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Da posse em nome do nascituro

08/10/2007 às 00:00
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Seção XII

Da Posse em Nome do Nascituro

Art. 877. A mulher que, para garantia dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez, requererá ao juiz que, ouvido o órgão do Ministério Público, mande examiná-la por um médico de sua nomeação.

§ 1º O requerimento será instruído com a certidão de óbito da pessoa, de quem o nascituro é sucessor.

§ 2º Será dispensado o exame se os herdeiros do falecido aceitarem a declaração da requerente.

§ 3º Em caso algum a falta do exame prejudicará os direitos do nascituro.

Art. 878. Apresentado o laudo que reconheça a gravidez, o juiz, por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro.

Parágrafo único. Se à requerente não couber o exercício do pátrio poder, o juiz nomeará curador ao nascituro.


1.Breves apontamentos de direito material

Para a adequada compreensão do instituto sob exame, afigura-se indispensável adentrar em vários aspectos de direito material, até porque os artigos 877 e 878 do CPC instrumentalizam o exercício das garantias estampadas no artigo 2° do Código Civil, que dispõe, in verbis:

"A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

Verifica-se de plano que a norma relaciona o surgimento da personalidade civil com dois marcos temporais de grande relevância: a concepção e o nascimento com vida.

Com efeito, definir o momento em que tem início a personalidade jurídica de um ser vivo não é tarefa simples.

No direito comparado há grande diversidade quanto ao seu termo inicial: algumas legislações aludem ao nascimento (verbi gratia: Código Civil alemão, art. 1°; Código Civil português, art. 66; e o Código Civil italiano, art. 1°). Outros adotam a concepção (início da vida intra-uterina) como termo inicial da personalidade, a exemplo do que dispõe o Código Civil argentino, em seu art. 70. Corrente diversa adota solução eclética: se a criança nasce com vida, a sua capacidade remonta à concepção (v.g.: Código Civil francês). Outros sistemas apegam-se à viabilidade da vida: o Código Civil espanhol fixa um prazo de vinte e quatro horas para que o recém nascido adquira personalidade (Cf. Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil – Parte Geral, 35ª ed., p. 59).

No direito pátrio há ao menos três fortes correntes sobre o início da personalidade: a natalista, a da personalidade condicional (que é adotada pelo Código Civil) e a concepcionista. Para a primeira a personalidade tem início a partir do nascimento com vida; a segunda sustenta que a personalidade se forma com a concepção, condicionando-a ao nascimento com vida (também denominada concepcionista imprópria); a terceira defende que a personalidade se inicia com a concepção (Cf. Silmara J. A. Chinelato e Almeida, Tutela Civil do Nascituro, p. 145).

Independentemente da corrente adotada, é certo que "há para o feto uma expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos" (Washington de Barros Monteiro, op. cit., p. 61).

A festejada civilista Maria Helena Diniz sustenta que o nascituro possui "personalidade jurídica formal" no que atina aos direitos personalíssimos e passa a ter "personalidade jurídica material", alcançando os direitos patrimoniais e obrigacionais que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida (Curso de Direito Civil Brasileiro, 1° vol., 21ª ed., p. 185).


2.Notícia histórica

Não é de hoje que se tutelam os interesses dos nascituros: ao tempo dos romanos, Paulo já afirmava que nasciturus pro iam nato habetur quando de eius commodo agitur, ou seja, "o nascituro se tem por nascido, quando se trata se seu interesse" (Cf. Washington de Barros Monteiro, op. cit., p. 59).

Pontes de Miranda lembra que as Ordenações Filipinas (Livro III, Título 18, §7°, alínea 2) dispunham sobre a posse que pertence à mulher prenhe, "por razão da criança que tem no ventre", assim como as Ordenações Afonsinas (Livro III, Título 36, §7°) (Comentários ao Código de Processo Civil, tomo 9, ano 1959, p. 224).


3.Conceitos

Assim, temos que nascituro é o termo técnico-jurídico de origem latina (nasciturus) que designa "aquele que há de nascer" (Cf. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, 18ª ed., p. 549).

