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Alexandre de Moraes e confusão no aeroporto: análise jurídica

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24/07/2023 às 17:49
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1. INTRODUÇÃO

Foi noticiado na imprensa nacional que o Ministro Alexandre de Moraes e seu filho teriam sido alvos de ofensas verbais e uma agressão física sem ferimentos num aeroporto na Itália (Roma) por parte de uma família de brasileiros. 1

Neste texto não irá ser discutido o mérito de fato do episódio, cotejando versões do Ministro e dos alegados agressores, os quais, por seu turno, afirmam que foram eles hostilizados primeiro pelo filho do Ministro e somente reagiram à altura. Também não se debaterá se eventuais agressões e xingamentos têm origem política ou numa discussão entre as partes e o filho do Ministro devido a questões de atendimento no aeroporto. O objeto e a finalidade deste artigo são tão somente a análise técnica sob o aspecto jurídico – penal do caso em seus vários aspectos, partindo de uma pressuposição de que realmente o Ministro tenha sido hostilizado verbalmente e seu filho agredido fisicamente.

Importa ainda ressaltar que embora parte da imprensa tenha retratado o filho do ministro como um adolescente de óculos, se trata de um adulto. Essa é uma crítica que não poderia deixar de ser exposta, embora ligada aos fatos e não especificamente ao Direito (inobstante a agressão a um menor possa ser considerada mais gravosa sob o prisma jurídico e até moral). Nossa imprensa precisa tomar consciência de sua responsabilidade e da perda de confiabilidade que vem semeando contra si mesma. Não adianta, após plantar narrativas visando sensacionalismo e distorção, vir depois com pequenas correções de matéria em nota de rodapé. Isso só após a repercussão negativa na opinião pública. Na verdade, essas atitudes somente revelam, no melhor dos casos, incompetência e no pior, parcialidade e falsidade. 2


2. ILÍCITOS PENAIS APLICÁVEIS AO CASO

Considerando que o que se noticia é que o Ministro teria sido ofendido com xingamentos verbais aleatórios, tais como “comunista e vendido” (sic), o tipo penal infringido seria aquele previsto no artigo 140, CP (Injúria). Há possibilidade de aplicação de causa de aumento de pena prevista no artigo 141, II, CP, considerando que, segundo consta e até pela natureza das ofensas, teria sido o delito praticado contra “funcionário público em razão de suas funções”.

Outra possibilidade seria a tipificação do crime de “Desacato” (artigo 331, CP). Não importa se o Ministro estava viajando em férias. Se as ofensas se referem às suas funções públicas e foram proferidas presencialmente, pode-se cogitar dessa infração penal, a qual, a nosso sentir, parece até mais adequada, em tese, ao caso concreto.

Quanto a um leve tapa ou empurrão desferido contra o filho do Ministro sem causar lesões e sem mesmo potencial para isso, configura-se, com absoluta certeza, a Contravenção Penal de “Vias de Fato” (artigo 21, LCP).

Em todos os casos os ilícitos aventados são “infrações penais de menor potencial ofensivo”, uma vez que mesmo com a aplicação da majorante na injúria, em nenhuma hipótese as penas máximas ultrapassariam 2 anos.

É bem verdade que a pena do Desacato, que já é máxima de 2 anos, considerando concurso material com a Contravenção de Vias de Fato poderia ultrapassar o limite da Lei 9.099/95 (artigo 61). Acontece que ambas as infrações têm previsão de pena de multa alternativa (“ou multa”), o que impede que se possa falar em afastamento da condição de infrações de menor potencial. 3 Se alguém pensou que estaria sendo olvidado eventual concurso do Desacato com a Injúria, não se trata disso. Além do fato de que o Desacato e as Vias de Fato são apenados alternativamente com multa, acontece que se houver opção pelo Desacato a Injúria é afastada e vice – versa, sob pena de “bis in idem”.

Em suma, há duas vertentes possíveis:

  • a) Crime de Injúria Majorada em concurso material com a Contravenção Penal de Vias de Fato;

  • b) Crime de Desacato em concurso com a Contravenção Penal de Vias de Fato.

Nossa opinião, (“sub censura”), é a de que o item “b” seria o mais adequado ao caso enfocado.


3. O LOCAL DOS ILÍCITOS PENAIS E A EXTRATERRITORIALIDADE

Eventualmente crimes perpetrados por brasileiros no estrangeiro podem ser julgados no Brasil, desde que se adequem às regras de extraterritorialidade previstas no artigo 7º., CP.

