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Considerações sobre o art. 236 do Código Eleitoral

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07/10/2007 às 00:00
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7. As sentenças aditivas

Em profícuo artigo, CELSO RIBEIRO BASTOS [24] teceu as seguintes considerações sobre as mais recentes técnicas de interpretação constitucional (grifos não constantes do original):

"As interpretações constitucionais tradicionais, cumpre dizer, limitam-se a levantar todas as possíveis interpretações que a norma sub examine comporta e a confrontá-las com a Constituição, através da utilização dos métodos histórico, científico, literal, sistemático e teleológico. Na interpretação constitucional tradicional não é permitido ao intérprete fazer qualquer alargamento ou restrição no sentido da norma de modo a deixá-la compatível com a Carta Maior. No segundo pós-guerra o que se assiste é uma inclinação da jurisprudência no sentido de maximizar as formas de interpretação que permitam um alargamento ou restrição do sentido da norma de modo a torná-la constitucional. Procura-se buscar até mesmo naquelas normas que à primeira vista só parecem comportar interpretações inconstitucionais - através da ingerência da Corte Suprema alargando ou restringido o seu sentido - uma interpretação que a coadune com a Carta Magna. Vale dizer que nas tradicionais formas de interpretação constitucional apenas se levantavam todas as possíveis interpretações e confrontavam-se com a Constituição. O intuito das modernas formas de interpretação constitucional é o de buscar no limiar da constitucionalidade da norma algumas interpretações que possam ser aproveitadas desde que fixadas algumas condições.

E é nesse quadro que se inserem as sentenças ou decisões aditivas.

Sentenças ou decisões aditivas são decisões judiciais que, em questionamento sobre a constitucionalidade de ato normativo, acolhem a impugnação, sem invalidá-lo. Em vez de operar-se a expulsão da norma do ordenamento jurídico, ela fica mantida com o acréscimo ao seu conteúdo de uma regulação que faltava para efetivar sua concordância com a Constituição.

Conforme a lição de EDÍLSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR (p. 121): ‘Nessas decisões, a estrutura literal da norma combatida se mantém inalterada, mas o órgão de jurisdição constitucional, criativamente, acrescenta àquela componente normativo, vital para que seja preservada sua conciliação com a Lei Fundamental. A sua ocorrência coincide com as hipóteses em que o tribunal reconhece a existência de omissão parcial, justamente porque permitem o acréscimo do necessário para tornar a norma impugnada concordante com os mandamentos constitucionais"(grifo não constante do original).

Assim, a inconstitucionalidade não estaria no conteúdo do que a regra jurídica prescreve, mas, ao contrário, no fato de a norma não prescrever aquilo que a Constituição exige.

Segundo JORGE MIRANDA, ‘Nas decisões aditivas (também ditas modificativas ou manipulativas) a inconstitucionalidade detectada não reside tanto naquilo que ela não preceitua; ou, em outras palavras, a inconstitucionalidade acha-se na norma na medida em que não contém tudo aquilo que deveria conter para responder aos imperativos da Constituição. E, então, o órgão de fiscalização acrescenta (e, acrescentando modifica) esse elemento que falta’ (2002, p. 514).

Dito em outras palavras: há possibilidade de sentenças aditivas quando uma norma apresenta carga normativa inferior à que constitucionalmente deveria possuir. Há uma autêntica inconstitucionalidade por insuficiência protetiva. Os órgãos jurisdicionais, nesse caso, reputam inconstitucional a norma na parte em que não prevê determinada regulamentação. A sentença aditiva introduz no ordenamento o conteúdo normativo faltante.

No caso do art. 236 do CE, a ele deveriam ser ‘adicionadas’ as hipóteses de prisões preventivas por roubos, crimes hediondos e crimes dolosos contra a vida, de forma a fazer sua concordância com o mandamento constitucional do direito à segurança.

No âmbito penal, tivemos um exemplo de sentença aditiva por parte do Superior Tribunal de Justiça quando da interpretação do artigo 2º da Lei n.º 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais na esfera da justiça federal.

O artigo 2º da Lei n.º 10.259/01 estabelecia a competência da justiça federal para processar e julgar os feitos relativos às infrações de menor potencial ofensivo. Essas infrações assim restaram definidas no parágrafo único desse artigo: "Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa."

