Desafia comentários o problema da invariável incidência do prazo prescricional de 5 anos, incidente sobre as pretensões contra a Fazenda Pública, para o requerimento de processos revisionais de penas disciplinares.
É que, conquanto a Lei 8.112/90 reze que o direito do servidor público de requerer perante a Administração prescreve em 5 (cinco) anos, quanto aos atos de demissão e de cassação de aposentadoria ou disponibilidade, ou que afetem interesse patrimonial e créditos resultantes das relações de trabalho (art. 110, I), pode gerar grave injustiça a impensada aplicação literal do preceito, nos casos de pedidos de reintegração aos cargos públicos de funcionários previamente demitidos e que são posteriormente absolvidos por sentença penal que declara a inexistência do fato ou negativa de autoria de crimes contra a Administração Pública, quando ausente falta residual motivadora, de per si, da penalidade demissória.
É um tema importante, não pacificado mas em que já se ruma a juízo dominante doutrinário e jurisprudencial, em algumas situações como a do servidor que, depois de demitido, exclusivamente, por cometimento de crime contra a Administração Pública – por exemplo, concussão –, portanto sem a existência de falta residual, vem a ser absolvido pela Justiça no processo penal, ao fundamento de negativa de autoria, com trânsito em julgado mais de cinco anos depois da imposição do ato demissório.
Trata-se de caso de nítida repercussão da sentença penal na esfera administrativa (art. 126, L. 8.112/90; art. 935, Código Civil de 2002), sem a presença de falta residual, o que implicaria a anulação do ato administrativo sancionatório e a reintegração do funcionário, o qual poderá ter seu pleito obstado, contudo, em nome do óbice prescricional qüinqüenal, perpetuando-se a injustiça, a despeito da superveniência do decreto judicial alforriador vinculante da esfera administrativa, o que não parece ser condizente com os fins da revisão.
Sebastião José Lessa transcreve parecer da Consultoria Geral da República [01] em que, apesar de capitular a regra geral da prescrição qüinqüenal para o requerimento de revisão, é excepcionada a situação de a prova segura da ilegalidade da demissão somente surgir após o decurso do prazo de 5 anos, quando será possível a instauração do processo revisional, considerando-se que "as ações tutelares do direito somente começam a correr da data em que poderiam ter sido propostas." [02]
Léo da Silva Alves et al. colacionam julgado em que se firmou que o prazo para requerer a revisão do processo administrativo disciplinar cumulada com reintegração ao cargo público, passa a contar da data em que publicada a absolvição no processo criminal, [03] entendimento também assentado pelo egrégio Tribunal Regional Federal da 2ª Região. [04]
É que os processos penais podem demorar mais de cinco anos para formarem coisa julgada favorável ao servidor demitido previamente, o que não é tão inusitado em face da plêiade de recursos à disposição das partes nos processos judiciais brasileiros.
Daí que o cômputo do prazo para que se requeira a reintegração, nesses casos, deve ser contado do trânsito em julgado da sentença penal absolutória implicante da anulação dos atos administrativos sancionadores, quando inexista falta residual bastante para sustentar a validade da pena aplicada.
Estatuiu o Tribunal Regional Federal da 5ª Região: "O prazo para ajuizamento da ação de reintegração tem como dies a quo a data do trânsito em julgado da sentença absolutória do réu na ação criminal." [05]
José Armando da Costa cita acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em que se firma que o prazo para requerer a reintegração ao cargo público de que foi demitido começa a correr da absolvição no juízo criminal (TJSP, Ap. Cív. n. 169.263, in RT, v. 399, p. 176).
Pontificou o extinto mas sempre egrégio Tribunal Federal de Recursos:
"No caso de ação reintegratória, a prescrição corre da ciência da sentença absolutória no processo-crime instaurado em razão dos mesmos fatos que determinaram a imposição da pena disciplinar de demissão, na esfera administrativa." [06]
O mesmo Tribunal Federal de Recursos ainda destacou que, no caso de a sentença proferida no processo criminal firmar que o servidor público é inimputável, o prazo para requerer a reintegração ao cargo público deve ser contado do trânsito em julgado do decreto judicial alforriador, que, no caso, vincula a autoridade administrativa à ausência de responsabilidade, conquanto se reconheça a existência do fato. [07]
Há, de fato, situações diferenciadas, em que o servidor punido não tem meios de provar sua inocência ou a inadequação da penalidade infligida senão depois de decorrido algum tempo além do prazo prescricional para o aforamento da pretensão revisional, como ocorre na hipótese de, demitido exclusivamente pelo motivo da prática de crime contra a Administração Pública, o servidor somente ser absolvido no processo penal depois de seis ou dez anos, pelo fundamento da inexistência do fato, de modo que a sentença gera necessário efeito vinculante na esfera administrativa.