É visível claramente que o episódio em análise não trata de crimes abrangidos pela chamada “extraterritorialidade incondicionada”, conforme disposto no artigo 7º., I, “a” a d”, CP.

É então necessário perquirir se é possível a aplicação ao caso concreto das hipóteses de “extraterritorialidade condicionada”, conforme dispõe o artigo 7º., II, “a” a “c” e seu § 2º, “a” a “e”, bem como § 3º., “a” e “b”.

Iniciando do mais óbvio, não é o caso adequável ao § 3º., do artigo 7º., CP, tendo em vista que este trata de crimes praticados por “estrangeiros” contra “brasileiros” fora do país. Ora, os supostos ofensores eram todos brasileiros.

Agora retornando ao artigo 7º., II, a alínea “a” não tem cabimento uma vez que não se tratam de crimes “que por tratado ou convenção o Brasil se obrigou a reprimir” (v.g. crime de tortura, lavagem de dinheiro, organizações criminosas etc.). Também a alínea “c” não é aplicável à espécie já que o crime se deu na área do aeroporto e não a bordo de aeronave. Por fim, a alínea “b” se enquadra perfeitamente ao caso em discussão, pois que seriam crimes perpetrados por “brasileiros”.

Considerando então o artigo 7º., alínea “b” do Código Penal, surge a impressão (equivocada) de que a extraterritorialidade estaria permitida.

Acontece que para que um crime praticado fora do Brasil por brasileiro venha a ser aqui punido há uma série de “condições legais” que devem ser satisfeitas de acordo com o disposto no mesmo artigo 7º., § 2º., CP (“extraterritorialidade condicionada”).

Os requisitos legais ou “condições” para a extraterritorialidade elencados nas alíneas “a” a “e” são cumulativos e não alternativos. Portanto, têm de estar todos presentes sob pena de exclusão da possibilidade de extraterritorialidade da legislação pátria. 4 E o caso em estudo não satisfaz a alínea “c” do artigo 7º., § 2º., CP. Eventuais crimes imputáveis, conforme acima demonstrado, não estão “incluídos entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição” (vide artigo 82, IV, da Lei 13.445/17 – Lei de Migração). Não se concede a extradição “quando a lei brasileira impuser ao crime pena de prisão inferior a 2 (dois) anos”. Como já visto, a injúria tem pena bem inferior a isso e mesmo o Desacato prevê multa alternativa.

Mas será que esquecemos a Contravenção Penal de Vias de Fato? Não. Ocorre que aí é que não cabe mesmo extradição e nem extraterritorialidade. Ambos os institutos somente são aplicáveis aos “Crimes” e não às “Contravenções Penais”. Observe-se que o artigo 7º., CP somente se refere a “Crimes” e o mesmo ocorre com a Lei de Migração. Além disso, é preciso lembrar que a Lei das Contravenções Penais (Decreto – Lei 3.688/41), em seu artigo 2º., determina o “Princípio da Territorialidade Absoluta”. Conforme tradicional escólio de Duarte:

O princípio da territorialidade é absoluto em matéria de contravenção. É o que decorre do artigo 2º. do Decreto – Lei 3.688.

À política criminal não interessa indagar da ação ou omissão que originara infração contravencional no estrangeiro, porque são fatos que só têm consequências ou constituem ameaças restritas ao local ou território em que se praticam, sem nenhum outro alcance social e, muito menos, além fronteiras. 5

E mais proximamente, Damásio:

“A legislação penal brasileira, quanto às contravenções, adotou exclusivamente o princípio da territorialidade: nossa lei só incide sobre a contravenção cometida em nosso território”. 6

Vale ainda salientar que, por obviedade, dada a pequenez da matéria contravencional, não seria cogitável encontrar-se uma delas no rol de ilícitos que permitem a extradição. Como bem aduz Sznick:

“Daí inocorrer não só a apenação, mas também a extradição motivada por infrações contravencionais”. 7

Dadas essas premissas, surge inevitavelmente um questionamento:

Então por que a Polícia Federal está se mobilizando para a apuração dessas supostas infrações penais e, principalmente, por que o Supremo Tribunal Federal, por meio da Ministra Rosa Weber, expediu ordem de busca e apreensão nas casas das pessoas envolvidas? 8

As respostas seguem no próximo item.