No entanto, na época o artigo 61 da Lei n.º 9.099/95 circunscreveu o conceito de infrações de menor potencial ofensivo àqueles delitos cuja pena máxima não fosse superior a um ano.

Essa incongruência resultou em tratamento discriminatório, pois, por exemplo, um desacato [25] cometido contra policial federal seria passível de oferta de transação penal ao seu autor, o mesmo não ocorrendo quando praticado contra policial civil ou militar dos Estados federados.

Para corrigir a disparidade, o Superior Tribunal de Justiça, fincado no princípio da isonomia, externou o entendimento de que a novel definição de infrações de menor potencial ofensivo, prevista na Lei n.º 10.259/01, derrogou aquela contida no parágrafo único do artigo 61 da Lei n.º 9.099/95. E note-se, por extremamente relevante, que o parágrafo único do art. 2º da Lei n.º 10.259/01, prescrevia que a nova definição de crimes de menor potencial ofensivo só era aplicável para os efeitos da própria Lei n.º 10.259/2001.

Concluindo: o STJ, por aplicação do princípio da isonomia, estendeu o conceito de menor potencial ofensivo da Lei 10.259/01 à Lei 9.099/95, desconsiderando a regra explícita de exclusão existente no parágrafo único do art. 2º do primeiro Diploma Legal citado. Em outras palavras, usou da técnica de sentença aditiva.

O legislador ordinário não tem liberdade absoluta, não podendo violar preceitos constitucionais e a principiologia do Estado Democrático de Direito.

Em síntese: o artigo 236 do Código Eleitoral somente pode ser ‘salvo’ de uma declaração de inconstitucionalidade com o uso da técnica de sentença aditiva. Para tanto, deve-se: a) agregar-se às exceções à prisão referidas no citado artigo as hipóteses de prisão cautelar por cometimento de crimes contra a vida, roubo e crimes hediondos; b) estender-se aos candidatos a possibilidade de prisão em virtude de sentença condenatória transitada em julgado.

Quanto ao segundo ponto, evidentemente, não há qualquer motivo para deixar de efetuar-se a prisão de candidatos em caso de a sentença condenatória ter transitado em julgado. A esse respeito, colha-se a abalizada lição de ÉDSON DE REZENDE CASTRO, que se vale de argumentos irrespondíveis: "...na literalidade da lei, o candidato não poderá ser preso em razão de decreto de prisão preventiva, ou temporária, ou mesmo por força de sentença condenatória criminal transitada em julgado, pois que a regra é o impedimento à prisão e a exceção é o estado de flagrância tão-somente. Não é possível levar o dispositivo a tal conseqüência. É evidente que aquele que tem contra si sentença penal condenatória transitada em julgado não só poderá como deverá ser preso, inclusive naqueles 15 dias que antecedem a eleição. Argumenta-se que a prisão do candidato, com toda a repercussão negativa que a medida alcança, prejudica seu desempenho nas urnas, podendo levá-lo a perder a disputa. E é verdade. Entretanto, tratando-se de prisão por sentença condenatória transitada em julgado, não há argumento que possa superar a necessidade de executar-se imediatamente o julgado criminal, até porque acima dos interesses do candidato está a pretensão executória estatal. Ademais, com a prisão do candidato, os eleitores recebem em relação a ele mais uma informação importante, qual seja, a existência de condenação criminal definitiva, que deve ser levada em consideração no momento da escolha. De resto, é bom lembrar que a providência (prisão) não trará qualquer prejuízo concreto para a candidatura, porque o candidato estará inelegível no dia das eleições, pois suspensos os seus direitos políticos (art. 15, III, da CF). De qualquer forma, então, ainda que fosse eleito, teria o seu diploma cassado, em sede de recurso contra a expedição de diploma, exatamente em razão da inelegibilidade superveniente ao registro" (p. 311-312).

Não são apenas os tribunais que podem se valer da técnica de sentenças aditivas, podendo fazê-lo qualquer Órgão do Poder Judiciário, pois exercem jurisdição constitucional.

A prisão provisória no período eleitoral para os que cometem crimes dolosos contra a vida, crimes hediondos e roubos também prestaria homenagem ao princípio da isonomia. Com efeito, se cabível prisão em casos de flagrante e sentença condenatória sem trânsito em julgado para indivíduos que praticaram crimes de menor gravidade, com mais razão ainda deverá se dar a segregação provisória nos crimes de maior gravidade, só que na forma de prisões temporárias ou preventivas.

