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Lei dos crimes hediondos e suas recentes alterações.

Aspectos polêmicos

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03/11/2007 às 00:00
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1.INTRODUÇÃO

O ponto de origem da Lei dos Crimes Hediondos situa-se – e não poderia ser diferente – na Constituição Federal. O constituinte, no inciso XLIII [01] do art. 5º da Carta da República, determinou que o legislador infraconstitucional desse tratamento penal mais severo à prática da tortura, ao terrorismo, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e aos crimes hediondos.

O mandamento constitucional em voga aporta-se no princípio da proporcionalidade. Tal princípio é considerado constitucionalmente implícito. Há, no entanto, várias teses sobre seu fundamento jurídico: a) é corolário do princípio do Estado de Direito (art. 1º, caput, da CF/88); b) é inferido de outros princípios que lhe são afins, especialmente do princípio da igualdade; c) decorre da essência dos direitos fundamentais; d) é derivado do princípio do devido processo legal substancial; e) é um princípio constitucional independente – não deriva nem depende de qualquer outro princípio [02].

Segundo Paulo Bonavides, o princípio da proporcionalidade constitui-se no instrumento mais poderoso de garantia dos direitos fundamentais contra possíveis excessos perpetrados com o preenchimento do espaço aberto pela Constituição ao legislador para atuar formulativamente no domínio das reservas legais [03].

Outro exemplo da utilização do princípio da proporcionalidade pelo constituinte encontra-se inserto no art. 98, inciso I, da CF/88 [04]. Segundo este artigo, aos crimes de menor potencial ofensivo deve ser reservado tratamento penal mais brando, com a possibilidade de se beneficiar o agente com institutos despenalizadores, tais como a transação penal e a suspensão condicional do processo. Verifica-se que o processamento desses delitos é informado pelos princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.

Lado outro, como o inc. XLIII do art. 5º tem por escopo resguardar a ordem constitucional e o Estado Democrático, ao determinar tratamento penal mais severo à prática da tortura, ao tráfico de drogas, ao terrorismo e aos crimes considerados hediondos, visa evitar a perpetração de delitos considerados graves [05].

Portanto, com fulcro no princípio da proporcionalidade, o constituinte reservou aos crimes de menor potencial ofensivo tratamento penal mais brando, enquanto que, aos considerados de maior repercussão social e jurídica, aplica-se tratamento penal mais severo.

Ante análise do art. 5º, inciso XLIII da CF/88, observa-se que o crime de terrorismo, tortura e tráfico ilícito de entorpecentes não são hediondos, mas equiparados a hediondos e submetidos, portanto, ao mesmo tratamento penal mais severo reservado a esta espécie de delito. Nota-se que o legislador constitucional se incumbiu de fazer esta distinção ao elencar os crimes supracitados no texto do referido inciso. Pela gravidade exacerbada que possuem e pela nocividade social que representam, podendo até mesmo ser considerados mais graves que os crimes hediondos, já foram elencados na própria Constituição Federal.


2.CRIAÇÃO DA LEI 8.072 DE 25 DE JULHO DE 1990

Em 25 de julho de 1990, foi publicada a Lei 8.072, que entrou em vigor na data de sua publicação, passando a integrar o ordenamento jurídico pátrio com o fito de cumprir a ordem insculpida no art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal e, assim, impor tratamento penal mais severo aos crimes hediondos e aos a eles equiparados. Importante ressaltar também que foi esta lei que definiu quais são os crimes classificados como hediondos.

Em seu artigo 1º, a Lei 8.072/90 enumerou os crimes considerados hediondos, merecedores de maior rigor penal e processual penal. O critério utilizado pelo legislador infraconstitucional para determinar os delitos foi o enumerativo ou critério legal, ou seja, crimes hediondos são aqueles elencados no artigo 1º da lei e nenhum outro.

Nas palavras de Guilherme Souza Nucci, o ponto positivo desse modelo é a segurança na aplicação da lei, isto é, somente são hediondos os delitos ali constantes. Outros, por pior que pareçam, estão excluídos. O ponto negativo consiste na nebulosa avaliação legislativa, sem que haja parâmetros para descobrir o que teria levado o Parlamento a considerar, por exemplo, como hediondo o atentado violento ao pudor mediante violência presumida (art. 214 c/c art. 224, alínea "a", ambos do CPB), na primeira edição da lei em 1990, deixando de fora desse quadro o homicídio qualificado (art. 121, § 2º, do CPB). Portanto, se um indivíduo, maior, capaz, desse um beijo lascivo em sua namoradinha de apenas quatorze anos, praticaria um crime hediondo, ao passo que, se a matasse, não seria processado e julgado sob os rigores da Lei 8.072/90. Sob esse prisma, o aspecto negativo prevalece, pois o Congresso Nacional pode agir (como já o fez) ao sabor das notícias e da mídia, elevando à categoria de crime hediondo um tipo penal qualquer, somente porque contou com um caso rumoroso, captador da atenção nacional (ex: falsificação de remédios, art. 273, CPB, hoje constante do rol dos delitos hediondos, após escândalos amplamente divulgados nesse sentido em determinada época) [06].

Entretanto, poderia o legislador ter utilizado outros critérios capazes de estabelecer quais seriam os crimes hediondos, tais como o judicial subjetivo e o legislativo definidor. O primeiro consiste em atribuir-se ao magistrado a possibilidade de emoldurar um crime como hediondo, levando em consideração o caso concreto. Assim ocorrendo, poderia o juiz tachar de hediondo um roubo, onde a violência exercida contra a vítima foi exagerada, demonstrativa da perversidade do autor e da crueldade do ato. Por outro lado, poderia deixar de considerar hediondo um estupro praticado com violência presumida, por entender que o autor é primário, sem antecedentes e possuía ocupação lícita à época do delito. Enfim, o caso concreto ditaria o rumo a ser tomado pelo julgador [07].

