políticos locais, fato que às vezes enseja intimidação do eleitor identificado com as cores partidárias opostas, por medo de alguma ‘armação’ ou vindita.

Oportuno lembrar que até o advento do Código Eleitoral de 1932 não havia, na prática, o voto secreto, de forma que era fácil os chefes locais saberem em quem determinados eleitores votaram. [21]

É de bom alvitre ressaltar que os membros do Poder Judiciário também eram muito sujeitos às influências dos chefes políticos locais, nem sempre exercendo os juízes suas funções com a isenção necessária.

Não caia no olvido, por exemplo, que mais recentemente na nossa história o Ato Institucional n.º 5, de 1968, conferiu ao Chefe do Poder Executivo Federal poderes para demitir, remover, aposentar ou colocar em disponibilidade os magistrados, sendo suspensas as garantias constitucionais da vitaliciedade e inamovibilidade. Sem a garantia da inamovibilidade, se um magistrado proferir uma decisão que vá contra os interesses de um Chefe do Executivo, por manobras políticas poderia ser transferido para uma Comarca distante.

5) A vedação à prisão antes e depois da eleição também foi positivada para evitar acirramento de ânimos, especialmente nas pequenas comunas. Sabe-se que eleição é paixão, e as pessoas muitas vezes perdem o senso de medida em época eleitoral. Por exemplo, é comum membros de uma mesma família se agredirem – após discussões inflamadas -, motivados por divergências políticas. A prisão de eleitor no período eleitoral pode dar ensejo a vinganças contra partidários de agremiação oposta, principalmente quando se acredita que eles de alguma forma contribuíram para a prisão. Conturba-se, assim, o ambiente eleitoral, o que faz com que muitos eleitores sequer compareçam às urnas, tudo para preservar a integridade física e, às vezes, a própria vida....

Em todas as eleições, o TSE tem de autorizar o envio de tropas do Exército para garantir a tranqüilidade do pleito em alguns lugares do país.

O envio de tropas é comum nas eleições. Em 1994, 12 estados receberam as forças armadas. Em 1996, o exército esteve presente em 10 unidades da Federação. Em 1998, 09 estados pediram e foram atendidos pelo Tribunal Superior Eleitoral, que determinou o envio das forças federais.

Em 2002, justificando o envio de tropas federais para as eleições do Distrito Federal, o então Vice-Presidente do TSE, Sepúlveda Pertence afirmou: ‘‘A possível briga entre as duas torcidas, a situação delicada, as notícias e os boatos recentes foram importantes na hora de decidir [22].’’

Ainda, forças policiais são reforçadas em muitas cidades face ao periclitar da segurança pública por razões de disputas eleitorais.

Por parte de muitos candidatos denúncias inverídicas, visando proveito eleitoral, são feitas, tentando gerar uma situação que, manipulando o sistema de justiça, possa ensejar a prisão de candidatos da facção adversária.

6) prisões provisórias indevidamente decretadas no período eleitoral poderiam influenciar o resultado das eleições. Pense-se no impacto que poderia ter perante o eleitorado a prisão de um candidato a cargo eletivo às vésperas da eleição. Poderia significar uma derrota certa e redução significativa de votos para os demais candidatos de seu partido ou coligação, mediante maliciosa e demagógica exploração do fato pelo partido adversário. O mesmo se diga de prisão de influente cabo eleitoral.

7) a vedação à prisão no período eleitoral também contribuiu para que o resultado das eleições não seja posto em dúvida. É importante fator de legitimação do pleito. Uma eleição tumultuada, com um grande número de prisões no período, algumas de impacto devido à notoriedade do preso, podem fazer a população acreditar em manipulação e resultados viciados.

Em outras palavras, de nada adiantaria termos um processo eleitoral com lisura se a população não acreditasse que foi assim de fato.

Considerando tais motivos, o entendimento dos doutrinadores referidos nos itens 4.1, 4.2, 4.3 e 4.4 reduz de forma drástica a garantia eleitoral da vedação à prisão, tão necessária ao efetivo exercício da cidadania.

Como ensina GILMAR MENDES, ‘as decisões fundamentais do legislador, as suas valorações e os objetivos por ele almejados estabelecem também um limite para a interpretação conforme a Constituição. Não se deve conferir a uma lei com sentido inequívoco significação contrária, assim como não se devem falsear os objetivos pretendidos pelo legislador" (2005, p. 290).