Qualquer valor constitucional pode ser priorizado em uma sentença aditiva, inclusive – e especialmente - o direito à segurança.

7.1 Rebatendo as críticas às decisões ou sentenças aditivas

De plano já se nota que a principal crítica que os doutrinadores fazem à utilização das decisões ou sentenças aditivas é que estas se constituiriam em uma inadmissível usurpação da função legislativa por parte dos Órgãos do Poder Judiciário.

Entretanto, é de se ressalvar que nas sentenças aditivas os órgãos judicantes não criam livremente a norma jurídica, à semelhança do que faz o legislador, mas apenas ‘descobrem’, especificam, aquela já existente implicitamente no ordenamento jurídico ou passível de extração dos comandos constitucionais, a fim de preencher um ‘vazio’ constitucional.

Apropriado, nesse passo, menção às lições de EDÍLSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR quando trata do tema (grifos não constantes do original):

"...não há que se equiparar tal atividade à legislação. O complemento introduzido pelas lições em exame, além de efeito indireto de declaração de inconstitucionalidade, não deriva de pura imaginação da Corte Constitucional, mas de integração analógica resultante de outras normas ou princípios constitucionais, cuja descoberta advém do engenho daquela.

"Perfilha o juiz constitucional, apenas e tão-só, solução constitucionalmente obrigatória..."

"Noutro passo, viceja raciocínio, com prestígio doutrinário (cf. PUGIOTTO, 1992, p. 3674-3679), segundo o qual o objeto principal da sentença aditiva apenas ilusoriamente seria uma omissão legislativa parcial. Diversamente, constitui uma norma vivente a patrocinar a exclusão não consentida constitucionalmente.

(...)

"Cappeletti (1984, p. 622-633), com base em cinco sólidas razões, demonstra a necessária legitimidade que usufrui, na atualidade, a jurisdição constitucional, acompanhada da capacidade criadora de seus integrantes. Isso porque: a) se acha dissipada a ilusão ocidental relativa à capacidade dos ramos políticos (Executivo e Legislativo) em materializar o consentimento dos governados; b) não se pode negar o esforço dos tribunais em modelar suas decisões, não com arrimo nas idiossincrasias e predileções subjetivas de seus membros, mas com o escopo de permanecerem fiéis ao sentido de justiça e de eqüidade da comunidade; (...) e) considerando-se que uma democracia não poderá subsistir numa conjuntura em que os direitos e liberdades dos cidadãos careçam de proteção eficaz, apresenta-se como essencial daquela que o controle judicial dos ramos políticos, porquanto a idéia democrática não se resume a simples maiorias, significando, também, participação, liberdade e tolerância.

"Esses argumentos, cuja dissecação se dispensa, por não se comportar nos lindes deste trabalho, espancam qualquer dúvida quanto a ser legítimo ao juiz constitucional, tanto no sistema difuso quanto no concentrado, assumir, no exame de eventuais contrastes entre a Constituição e os atos estatais, uma postura ativa, dinâmica e criadora, objetivando, assim, garantir um adequado controle do poder diante do arbítrio" (op. cit., p. 125).

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Retomando o ponto: nas sentenças aditivas, não se tem a elaboração de uma norma jurídica, mas somente o complemento da norma existente, a partir de solução já constante no ordenamento jurídico, cuja descoberta se deu pelo trabalho do hermeneuta. Aqui, não há confundir atividade de criação jurídica com atividade legislativa.

Destaca RUI MEDEIROS [26] que:

"Efectivamente, embora parte da doutrina admita que as decisões modificativas são proferidas no exercício de um poder discricionário do Tribunal Constitucional e se contente em pedir aos juízes constitucionais que usem a sua liberdade de escolha com parcimônia, numerosos autores esforçam-se por sublinhar que não está em causa o exercício de uma função substancialmente criativa ex nihil, verificando-se tão-somente a extração de um quid iuris já presente — de modo cogente e vinculativo para o próprio legislador — no ordenamento. Nesta perspectiva, o órgão de controlo, ao modificar a lei, não actua como se fosse legislador, já que << não possui aquele grau de liberdade de opção para definir o escopo legal que é atributo do legislador>>. <<O quid iuris adiectum, ainda que não explicitado formalmente na disposição ou no texto (verba legis), está já presente, e in modo obbligante, no próprio sistema>>.

