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Seleção e formação de juízes.

O caso espanhol em perspectiva histórica

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20/10/2007 às 00:00
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6. Conclusões

A análise que fizemos demonstrou que a observação inicial de que o sistema de seleção da magistratura espanhola inseria-se no modelo do juiz funcionário, também chamado de modelo burocrático, encontra perfeito respaldo na realidade.

Mais do que respaldada na realidade, a afirmação inicial pode agora ser melhor compreendida se verificamos que as tentativas de introduzir mecanismos de ingresso lateral, recrutando profissionais já experimentados, teve e tem uma presença secundária no sistema espanhol. A resistência à incorporação de profissionais que não tenham sido avaliados pelo mecanismo tradicional da oposición é, sem dúvida, uma das características marcantes e persistente no tempo.

Do mesmo modo, o outro traço marcante do sistema, em perfeita consonância com o modelo burocrático de recrutamento, é a firme presença da oposición libre como mecanismo de seleção. Se esse é um denominador comum dos sistemas que partilham o modelo, no caso espanhol ele vem acrescido do caráter memorístico, firmemente incrustado na tradição. As tentativas de introduzir elementos mais práticos ou provas de caráter reflexivo/discursivo foram, com maior ou menor demora e publicidade, abandonados em nome da objetividade que o sistema de provas orais perante um tribunal supõe garantir. O modelo de provas orais é, assim, a marca saliente do sistema espanhol e se recebe críticas desde praticamente a sua criação, como vimos, também resiste bravamente aos intuitos de mudança e mesmo de discussão.

A assimilação histórica que parece ter ocorrido é entre a objetividade (e consequentemente a ausência de práticas clientelistas) e o sistema de provas orais, meramente "cantadas". De um modo mais ou menos difuso, permeia a prática da oposición a idéia de que se a banca examinadora for liberada para realizar questionamentos, poderia haver o favorecimento ou a perseguição aos candidatos avaliados. A idéia de um monólogo com conteúdo praticamente predeterminado não é, assim, gratuita, mas se ampara na perspectiva de que se todos "cantarem" os temas de modo semelhante, serão escolhidos os melhores, sem favorecimentos indevidos.

A ausência de qualquer experiência prática anterior ao ingresso na magistratura confirma que o perfil do juiz que ingressa na carreira, produzido pelo modelo de seleção, é o de um jovem inexperiente, consubstanciando assim outro dos traços marcantes do modelo burocrático.

Em síntese, cabe dizer que a história do modelo de seleção espanhol avaliada como conjunto nos mostrou que, apesar das mudanças políticas, econômicas e sociais pelas quais a Espanha passou, incluindo-se aí uma transição política para a democracia e o ingresso na União Européia, a fórmula inicial, criada em 1870, continua praticamente intocada. Um peso maior, sem dúvida nenhuma, foi dado nos últimos anos à formação inicial, mas, em compensação, a sistemática das provas orais memorísticas permanece firmemente estabelecida.

Sem dúvida, se poderia pensar que as provas orais memorísticas cumprem um papel importante, pois obrigam o candidato, como vimos, a memorizar as informações necessárias para localizar as normas jurídicas no sistema e a desenvolver a segurança necessária para enfrentar o tribunal avaliador. A pergunta chave, no entanto, é se essa concepção de que o Direito constitui um conjunto de normas, topograficamente localizadas e de sentido literal, é a concepção adequada para um operador jurídico que maneja o sistema jurídico contemporâneo. As críticas realizadas ao formalismo e ao positivismo normativista nas últimas décadas, põem pelo menos uma sombra de dúvida em uma resposta prontamente afirmativa à questão. De outra parte e em sentido muito mais prosaico, a memorização encontra um limite claro: a quantidade de alterações legislativas e de normas que compõem o ordenamento jurídico em contínua expansão. Por fim, as decantadas habilidade e segurança para enfrentar o tribunal avaliador, dado o caráter eminentemente oral da prova, são, sem dúvida, importantes, mas seriam melhor avaliadas se o candidato fosse submetido ao questionamento do tribunal e não apenas se limitasse a "cantar" os temas sorteados.

Se a formação inicial na Escuela Judicial visa especificamente proporcionar aos novos juízes a condição de atenderem aos exigentes requisitos constitucionais, é contraditório exigir-lhes, até o momento em que ingressam na Escuela, que se preparem e comportem como juízes do século XIX.