4. CRIAÇÃO DE NARRATIVAS, CONTORCIONISMOS, DISTORÇÕES, PRESTIDIGITAÇÕES E MALABARISMOS JURÍDICOS

Poderíamos encerrar este item com as duas linhas de seu título, pois o que ocorre com as ações da Polícia Federal e do STF são realmente apenas criações de narrativas, contorcionismos, distorções, prestidigitações e malabarismos jurídicos. Em suma, um exercício puro de poder arbitrário sem fundamento legal ou constitucional algum, nada mais do que um voluntarismo que se pretende autolegitimado e mal se dá ao trabalho de simular legalidade. Não há lei nem Constituição, não há regras ou normas, faz-se o que se quer, quando e como se quer. Por quê? Porque se pode fazer. Não há obstáculos.

Como já destacamos alhures:

Magistrados que se envolvem em discussões no exterior e ao serem xingados ou até supostamente agredidos (nem mesmo eles, mas seu filho adulto transformado pela imprensa em adolescente) naquilo que configuraria no máximo crime contra a honra e contravenção penal de vias de fato, levam o caso para o Tribunal Superior desprezando normas constitucionais de competência, atropelam as regras de extraterritorialidade, determinam buscas para apurar casos que não envolvem essa espécie de diligência (injúria e vias de fato) em nítida “fishing expedition” ou mesmo coisa pior, visando tão somente humilhar e intimidar as pessoas, e distorcem juridicamente toda a situação para afirmar que vias de fato e injúria constituem crime contra o Estado Democrático! 9

Enfim, a questão já passou da seara jurídica para a patológica, sem que se possa fazer um prognóstico de cura. 10

Mas vamos à análise de alguns pontos:

Dada a inanidade das supostas infrações penais atribuíveis aos envolvidos no episódio já se procura, sem qualquer elemento de prova ou pelo menos indiciário, mas tão somente fazendo prevalecer as hipóteses sobre os fatos, 11 ligar uma confusão em aeroporto a um Inquérito que apura depredações e invasões de prédios públicos, já este Inquérito lotado de ilicitudes e prestidigitações a transformarem crimes de dano e manifestações desarmadas em um “golpe de Estado” (sic), “Terrorismo” (sic) e outras absurdidades. 12

Outra “mágica” que se produz é o aventar que um episódio como este de confusão em aeroporto possa configurar eventual “crime contra o Estado Democrático”. 13 Esse tipo de manobra nem merece maiores comentários já que seria até difícil expor todas as inviabilidades de um “raciocínio jurídico” (sic) desses. Basta recomendar a leitura dos artigos 359- I a 359 – T do Código Penal, incluídos pela Lei 14.197/21. Qualquer pessoa alfabetizada perceberá a inexistência de possibilidade, ainda que remota, de tipificação. Trazer maiores argumentos e analisar artigo por artigo seria como tentar estabelecer todas as diferenças entre um elefante e uma formiga a fim de que as pessoas não se enganem e acabem pisando, sem querer, num elefante ou montem em uma formiga para passear.

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Mas é claro que essas manobras pseudojurídicas são imprescindíveis para dar algum ar de legalidade para as ações que vão sendo perpetradas nesse caso. É preciso contornar a inviabilidade da extraterritorialidade, fazendo a artificial ligação dos fatos com apurações de casos totalmente díspares ocorridos em território nacional. Ainda neste mesmo diapasão é preciso tentar encontrar a todo custo uma infração penal mais gravosa, com pena maior que 2 anos, nem que para isso seja necessário distorcer toda e qualquer regra hermenêutica básica.

Não há também qualquer motivação para buscas domiciliares, considerando as espécies penais em investigação. A Injúria é crime formal, 14 o Desacato é crime de mera conduta 15 e as Vias de Fato são também infração penal formal já que não exigem resultado naturalístico (lesão) para sua consumação. 16 As infrações teriam sido cometidas sem emprego de quaisquer instrumentos, verbalmente e por meio de um tapa leve ou empurrão com as mãos limpas. A doutrina classifica as infrações penais quanto à obrigatoriedade do exame de corpo de delito em “crimes de fato permanente” (“delicta facti permanentis”) e “crimes de fato transeunte” (“delicta facti transeuntis”). Os primeiros são aqueles que deixam vestígios e os segundos são os que, ao inverso, não deixam vestígios. 17 Pois bem, é indiscutível que todas as condutas imputadas aos envolvidos são daquelas que não deixam vestígios e nem obrigam à busca e exame de corpo de delito (inteligência “contrario sensu” do artigo 158, CPP).