Seria demasiadamente injusto e intolerável que um funcionário, inocentado pela Justiça, por causa de o crime não ter existido ou porque foi cometido por terceiros, permanecer demitido por conduta considerada indevidamente um ilícito penal pela Administração Pública, ou como de suposta autoria do acusado, enquanto posterior decreto judicial, com repercussão obrigatória na instância disciplinar, inclusive diante da inexistência de falta residual com robustez jurídica para sustentar a manutenção da pena funcional outrora imposta, nega um ou ambos esses motivos, como dita a Lei 8.112/90: "A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria" (art. 126).
Parece que a observância do prazo prescricional qüinqüenal se afigura razoável como parâmetro para admissão, ou não, dos pedidos de abertura de processo de revisão, ressalvados os casos em que o novo meio de prova surja após cinco anos da aplicação da pena de demissão ou na hipótese de superveniência de sentença penal absolutória vinculante da esfera administrativa (inexistência do fato ou negativa de autoria, desde que ausente falta residual), contando-se o prazo a partir do trânsito em julgado do decreto judicial alforriador.
A solução para essas hipóteses parece melhor se ajustar à idéia de prescrição das prestações do direito do servidor a perceber quaisquer efeitos financeiros superiores ao prazo prescricional capitulado para as pretensões contra a Administração Pública, mas sem qualquer perda do fundo do direito, ou seja, da possibilidade de reintegração no caso de penalidade demissória, ou de edição de ato tornando sem efeito a publicação da advertência ou de outra penalidade imposta, salvo no que concerne à destituição de cargo ou função comissionada, que deverá ser convertida em exoneração (art. 182, caput, L. 8.112/90).
O princípio da razoabilidade não poderia impor ao servidor público inocentado a prova precoce de título penal absolutório vinculante da esfera administrativa, ou de prova nova somente surgida no curso de processo criminal pelos mesmos fatos em que se fundamentou a pena disciplinar, antes do decurso do prazo qüinqüenal da publicação da reprimenda funcional, haja vista que ninguém pode ser compelido a realizar o impossível. Ad impossibilia nemo tenetur.
Seria inaceitável iniqüidade, incompatível com a idéia do direito como "a arte do bom e do justo", impedir que se fizesse justiça na esfera administrativa, apenas porque o servidor inocentado pela Justiça foi prejudicado pela longa tramitação do processo criminal em cujo desfecho foi lavrada a sentença penal absolutória vinculante da Administração Pública ou colhida a prova decisiva e inconteste da inocência do funcionário indevidamente apenado.
Apenas se limitam os efeitos patrimoniais dos pleitos deduzidos e da própria revisão do processo administrativo disciplinar julgada procedente, fincando-se a prescrição qüinqüenal na hipótese do surgimento da prova nova, além de, pontue-se, contar-se o prazo de 5 anos do trânsito em julgado do decreto judicial alforriador com repercussão na via administrativa.
No caso, porém, de inexistir hipótese excepcional, aí sim, aplica-se, sem dúvida, como regra geral, o óbice prescricional no sentido de que toda e qualquer pretensão contra a Administração Pública prescreve após o decurso de cinco anos.
É que, se não houve a superveniência de fato que elidisse os motivos fáticos e jurídicos da pena administrativa imposta, como no caso de o servidor requerente da revisão de processo administrativo disciplinar ter sido condenado no processo-crime pelos mesmos fatos, apenas gozando do benefício decorrente da lavra de sentença extintiva da pretensão executória da pena criminal, por força da superveniente prescrição, não se poderia julgar que tivessem sido abalados, em absoluto, os fundamentos da demissão, ainda incólumes.
Nessa hipótese, incide o prazo prescricional qüinqüenal ordinário.
O art. 1º, do Decreto nº 20.910, de 06.01.32, dispõe expressamente sobre a prescrição do direito de ação contra a Administração Pública:
Art. 1º. As dívidas passivas da União, dos Estados e Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.(grifamos)
Nesse sentido, o egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios também entende que a prescrição qüinqüenal dos direitos contra a Fazenda Pública compreende pleitos patrimoniais e extrapatrimoniais:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. NOMEAÇÃO PARA O CARGO DE AGENTE DA POLÍCIA CIVIL DO DF. PRESCRIÇÃO QUINQÜENAL. OCORRÊNCIA. DECRETO Nº 20.910/32.