O exame das reformas legislativas pertinentes ao nosso tema produz a sensação de que não havia um projeto claro de adaptação do Poder Judiciário ao regime político democrático durante a transição, o que desembocou em uma Constituição com aspectos bastante avançados ao lado de dispositivos francamente conservadores. Essa indefinição ou indecisão em modificar estruturas de poder internas ao Poder Judiciário parece estar presente como elemento de fundo nas subseqüentes regulamentações infraconstitucionais e poderia ser utilizada como hipótese explicativa do por que não se alterou significativamente o sistema de seleção após a transição democrática. De um modo sintético poderíamos dizer que não parece ter havido e nem existir hoje um projeto claro sobre como deve ser o Poder Judiciário e, menos ainda, como se recrutam os seus membros para que os objetivos sejam atendidos. Nem os partidos políticos de esquerda e nem os de centro-direita poderiam ser diferenciados substancialmente pelo teor de reformas que intentaram, se cruzamos as modificações introduzidas na legislação do Poder Judiciário ao longo dos últimos anos com o partido que detinha a maioria parlamentar no momento da reforma.

Essa ausência de projeto se desdobra quando examinamos o tratamento dado às questões pertinentes ao nosso tema, em duas constantes: a manutenção do sistema pela não introdução de medidas radicais e as reformas para modificar aspectos pontuais que resultam incômodos política ou praticamente.

O tratamento dado ao Consejo General del Poder Judicial reflete bem o que estamos procurando apontar. O seu primeiro desenho institucional baseado na idéia de que deveria ser um órgão de auto-governo, a fim de evitar as ingerências indevidas do Poder Executivo, contava com mecanismos efetivos de representação dos juízes. Com uma característica ainda assim hierárquica e em certa medida centralizadora do poder nas mãos dos escalões mais conservadores da magistratura, mas com um matiz de representatividade que é eliminado em 1985 ao ser instituída a escolha dos seus membros integralmente pelo Parlamento. Nenhuma das reformas posteriores alterou esse quadro, nem há qualquer proposta ou debate neste sentido. A mudança ocorrida na fórmula de escolha dos membros do CGPJ é avaliada pelos participantes do sistema jurídico como uma espécie de punição ao Poder Judiciário e ao próprio Consejo que se mostrara demasiado incômodo politicamente.

Um exemplo de correção de disfunções práticas pode ser buscado na unificação das provas da seleção de juízes e fiscales, abstraindo as diferenças entre suas funções em nome do preenchimento de vagas mais rapidamente e sem aumento de custos.

Por outro lado, como bem lembra Perfecto Andrés Ibañez (2006), é certo que um Poder Judiciário não se faz apenas de elementos estruturais e organizativos. Uma cultura da jurisdição se faz presente, complementando e explicando como se devem realizar as atividades da prática jurídica. Nesse sentido, o modelo napoleônico de juiz burocrático do qual é tão tributário o sistema espanhol, não se faz apenas da regulação jurídica da sua organização, mas da cultura da qual provém e para a qual é ou não funcional. Reformar as instituições significa, em certa medida difusa e indireta, pensar em como se muda uma cultura institucional.

Se seguirmos essa direção e voltarmos o olhar para a história que contamos nas páginas precedentes, podemos pensar que o modelo de seleção revela em praticamente todos os seus traços concretos uma perfeita compatibilidade com a produção de um juiz adequado a um modelo de Direito e de função jurisdicional legalista e conservadora. Para permanecer na terminologia que utilizamos acima seguindo a Andrés Ibañez (2006), uma cultura da jurisdição que não privilegia a justificação da decisão judicial, que vê o juiz como um ser a parte e que deve manter-se assim, com um traço autoritário que se mostra de múltiplas formas na sua atuação prática e com uma concepção de seu papel como a de um aplicador da letra da lei que expressa a sua vontade em uma linguagem hermética.

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Parece pertinente pensar, neste sentido, que a oposición libre em sua caracterização memorística, seus preparadores e seus candidatos de vida quase monástica, joga um papel não depreciável na produção dessa cultura. Os meses de formação inicial na Escuela Judicial talvez não sejam suficientes para contrariar esses traços, que, ademais, tem um lastro na cultura jurídica. É oportuno perguntar-se, por exemplo, se o tipo de preparação, derivado do tipo de prova que se faz para o concurso, não traz consigo uma cultura que não favorece a independência pessoal do futuro juiz, pois o obriga, durante um período considerável de tempo, a preparar-se para "não-pensar" e repetir. Se a relação preparador/candidato, tão típica do sistema, não traz consigo uma socialização profissional para o futuro juiz na qual predomina a relação de subordinação com traços autoritários. Se, por fim, o isolamento a que se submete o candidato não implicará em um certo distanciamento da própria Sociedade em que vive e atuará, como juiz.


7. Referências das fontes citadas:

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Sobre a autora
Claudia Rosane Roesler

doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Universidade de Alicante (Espanha), professora dos cursos de Graduação em Direito, Mestrado Acadêmico em Ciência Jurídica e Mestrado Profissionalizante em Gestão de Políticas Públicas da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI/SC) e da Graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROESLER, Claudia Rosane. Seleção e formação de juízes.: O caso espanhol em perspectiva histórica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1571, 20 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10536. Acesso em: 7 mai. 2024.

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