Não havia nada a varejar ou buscar nas casas dos envolvidos. A ação policial determinada pelo STF não passa do que se convencionou chamar de “Fishing Expedition”. Na dicção de Morais da Rosa:

Fishing expedition, ou pescaria probatória, é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem "causa provável", alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém. (...).

Denomina-se pescaria (ou expedição) probatória a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. 18

E nem é preciso dizer que seria o cúmulo do cúmulo do absurdo imaginar que nem mesmo se trata de “pescaria probatória”, mas de puro intuito de intimidar e humilhar as pessoas implicadas, aplicando uma espécie espúria de “pena aflitiva inominada” em franca violação do “Princípio da Legalidade” (artigo 5º., XXXIX, CF c/c artigo 1º., CP). O grande problema hoje é que o absurdo não é incomum e até se vai assentando como corriqueiro, a tal ponto que logo as pessoas nem mesmo irão notar sua presença insidiosa. Como aduz Dávila:

“La mayor astucia del mal es su mudanza en dios doméstico y discreto”. 19

Inexiste “justa causa” para sequer haver instauração de investigação a respeito dos fatos no Brasil, muito menos para promoção de buscas domiciliares. Tudo isso é abuso de autoridade (artigo 22 – “fora das condições estabelecidas em lei” ainda que com ordem judicial e artigo 30, ambos da Lei 13.869/19) e constrangimentos ilegais impostos às pessoas envolvidas. O Processo Penal é instrumental do Direito Penal. Na medida em que os delitos não podem ser abrangidos pela Lei Penal Brasileira, qual seria a “justa causa” ou a finalidade de investigações e buscas? Também qual seria a motivação das buscas se os delitos não são praticados com instrumentos e não deixam vestígios, já que são formais e de mera conduta? Resposta: Nenhuma. Tudo isso, se o Direito prevalece, é uma ponte que liga o nada a lugar nenhum.

Ademais, a ordem judicial de busca emana de juízo incompetente constitucionalmente. Embora se discuta se a competência para os casos de extraterritorialidade seja Federal (STJ, HC 188.993) ou Estadual (STF, Ag. Reg. RE 1.175.638), ainda que se entenda ser Federal, seria afeta ao Juízo de Primeiro Grau da Capital do Estado onde por último residiu o acusado (inteligência do artigo 88, CPP). E nada tem a ver o fato do envolvimento como sedizente vítima de Ministro do Supremo. O foro especial se destina aos Ministros quando são acusados e não vitimizados. Mas, como todos já sabem, essas regras de competência legais e constitucionais têm sido reiteradamente desprezadas pelo Supremo Tribunal Federal. É como se simplesmente não existissem mais o “Princípio do Juiz Natural”, a Constituição e o Código de Processo Penal ou se existissem, seria apenas para alguns, enquanto que os membros do STF, tal qual demiurgos jurídicos, criariam “ad hoc” legislações ordinárias e constitucionais adequadas a seus desideratos de momento.


5. O USO POLÍTICO E LEGISLATIVO DO EPISÓDIO

A suposta ofensa ao Ministro Alexandre de Moraes e agressão física a seu filho teriam ocorrido no dia 14.07.2023. 20 Daí em diante o que se vê é uma avalanche de narrativas e medidas jurídicas altamente questionáveis, conforme já exaustivamente exposto.

Mas, interessa agora destacar que na rabeira desse acontecimento e sua repercussão sensacionalista, vêm a lume o lançamento do chamado “Programa de Ação na Segurança” (PAS), exatamente no intervalo de uma semana (dia 21.07.2023). 21

Em meio ao chamado PAS há um denominado “Pacote da Democracia” (sic) 22 que consiste basicamente em incrementar as penas para os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Para além de se pretender encontrar legalidade estrita na expressão aberta e indeterminada de “movimentos antidemocráticos”, chama a atenção a previsão de pena de 6 a 12 anos, mais pena correspondente à violência, para crimes que atentem contra a integridade física e a liberdade do Presidente da República, do Vice-Presidente da República, do Presidente do Senado Federal, do Presidente da Câmara dos Deputados, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República, com fim de alterar a ordem constitucional democrática.

A redação aqui também é aberta, pois abrange quaisquer atentados (note-se que não há necessidade de consumação, mas equiparação da tentativa a crime consumado – crime de atentado ou de empreendimento) 23 contra a “integridade física” e a “liberdade” de altas autoridades. Interessante notar que dentre as autoridades são enumerados sempre os “Presidentes”, “Vice – Presidente” e o “Procurador – Geral”, mas no caso de Ministros do Supremo Tribunal Federal, não é somente o “Presidente” aquele especialmente protegido, mas todo e qualquer Ministro. Parece que um dos Poderes da República é mais relevante e merece maior tutela do que outros. Aí já temos uma violação do “Princípio da Isonomia”.