Cabe, então, uma indagação. Haverá situações em que a prisões preventivas e temporárias poderão ser decretadas no prazo do artigo 236 do Código Eleitoral? As garantias eleitorais do direito ao voto prevalecerão sempre quando em confronto com outros direitos fundamentais? Haverá forma de compatibilizá-los?

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6. Colisão de direitos fundamentais

É pacífico na doutrina e na jurisprudência que os direitos fundamentais não são intocáveis e absolutos. Como o homem vive em sociedade, estando em contato permanente com seu semelhante - que também goza de direitos e garantias -, natural que surjam situações de conflitos e choques entre esses direitos.

Tem-se colisão ou conflito de direitos sempre que a Constituição proteja, ao mesmo tempo, dois valores ou bens que estejam em contradição em um caso concreto.

Conforme CANOTILHO, uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.

No tema que se trata, evidencia-se uma colisão entre direitos da coletividade (segurança pública, manutenção da ordem pública, efetividade do processo penal) e o direito do particular ao voto.

Em situações como essas, sempre é importante relembrar a seguinte lição do Supremo Tribunal Federal: "A lei deve ser interpretada não somente à vista dos legítimos interesses do réu, mas dos altos interesses da sociedade, baseados na tranqüilidade e segurança social [23]".

Respeitados os entendimentos em sentido contrário, em determinadas situações é de se permitir a decretação de prisões cautelares (temporárias e provisórias) nos prazos do art. 236 do Código Eleitoral, sacrificando-se parcialmente o direito individual.

Um exemplo: a prisão temporária pode ser decretada quando imprescindível para as investigações policiais e quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade. NUCCI refere: "esses dois elementos permitem a correta qualificação do suspeito, impedindo que outra pessoa seja processada ou investigada em seu lugar, evitando-se, por isso, o indesejado erro judiciário. Aquele que não tem residência (morada habitual) em lugar determinado ou não consegue fornecer dados suficientes para o esclarecimento da sua identidade (individualização como pessoa) proporciona insegurança na investigação policial" (p. 659-660).

Um outro caso em que a segregação cautelar se faz necessária, em detrimento do direito de voto, é quando o acusado está ameaçando ou aliciando as testemunhas de um processo criminal. Se atingir o seu intento, a persecução penal (de interesse de toda a sociedade) restará prejudicada e a impunidade será alcançada.

A possibilidade iminente de fuga de um acusado de crime também é motivo suficiente para que, em certos casos, se possa relativizar a regra de proibição à prisão no prazo do art. 236 do CE. O mesmo se diga de crimes que abalam a ordem pública, seja pela grande repercussão do fato ou pela extrema periculosidade do agente.

Veja-se a lição de MIRABETE: "Fundamenta em primeiro lugar a decretação da prisão preventiva a garantia da ordem pública, evitando-se com a medida que o delinqüente pratique novos crimes contra a vítima ou qualquer outra pessoa, quer porque seja acentuadamente propenso à prática delituosa, quer porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida. Mas o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão" (fl. 690).

Indaga-se: um atentado contra vida de policial civil ou militar em serviço não causa abalo à ordem pública? Os vários atentados cometidos por membros do PCC (organização criminosa Primeiro Comando da Capital) contra as forças policiais, em sendo realizados dentro do período eleitoral, não justificariam uma prisão cautelar, presentes os pressupostos para sua decretação? Um maníaco sexual que violentasse e matasse indefesas crianças dentro do período eleitoral, mesmo sendo confesso, não poderia ser preso provisoriamente durante esse período em razão de não ter havido a situação de flagrância?

Por evidente, os fatos acima narrados ensejariam o sacrifício do direito individual, até mesmo porque é preciso preservar a credibilidade da justiça perante os jurisdicionados. A população – com inteira razão – não entende que em casos como esses a prisão não possa ser decretada. A aceitação acrítica do dispositivo legal permitiria, por exemplo, que acusado não sentenciado, mas foragido, pudesse aparecer livremente na cidade, em franco escárnio ao sistema de justiça, minando sua credibilidade e corroendo a confiança do povo nas instituições.

Em uma sociedade complexa como a nossa, é cada vez maior a tensão entre os direitos fundamentais do indivíduo e os de interesse da sociedade como um todo: direito à segurança, efetividade do processo judicial, etc. Nestes casos, a Constituição implicitamente autoriza que o legislador e o Poder Judiciário façam restrições aos direitos fundamentais, utilizando-se do princípio da proporcionalidade.