Nas palavras do mestre Humberto Theodoro Júnior, "nascituro é o fruto da concepção humana que se acha vivendo no ventre materno, vivendo, ainda, em subordinação umbilical" (Processo Cautelar, 23ª ed., p. 379).

Já a palavra posse, que tem origem etimológica no vocábulo latino possessio, revela "o poder material sobre a coisa. A circunstância de ter em mão ou em poder" (De Plácido e Silva, op. cit., p. 620).


4.Natureza jurídica da ação

A quase unanimidade da doutrina inclina-se em afirmar que a posse em nome do nascituro não possui natureza cautelar.

Dizemos quase unanimidade porque logramos localizar na doutrina nacional apenas dois processualistas de escol que tenham enxergado no instituto natureza cautelar, são eles: Pontes de Miranda e Ovídio Baptista.

Pontes de Miranda, segundo Silmara Chinelato, "aceita a natureza cautelar da posse em nome do nascituro, que se refere apenas a interesses patrimoniais" (Tutela Civil do Nascituro, p. 277).

Ovídio Baptista chegou a afirmar que "as medidas de proteção tomadas em defesa dos interesses do nascituro, correspondem a pretensões cautelares, pois asseguram-se direitos do que vai nascer, mas só o nascimento posterior dará legitimidade aos atos de conservação e proteção cautelar" (As ações Cautelares e o Novo Processo Civil, p. 229).

Todavia, reviu seu posicionamento na obra "Do Processo Cautelar", asseverando que "não é próprio atribuir-lhe, como antes fizéramos, a natureza de pretensão cautelar" (Página 489).

Logo, não estamos convictos de que de Pontes de Miranda permaneceria com o mesmo entendimento, acaso estivesse vivo.

O mestre Humberto Theodoro Júnior, alicerçado em José Maria Rosa Tesheiner afirma que "se a posse cessa com o nascimento, a incerteza é quanto ao nascimento com vida, e não quanto ao conteúdo de outra sentença. A tutela é preventiva e provisória, mas não há ação principal a ser proposta, porque não há litis-regulação. Tal como se vê do texto legal, a ação é limitada à segurança dos direitos. Por meio dela separa-se o patrimônio que possa caber ao nascituro, o qual será entregue ao titular do pátrio poder, ou do tutor" (Processo Cautelar, p. 380).

E arremata com o seguinte raciocínio:

"Não pressupondo o periculum in mora, nem tendendo a assegurar o equilíbrio das partes numa situação de fato sobre que, necessariamente, haja de incidir o provimento jurisdicional visado por outro processo, não há como falar em ação cautelar" (Idem, p. 381).

Luiz Orione Neto engrossa o coro dos partidários deste entendimento, salientando que o "fundamento (causa petendi) da posse em nome do nascituro é o ‘estado de gravidez’ (art. 877), não a existência de situação perigosa" (Processo Cautelar, p. 413).

Para Antonio Cláudio da Costa Machado a posse em nome do nascituro não só dispensa o periculum in mora, como também o fumus boni iuris, "porque esse procedimento não é acessório de nenhum outro" (Código de Processo Civil Interpretado, p. 1306).

Mas qual a natureza jurídica da ação?

Cuida-se de mero procedimento de jurisdição voluntária, "pois exibe como finalidade essencial permitir a habilitação do nascituro no inventário do de cujus de quem é herdeiro legal ou testamentário, ou legatário, e a investidura nos direitos daí decorrentes" (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Comentários ao Código de Processo Civil, v. VIII, t. II, p. 375/376 apud Luiz Orione Neto, op. cit., p. 414).


5.Legitimação

A legitimidade ativa é atribuída à mulher que tem o nascituro no ventre.

Reza o art. 877, caput, o seguinte:

"A mulher que, para garantia dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez (...)".