O jurista FRANCISCO CAMPOS já há muito assinalara:

"O poder de interpretar a Constituição envolve, em muitos casos, o poder de formulá-la. A Constituição está em elaboração permanente nos tribunais incumbidos de aplicá-la; é o que demonstra a jurisprudência do nosso Supremo Tribunal Federal, e particularmente, a da Suprema Corte Americana. Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constituição, funciona, igualmente, o poder constituinte. [27]"

Enfocando o assunto sob um outro ângulo, não se pode deixar de perceber que o Poder Judiciário atua como uma espécie de ‘Delegado’ do Poder Constituinte originário para fazer a defesa da Constituição.

O Constituinte de 1988 depositou muita confiança no Poder Judiciário, fortalecido na nova ordem constitucional. Assim, um certo ativismo judicial, mais do que desejável, é indispensável para a efetivação dos direitos, postergada pela inércia legislativa.

É dever do magistrado, ante a omissão legislativa, valer-se da Constituição para dar efetividade ao direito em risco de perecimento ou de drástica redução de efetividade.

Oportuna menção à lição de SÉRGIO ALVES GOMES (2004, p. 59-60) (grifos não constantes do original): "...aplicar o Direito, em um Estado de Direito Democrático, significa aplicar antes de tudo a Constituição. Diante desta, todos os poderes constituídos e demais leis devem se curvar. E para aplicá-la deverá o juiz interpretá-la, segundo os ensinamentos, princípios, da hermenêutica constitucional, entendida como especialidade da hermenêutica jurídica. Ao adotar como meta a aplicação dos princípios e regras constitucionais e dos princípios da hermenêutica jurídica constitucional, o magistrado muito se distancia daquela postura de falsa "neutralidade" tão ao gosto da escola de exegese, para se tornar um autêntico concretizador dos valores que são, ao mesmo tempo, os fundamentos e objetivos do Estado de Direito Democrático. Sob a égide dos princípios que orientam este, o Juiz torna-se um importante sujeito ativo na aplicação e elaboração do Direito, ou seja, um efetivo participante da construção de uma sociedade autenticamente democrática. É óbvio que tal atitude não é simpática aos inimigos da democracia. A estes, nada melhor que juízes autômatos, dóceis ou indiferentes aos caprichos e desmandos deles. Felizmente, a consciência democrática vem produzindo cada vez mais, dentro e fora da magistratura, uma mentalidade renovadora do papel do juiz na sociedade e dos relevantes escopos desempenhados no correto exercício do poder que este exerce".

Em resumo: o juiz, ao ‘criar’ (rectius: descobrir) uma lei com base na Constituição para suprir uma lacuna deixada pelo legislador, não interfere na independência do Poder Legislativo.

Uma Constituição possui cláusulas gerais, abertas, e conceitos de valores tais como igualdade, dignidade, segurança, etc., o que inevitavelmente deixa ao intérprete uma vasta gama de deliberações possíveis.

Como se pode razoavelmente concluir, um dos objetivos buscados pela norma veiculada no artigo 236 do Código Eleitoral foi evitar que os órgãos judiciais decretassem prisões cautelares resultantes de elementos precários ou infundados, motivadas por perseguição política, e que pudessem resultar em sério gravame eleitoral.

Nos dias atuais, o Poder Judiciário exerce suas funções dentro um quadro de absoluta normalidade constitucional, ao contrário de décadas atrás, quando sofria considerável influência daqueles que exerciam o poder econômico e político.

Em um determinado momento histórico, preferiu o legislador, no conflito entre o direito à segurança pública e o direito ao voto, privilegiar o último.

No entanto, houve sensível modificação das condições históricas, o que não pode deixar de influir na interpretação dos textos legais.

O Brasil de hoje não é mais aquela sociedade agrária e atrasada socialmente da década de 30, momento em que surgiu pela prisão vez no ordenamento jurídico a proibição de prisão de eleitores durante o período eleitoral.

De outro vértice, o quadro da violência é absolutamente diferente daquele em que a proibição das prisões cautelares no período eleitoral foi gestado. A violência explode no país. Todo dia os brasileiros são ‘bombardeados’ pelos meios de comunicação social com notícias de crimes contra a vida cometidos de forma bárbara, estupros, roubos praticados por quadrilhas, tráfico de drogas, latrocínios, etc. Assim, a interpretação tradicional do art. 236 do CE, além de beneficiar os autores dos delitos mencionados, mina de forma irremediável a credibilidade do sistema de justiça, que fica impotente para dar uma resposta à sociedade no período eleitoral.