Pelo referido princípio, quando dois princípios entram em rota de colisão porque a aplicação de um provoca redução da esfera de aplicação de outro, cabe-se determinar se essa redução é proporcional, à vista da importância do princípio atingido. Em certos casos, induvidosamente, sobrelevar-se-á o direito fundamental à segurança.

6.1. Do direito fundamental à segurança

Toda pessoa que se encontre no território do país tem direito à segurança, cabendo ao poder público promover este direito, garantindo à população o direito de ir e vir, de se estabelecer com tranqüilidade, de ter sua intimidade preservada, sem que sua integridade física, moral ou psicológica seja colocada em risco.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, no seu artigo III, prescreve que "todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal"

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o famoso ‘Pacto de São José da Costa Rica’), no seu artigo 7º assegura que ‘toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais’.

A Constituição Brasileira garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade – art. 5º, ‘caput’.

É absolutamente necessário que os operadores do Direito passem a enxergar que não somente o indivíduo tem direitos, mas que a coletividade pacata e ordeira precisa de ordem e segurança para levar em paz sua vida. O contrato social precisa ser protegido. O Estado tem sua razão maior de ser na proteção do todo, e não somente da da parte. Invoca-se ensinamento de SAMPAIO DÓRIA (grifos não constantes do original):

"Em verdade, o Estado, que o homem organiza, se destina ao bem do homem, e não à sua desgraça. Ninguém constrói, por exemplo, uma estrada de ferro para ser esmagado por um desastre. Nem mesmo para servi-la. Mas para se servir dela. Da mesma forma, não é para ser anulado que o homem organiza o Estado. As sociedades se formam em função dos indivíduos, e para eles. E, nas sociedades, a organização política, ou Estado, surge, mas é para garantir, igualmente, a cada um a liberdade, isto é, fazer, ou deixar de fazer, o que generalizado, não destrua, nem prejudique a vida social. Nunca para suprimir aos homens a dignidade da existência" (1962, p. 244).

Nas condições históricas em que vivemos, a garantia do direito ao voto deve ser relativizada em prol do direito à segurança, de que é titular a coletividade inteira e não somente alguns indivíduos. O direito ao voto pode ser compatibilizado com o direito à segurança, bastando que o Estado crie meios para que o preso provisório possa ser conduzido a local de votação no dia do pleito eleitoral.

Não podemos olvidar que o Brasil tem hoje um Poder Judiciário independente, qualificado e responsável, que não decretará prisões provisórias de forma leviana ou arbitrária. E se isso acontecer, sempre haverá outras instâncias judiciais para reparar o erro.

O que não pode acontecer é ingenuamente fechar-se os olhos para a onda de violência que assola o país (fomentada pela frouxidão das leis penais) e endeusar-se os que cometem delitos graves, a ponto de lhes blindar contra prisões preventivas e temporárias nos prazos do artigo 236 do Código Eleitoral. É preciosa a lição de SCALQUETTE:

"É incontestável que a proteção dos direitos fundamentais é meio para assegurar a liberdade e dignidades humanas, mas, como vimos, por vezes, esses direitos têm que ser limitados face as situações em que o bem comum exige sacrifícios individuais para garantia da ordem pública, pois acima dos interesses individuais está o interesse da coletividade e garantir o respeito aos direitos e liberdades não pode ser entendido como pretexto para que a desordem e a instabilidade pública se instaurem (2004, p. 173) (grifo não constante do original).

Assim, é de se advogar a possibilidade de prisão provisória em situações-limite, tais como nos casos de roubo, crimes hediondos e crimes dolosos contra a vida, como se passará a ver.

6.2 Crimes hediondos, roubo e crimes dolosos contra a vida

Em linhas gerais, pode-se dizer que crimes hediondos são aqueles que se mostram repugnantes, sórdidos, asquerosos, horrendos, seja pela sua gravidade objetiva ou por seus meios de execução.

Em razão disso, a própria Constituição Federal estabeleceu regime mais rigoroso no trato com esses crimes, considerando-os inafiançáveis e vedando a graça e a anistia.

O legislador infraconstitucional não formulou um conceito de crime hediondo, preferindo aplicar o ‘rótulo’ hediondo a alguns delitos descritos no Código Penal e em leis especiais. Por expressa disposição constitucional (art. 5º, LXIII), equiparou-se a hediondos os crimes de tortura, terrorismo e o tráfico ilícito de entorpecentes e de drogas afins.