A legalidade estrita é destroçada pela expressão “qualquer atentado”, podendo então abranger vias de fato, lesões, tentativas de lesões, ofensas verbais, ameaças, constrangimentos em geral, pois também esse “atentado” pode ser não somente contra a “integridade física”, mas também à “liberdade”. O caso do aeroporto em estudo poderia, sem muito esforço hermenêutico, ser tipificado nesse dispositivo. Então, aquilo que hoje se procede mediante uma gambiarra jurídica é levado a termo por meio de uma gambiarra legislativa que infringe a legalidade e a isonomia de uma só vez.

Mas, a principal infração à isonomia não se dá internamente ou horizontalmente entre as altas autoridades ali mencionadas, devido à maior amplitude protetiva deferida ao órgão máximo do Judiciário. Não, a maior ofensa se dá de forma vertical, entre autoridades e a população em geral.

Acaso qualquer um de nós venha a sofrer uma lesão corporal leve, a pena será de detenção, de 3 meses a 1 ano; uma lesão grave enseja pena de reclusão, de 1 a 5 anos; uma lesão gravíssima, pena de reclusão, de 2 a 8 anos e até mesmo uma lesão seguida de morte, somente chega à penalidade de reclusão, de 4 a 12 anos. Até no caso de lesão seguida de morte a pena mínima do crime em projeto é maior! Nem a morte seria capaz de nos equiparar em valor às nossas “supremas” autoridades.

Nem é preciso falar das penas que são cominadas para crimes como ameaça, constrangimento ilegal, vias de fato, crimes contra a honra etc.

A posição social e o cargo ocupado por tais pessoas não justifica jamais tal disparidade. Também não é motivo justo mesmo a questão do dolo específico de “alterar a ordem constitucional democrática”. Essa é outra expressão aberta que será fatalmente banalizada e utilizada como motivo de perseguição e abusos incontáveis. Como já dito, certamente o caso do aeroporto italiano estaria sendo tratado como uma infração dessas e não crimes comuns, agora com base em uma gambiarra legislativa levada a termo à margem da legalidade e isonomia, enfim, à margem da ordem constitucional que supostamente pretende tutelar. Se atualmente, sem fundamento legal algum, já se utiliza de manobras para afirmar crimes contra o Estado Democrático de Direito, imagine-se com a aprovação de uma lei aberrante como esta!

Essa espécie de distinção já foi condenada pela Comissão e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e deveria ter sua inconvencionalidade reconhecida. Na ocasião versava-se sobre o crime de “Desacato”.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2016, considerou que o desacato seria incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana, ensejando um importante precedente no tema. Contudo, em 2017, a 3ª Seção do STJ, composta pelas 5ª e 6ª turmas do tribunal, se posicionou no sentido contrário. 24

Nessas circunstâncias, em 2017, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou a ADPF 496, criticando o artigo 331 do Código Penal, com o fundamento de que ele não descreve taxativamente a conduta, bem como sua incompatibilidade com o artigo 13 da Convenção Americana e com o próprio artigo 5, IV da CF/88. 25 Contudo, a decisão do STF foi pela inexistência de inconvencionalidade, o que foi certamente uma surpresa para a comunidade jurídica naquela época, mas que hoje passa a fazer sentido, considerando o apoio desse mesmo Tribunal a tipificações abertas, violadoras da legalidade e também a privilégios tutelares penais em relação a determinadas autoridades.

Enquanto a questão do Desacato continua em debate e a CIDH acolhe, em 2022, denúncia da Defensoria Pública da União quanto à sua inconvencionalidade, 26 o Estado brasileiro segue criando, sob o falso pretexto de defesa da Democracia, normas penais de conteúdo autoritário, violadoras da isonomia e da legalidade, as quais podem servir e já servem de instrumento e desculpa para os mais variados abusos e constrangimentos. Pior que isso, mesmo à míngua de normas (ainda que inconstitucionais e inconvencionais), segue-se promovendo arbitrariedades mediante malabarismos jurídicos ou mesmo violações descaradas da legislação posta e da Constituição.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Alexandre de Moraes e confusão no aeroporto: análise jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7327, 24 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105238. Acesso em: 27 abr. 2024.

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