1. A prescrição qüinqüenal, prevista no Decreto nº 20.910/32, aplica-se a qualquer direito ou ação contra a Fazenda Pública, inclusive, o Distrito Federal, eis que constitui uma regra para todas as Fazendas Públicas. (grifamos)
2. Tratando-se de atos referentes à nomeação de candidato em concurso público, aplica-se a prescrição qüinqüenal prevista no Decreto nº 20.910/32.
3. Conquanto o Autor seja beneficiário da gratuidade de justiça, impõe-se a sua condenação em arcar com as custa e honorários advocatícios, devendo, contudo, ficar suspensa a obrigação na forma do art. 12 da Lei nº 1.060/50.
4. Apelo do autor não provido. Recurso do Réu provido.
(20040110801028APC, Relator FLAVIO ROSTIROLA, 1ª Turma Cível, julgado em 31/01/2007, DJ 06/03/2007 p. 98)
ADMINISTRATIVO. AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO PUNITIVO. PRESCRIÇÃO.
1 - Verifica-se a prescrição qüinqüenal quando ajuizada a ação, visando a anulação de ato da administração, mais de cinco anos depois da ciência pelo servidor do ato que o puniu. (grifamos)
2 - Consumada a prescrição, inviável o exame de questões atinentes ao mérito, inclusive irregularidades que se diz ocorridas no procedimento que resultou na punição.
3 - Apelo não provido.
(APC5218599, Relator JAIR SOARES, 5ª Turma Cível, julgado em 18/10/1999, DJ 15/12/1999 p. 51)
Por isso que deve incidir a regra geral do prazo prescricional de 5 anos para o oferecimento de pedidos de revisão de processo administrativo disciplinar, salvo se sobrevier sentença penal absolutória com repercussão necessária na instância administrativa, por força da declaração judicial de inexistência do fato ou da negativa de autoria, na hipótese de a demissão de fundar, estritamente, na prática de crime contra a Administração Pública, sem que exista falta residual que, de per si, justifique a manutenção da penalidade disciplinar imposta.
O mesmo raciocínio deve ser adotado no caso de a prova contundente da inocência do servidor demitido ou punido, com vigor jurídico bastante para desconstituir os fundamentos fáticos e jurídicos da sanção infligida e permitir o oferecimento do pedido de revisão do processo administrativo disciplinar somente surgir após o decurso do prazo de cinco anos após a publicação da penalidade administrativa.
Notas
01 Autor Dr. Carlos Medeiros Silva, DOU de 21.05.1957, p. 12.582.
02 LESSA, Sebastião José. Temas práticos de direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 94.
03 SZKLAROWSKY, Leon Fredja; SILVA, Alsom Pereira da; ALVES, Léo da Silva. Os crimes contra a Administração Pública e a relação com o processo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 159-160 (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, APC 2290890/DF, registro acórdão 65134, julgamento de 13.05.1993).
4 "Pacífico o entendimento de que somente a absolvição criminal fundamentada na negativa da autoria ou da existência de crime faz, automaticamente, coisa julgada nas esferas cível e administrativa. Entretanto, é possível que elementos revelados ao longo do processo penal possam evidenciar a ilegalidade da demissão do servidor, ainda que resulte, afinal, em mera absolvição por ausência de provas, pois, ainda que inexistente o aludido efeito automático da decisão criminal, não se pode desconsiderar, peremptoriamente, fatos que poderão vir a influenciar no controle jurisdicional do ato administrativo. Logo, inequívoco que o prazo prescricional para a pretensão revisional do ato demissionário deva ser iniciado com o trânsito em julgado da decisão absolutória, qualquer que seja o seu fundamento." (AC – 158972, Processo 9802002550/RJ, 2ª Turma, decisão de 31.10.2001, DJU de 17.01.2002, relator o Desembargador federal sergio feltrin correa, unanimidade).
05 AC – 75272, Processo: 9505037384/AL, 3ª Turma, decisão de 12.12.1996, DJ de 07.02.1997, p. 6016, relator o Desembargador federal josé maria lucena.
06 EIAC n. 0075562/BA, 1ª Turma, DJ de 18.02.1988, p. 2380, relator o ministro costa leite.
07 AC 58700/SP, 1ª Turma, DJ de 06.05.1982, EJ, vol. 1-02, p. 21, relator o ministro pereira de paiva.