A teor do art. 1º da Lei n.º 8.072/90, são considerados hediondos os seguintes crimes capitulados no Código Penal:

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V); II – latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); III – extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); IV – extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º); V – estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); VII – epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º); VII-A (Vetado); VII-B – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º, 1º-A e § 1º-B, com a redação dada pela Lei 9.677 de 2 de julho de 1998).

No parágrafo único do art. 1º da Lei 8.072/90 é prescrito que também se considera hediondo o crime de genocídio, consumado ou tentado.

A Lei n.º 8.072/90, afinada com o rigorismo exigido pela Constituição, estabeleceu outras restrições, tais como a proibição de concessão de indulto e liberdade provisória; maior tempo de cumprimento de pena (2/3) para concessão de livramento condicional; aumento dos prazos de prisão temporária para os crimes hediondos, etc.

Como magistralmente exposto por VOLNEI CORRÊA LEITE DE MORAES JÚNIOR:

‘...a instituição da categoria dos crimes hediondos, claramente não traduzindo um direito, certamente é uma garantia dos direitos fundamentais – à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’ (art. 5º, caput).

"Conseqüentemente, os inimigos da Lei dos Crimes Hediondos são inimigos dos direitos fundamentais, que aquela garantia resguarda, são inimigos do garantismo constitucional, são inimigos da Constituição-Cidadã. Significa dizer: são hipócritas, porque vivem a proclamar juras de amor ao garantismo, quando na verdade desejam ver abolida uma das mais eficazes garantias dos Direitos Humanos" (2003, p. VIII).

Já o delito de roubo, seja na forma simples ou qualificada, é um dos mais levam pânico à população. O cidadão de bem é ‘atormentado’ pelos assaltantes no recesso de seu lar, nos seus locais de trabalho, lazer e estudo. Em conseqüência, o cidadão restringe ao máximo as suas atividades sociais, deixando de freqüentar determinados lugares ou só os freqüentado em horários que considera menos arriscados.

A lição ainda é de VOLNEY CORRÊA JÚNIOR: " não há nada mais dramaticamente objetivo, mais pungentemente concreto, mais tragicamente real que a teia de pavor no qual os cidadãos pacatos se vêem envolvidos pelos ladrões violentos’ (p. 24).

Já os crimes dolosos contra a vida representam as interdições máximas da convivência em sociedade, pois lesam o mais importante dos direitos fundamentais; com efeito, estar vivo é a condição para o exercício de qualquer direito.

Propugna-se aqui, então, que além das exceções previstas no artigo 236 do CE, possa haver a prisão cautelar de eleitor nos casos de cometimento de crimes hediondos, crimes dolosos contra a vida e roubo.

Esses delitos, como já referido acima, agridem a sociedade de uma forma muito peculiar e profunda. Com efeito, para os crimes hediondos, previstos em lei específica, a própria Constituição exige tratamento mais rigoroso; nos crimes dolosos contra a vida é atingido o bem maior do ser humano; e nos casos de roubo, porque representa um grande ataque à integridade psíquica da vítima, além da ausência de resposta pronta do poder público causar um sentimento de descrença do povo nas suas instituições do sistema de justiça.

Resta evidente que pela sua distinta natureza, os crimes hediondos, dolosos contra a vida e o roubo merecem tratamento diferenciado do dos demais crimes. E tanto é assim que esses delitos normalmente têm penas elevadas.

A prisão provisória por esses delitos impedirá que seus autores fiquem livres durante o prazo do art. 236 do CE, evitando-se a evasão dos criminosos, a intimidação de testemunhas e a prática de novos crimes, protegendo-se, assim, a sociedade.

Não se pode ter uma visão unilateral do direito processual, acreditando que essa província do direito é apenas um conjunto de normas para tutelar o acusado diante do poder do Estado, esquecendo-se que ele também deve tutelar a segurança dos cidadãos de bem.

Nesse ponto, cabe a indagação: por que meios, no prazo previsto no artigo 236 do CE, se estenderá a prisão provisória aos eleitores que cometeram crimes hediondos, crimes dolosos contra a vida e roubo? A resposta pode estar na utilização das chamadas sentenças ou decisões aditivas.

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Sobre o autor
Cláudio da Silva Leiria

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEIRIA, Cláudio Silva. Considerações sobre o art. 236 do Código Eleitoral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1558, 7 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10498. Acesso em: 28 mar. 2024.

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