A jurisprudência tem como uma de suas missões ‘atualizar’ o texto legal defasado pelo tempo, garantindo-lhe ‘sobrevida’ e aplicação até que alterações legislativas se processem.

E combata-se, desde logo, a afirmação de que ao estender-se as hipóteses permissivas de prisão durante o prazo do art. 236 do CE estar-se-ia violando o princípio da legalidade ou fazendo-se analogia in malam partem. Inexiste analogia in malam partem contra ou em relação à Constituição.

Uma constatação óbvia: o Direito não pode ser isolado do ambiente em que vigora. E não se pode olvidar, também, que o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil dá o sentido pelo qual a lei deve ser interpretada: de acordo com os fins sociais a que ela se dirige e com as exigências do bem comum.

Como ensina de forma lapidar MARIA HELENA DINIZ (1997, pp. 163-4), "Na falta de definição legal do termo ‘fim social’ o intérprete aplicador em cada caso sub judice deverá averiguar se a norma a aplicar atende à finalidade social, que é variável no tempo e no espaço, aplicando o critério teleológico na interpretação da lei, sem desprezar os demais processos interpretativos...O fim social é o objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos que constituirão a razão de sua composição; é, portanto, o bem social, que pode abranger o útil, a necessidade social e o equilíbrio de interesses etc...Conseqüentemente, fácil será perceber que comando legal não deverá ser interpretado fora do meio social presente; imprescindível será adaptá-lo às necessidades sociais existentes no momento de sua aplicação. Essa diversa apreciação e projeção no meio social, em razão da ação do tempo, não está a adulterar a lei, que continua a mesma" (grifos não constantes do original).

Não se perca de vista também que, se de um lado o Estado deve proteger o cidadão contra os excessos/arbítrios do direito penal e do processo penal (garantismo no sentido negativo, que pode ser representado pela aplicação do princípio da proporcionalidade enquanto proibição de excesso - Übermassverbot), esse mesmo Estado não deve pecar por eventual proteção deficiente (garantismo no sentido positivo, representado pelo princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente – Untermassverbot).

Situação deveras perigosa ao interesse social é a aceitação literal e acrítica do comando normativo albergado pelo artigo 236 do CE por parte da comunidade jurídica. Repete-se à exaustão a proibição de prisão do eleitor sem se pensar criticamente sobre a irrazoabilidade e a inconstitucionalidade por omissão da norma.

É trágico ver-se operadores do direito defendendo a proibição da prisão provisória de eleitor para todo e qualquer crime sem saber exatamente o porquê e mencionando jurisprudência para abonar a tese, sem fazerem qualquer reflexão crítica. Lembre-se aqui a lição do Ministro Humberto Gomes de Barros, que no REsp. 23.498/SP, julgado em 25/11/1992, observou: "A jurisprudência não é uma rocha cristalizada, imóvel e alheia aos acontecimentos. Ela é filha da vida, sua função é manter o ordenamento jurídico vivo e sintonizado com a realidade".

Nesse quadro, alvissareira é a tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Lei do Senado 290/2006, de autoria da Senadora Serys Slhessarenko (PT-SC), que visa a alteração do art. 236 do CE para permitir no período a prisão provisória de autores de crimes hediondos e de crimes dolosos contra a vida. Como bem referiu a Senadora na exposição de motivos do referido projeto de lei, ‘a violência tem aumentado consideravelmente, de maneira que a manutenção do dispositivo, na forma em que vigente, beneficiará autores de crimes brutais, como assassinos e estupradores, como freqüentemente têm noticiado os meios de comunicação".

Concluindo: se os operadores do Direito quiserem ver um avanço de sua jurisdição constitucional para a proteção dos direitos fundamentais da coletividade, não devem olhar a utilização de sentenças aditivas com a velha mentalidade de que o Poder Judiciário só pode atuar como o legislador negativo.

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Sobre o autor
Cláudio da Silva Leiria

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEIRIA, Cláudio Silva. Considerações sobre o art. 236 do Código Eleitoral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1558, 7 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10498. Acesso em: 29 mar. 2024.

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