Embora a lei utilize a expressão "mulher", cuja amplitude abarca as mulheres casadas, solteiras, conviventes, viúvas, concubinas, et cetera, também se atribui legitimidade ao pai do nascituro (em decorrência do poder familiar) e ao curador, na hipótese de mulher interdita ou destituída do poder familiar (CC, Art. 1.779: "Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. Parágrafo único. Se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro").

Na hipótese de mulher incapaz que não tenha curador, será legitimado a propor a ação o Ministério Público (Neste sentido: Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 381; Luiz Orione Neto, op. cit., p. 415).

Terão legitimidade passiva, conforme o caso concreto, os demais herdeiros que disputam a herança, o doador quando houver doação em favor de prole eventual (CC, Art. 542: "A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal") ou o testamenteiro na hipótese de legado em favor do nascituro [CC, Art. 1.799: "Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; (...)"].

Por fim, a intervenção do Ministério Público é obrigatória em decorrência do que dispõe do artigo 877, e, ainda que não houvesse previsão expressa, em razão do evidente interesse de incapaz, que faz incidir a regra do art. 82, I, do CPC.


6.Procedimento

Após a exposição fática a petição inicial deverá conter pedido de exame médico, por perito judicial, para comprovação da gravidez, bem como a investidura na posse dos direitos do nascituro.

Exige o §1°, do art. 877, que a petição inicial seja instruída "com a certidão de óbito da pessoa, de quem o nascituro é sucessor". Ocorre, entretanto, que há casos em que o direito pleiteado não se funda em sucessão causa mortis. Nestas ocasiões haverá dispensa da certidão.

"É possível o indeferimento liminar da petição nos casos comuns de inépcia e de descabimento da pretensão pelos motivos genericamente previstos no art. 295, e em outros de impossibilidade jurídica da pretensão, como aquele em que o simples confronto de datas evidenciar a impossibilidade biológica da paternidade (mulher que, por exemplo, atribuísse gravidez ao marido, um ano após sua morte)" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 282).

Estando em termos a petição inicial, o juiz determinará a citação dos interessados para que apresentem resposta no prazo de cinco dias.

Note-se, por oportuno, que a lei não determina e nem tampouco dispensa a citação dos interessados. Todavia, o art. 812 do CPC impõe a aplicação do rito previsto nos artigos 802 e 803, que por seu turno estabelecem a necessidade do contraditório.

Se os herdeiros (interessados) "aceitarem a declaração da requerente", será dispensado o exame médico (art. 877, §2°, do CPC) e o juiz investirá a requerente na posse dos direitos do nascituro.

Antônio Cláudio da Costa Machado pondera que "a aceitação a que alude o texto tem por objeto exclusivo a gravidez da mulher e não a paternidade, que poderá vir a ser discutida em futuro procedimento litigioso" (Op. cit., p. 1308).

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Escoado o prazo de cinco dias, com ou sem resposta, o juiz mandará ouvir o Ministério Publico, zelador dos interesses do nascituro, e, em ato contínuo, nomeará médico perito.

Concluindo o médico pela ausência de gravidez, o juiz proferirá sentença de improcedência da ação, lembrando sempre que as ações cautelares não fazem coisa julgada material, razão pela qual a ação poderá ser novamente proposta.

"No caso de conclusão dúbia, em razão de ser muito recente a provável gravidez, ou diante de um quadro clínico anormal, poderá o juiz determinar que se aguarde o tempo necessário à melhor definição do estado da mulher" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 383).

Já na hipótese de concluir o médico que a examinanda está grávida, o juiz estará adstrito a tal conclusão, e, "por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro" (art. 878, CPC).


7.O exame médico e sua dispensa

Ovídio Baptista sustenta que o exame médico previsto no art. 877 é exame pericial e, como tal, "há de obedecer às prescrições que o Código estabelece para as demais perícias, devendo permitir-se, segundo o art. 421, que as partes indiquem seus assistentes técnicos e formulem quesitos" (Do Processo Cautelar, p. 492).

Com posicionamento diametralmente oposto está Luiz Orione Neto, segundo o qual "no atual estágio tecnológico da medicina, é totalmente fora de propósito a realização de prova pericial, com a indicação de assistentes técnicos e formulação de quesitos para a simples e singela constatação do ‘estado de gravidez’, muitas vezes perceptível a olho nu, a dispensar até mesmo a realização de exame" (Op. cit., p. 416).

De fato, creio que neste particular assiste razão ao professor mato-grossense uma vez que o exame objetiva apenas e tão somente constatar o estado gravídico da requerente. Todavia, afasto-me do posicionamento radical posto que possam ocorrer situações peculiares em que seja demasiadamente oportuno permitir que a parte formule quesitos (v.g.: quando a determinação da data da concepção afastar a presunção de paternidade de um homem já falecido).

Outra questão interessante sobre a qual há divergência na doutrina diz respeito à possibilidade de que uma pessoa que não seja médica venha a examinar a requerente.

Humberto Theodoro Júnior (Processo Cautelar, p. 383) e Antonio Macedo de Campos (Medidas Cautelares, p. 116) são peremptórios em afirmar que apenas médicos podem examinar a gestante, muito embora também afirmem que a falta de exame não prejudicará os direitos do nascituro.

Orione Neto, muito atento à realidade interiorana do Brasil, cogita na possibilidade de que o juiz se valha "de parteira ou de outras pessoas idôneas com habilitação ginecológica" (Op. cit., mesma página).

Pode ocorrer, ainda, o desaparecimento da gestante no curso da ação ou a sua recusa em se submeter ao exame médico. Em ambas as hipóteses a solução adotada é a mesma e decorre de simples aplicação da lei: "em caso algum a falta do exame prejudicará os direitos do nascituro" (art. 877, §3°, CPC). Logo, o juiz terá de decidir com os elementos de que dispõe.

Idêntica solução deverá ser adotada se o médico atrasar na elaboração do laudo. Neste caso, preconiza Pontes de Miranda que, o juiz deve ordenar provisoriamente todas as medidas que lhe foram postuladas em caráter definitivo e, havendo necessidade, mandar publicar edital de segurança dos direitos do nascituro até que sobrevenha sentença (Comentários ao Código de Processo Civil, p. 235).


8.Sentença e seus efeitos

A sentença, como deixa transparecer o caput no art. 878, tem natureza meramente declaratória, pois apenas reconhece os direitos do nascituro que serão exercidos provisoriamente por outrem.

"Não constitui uma situação jurídica nova; apenas comprova que, efetivamente, há alguém no exercício de um direito, que deriva do fato da gravidez e da vontade da lei, e não da sentença do juiz" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 384).

Antonio Cláudio da Costa Machado afirma que além da natureza declaratória, a sentença também possui eficácia constitutiva, "porque do seu proferimento nasce uma situação jurídica nova, que é a de alguém investido judicialmente na qualidade de possuidor dos direitos do nascituro" (Código de Processo Civil Interpretado, p. 1309).

Para Pontes de Miranda a ação é de mandamento (Op. cit., p. 236).

A tutela obtida perdurará até o parto. Havendo o nascimento com vida o detentor do poder familiar passará a exercer o usufruto legal sobre os bens do filho. Se não houver nascimento com vida, os bens deverão ser devolvidos ao monte hereditário para partilha ou sobrepartilha.

Impende salientar que a sentença não faz coisa julgada material. Orione Neto sustenta que para chegar a esta conclusão basta atentar para a natureza do processo, que se limita à verificação da gravidez e conseqüente declaração de posse preexistente (Processo Cautelar, p. 418). Para Humberto Theodoro esta situação decorre do fato de que a sentença não é de mérito (Op. cit,. p. 384).

Por fim, registre-se que a sentença poderá ser combatida através de apelação (art. 513, CPC) não dotada de efeito suspensivo (art. 520, IV, CPC) (Cf. Antônio Cláudio da Costa Machado, op. cit., p. 1309).

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Sobre o autor
Sylvio Guerra Júnior

advogado militante, pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade Católica de Santos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA JÚNIOR, Sylvio. Da posse em nome do nascituro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1559, 8 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10508. Acesso em: 27 abr. 2024.

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