A sistemática em comento possui a vantagem de não engessar a avaliação do caso concreto, permitindo maior flexibilidade na classificação de cada crime como hediondo. O ponto negativo, porém, consiste na insegurança dos critérios subjetivos de cada magistrado para considerar um crime como hediondo, invadindo a seara dos seus valores pessoais, muitas vezes repletos de preconceitos, desvios e falta de bom senso, podendo deixar de considerar como hediondo crimes graves em que a vítima seja homossexual, negra, pobre etc. [08].

O critério legislativo definidor, por sua vez, seria a forma de conferir ao legislador a prerrogativa de definir o que seria o crime hediondo, porém, não determinando de maneira taxativa tal qual no critério enumerativo. A partir daí, os operadores do direito buscariam enquadrar os tipos penais e os casos concretos nesse conceito previamente elaborado. O ponto positivo é evitar a singela enumeração de crimes, sem qualquer fundamento. O negativo consiste, ainda, na insegurança, pois sabemos todos que definições são, também, fontes inesgotáveis de dúvidas e acabaríamos relegando à jurisprudência a interpretação do que é e do que não é hediondo [09]. Cabe salientar que foi este o critério para se definir o conceito de infração de menor potencial ofensivo, elencado no art. 61 da Lei 9.099/90 [10].

Guilherme de Souza Nucci ainda propõe que a união dos três critérios aqui mencionados seria viável e, ainda segundo o ilustre autor, se traduziria na melhor forma de estabelecer o conceito de crime hediondo. Nesse diapasão, o legislador deve enumerar vários delitos (especialmente os que implicam em violência ou grave ameaça contra a pessoa), fornecer um conceito de hediondez e permitir que o juiz, no caso concreto, no tocante a esses delitos constantes em lei, possa promover a justa adequação, tachando-os ou não de hediondos. Teríamos uma parte de responsabilidade do legislador, fornecendo uma lista de crimes sujeitos à qualificação de hediondo – mas não necessariamente. Receberíamos um conceito do que seria hediondez, mas para aplicação limitada àqueles tipos penais constantes do rol dos crimes possivelmente hediondos, bem como permitiríamos ao Judiciário maior flexibilidade na classificação dos delitos para que recebam tratamento mais severo. Exemplo da sugestão em tela: o homicídio, por estar na lista, conforme a definição de hediondez, igualmente constante em lei, poderia ser considerado hediondo, caso as circunstâncias concretas assim recomendassem, atendendo-se não somente aos aspectos pessoais do agente, mas também à forma de cometimento do delito e as conseqüências produzidas [11].

Data maxima venia, ousa-se aqui discordar com a opinião exteriorizada pelo brilhante autor. Quando o legislador determina em um rol taxativo quais são os crimes considerados hediondos, torna-se redundante, desnecessário e, porque não, penoso estabelecer também o conceito de hediondez e conferir ao magistrado o poder de novamente analisar essa característica do delito diante do caso concreto.

Com o advento da Lei 8.072/90, foram considerados hediondos os crimes de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine), extorsão qualificada pela morte, (art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º), estupro (art. 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270, combinado com o art. 285), todos previstos no Código Penal, além do delito de genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956), tentados ou consumados. 

Nota-se claramente que o enfoque principal do legislador infraconstitucional, a priori, foi a primazia pela tutela patrimonial e também da liberdade sexual, esquecendo-se, contudo de inserir o homicídio qualificado no referido rol.


3.LEI 8.930, DE 06 DE SETEMBRO DE 1994 – PRIMEIRA ALTEÇÃO SOFRIDA PELA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS

Esta lei, conforme estabelecido em seu preâmbulo, conferiu nova redação ao art. 1º da Lei 8.072/90, acrescentou o homicídio simples (em uma única ação fática), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e o homicídio qualificado (§ 2º do art. 121 e todos os seus respectivos artigos) no rol dos delitos anteriormente definidos como hediondos.

Eliminou, em seu inciso V do art. 1º a palavra caput do delito tipificado no art. 213, tendo em vista que se o citado artigo não possui nenhum parágrafo, desnecessária era a referência ao seu caput.

Por fim, omitiu o delito de envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270, combinado com o art. 285, ambos do CPB).

Muitas críticas foram feitas à criação da Lei 8.930/94, vulgarmente denominada "Lei Rede Globo", tendo em vista que fora criada após pressão popular, a qual teve iniciativa da escritora Glória Perez, mãe de Daniela Perez, atriz, que em 28 de dezembro de 1992, quando contava com 22 anos, foi morta com dezesseis tesouradas no pescoço e no peito pelo também ator Guilherme de Pádua, então com 23 anos, auxiliado por sua esposa Paula Thomaz, de 19 anos, grávida de quatro meses.

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Após a tragédia, que comoveu toda a população brasileira, assídua no acompanhamento de novelas globais, o homicídio qualificado passou a integrar o rol dos crimes hediondos. Observa-se que o reboliço criado em cima do assassinato de Daniela Perez teria sido evitado se o legislador infraconstitucional tivesse se encarregado de inseri-lo no rol primário da Lei 8.072/90. Porém, teria esse mero fato salvado sua vida?


4.LEI 9.695, DE 20 DE AGOSTO DE 1998 – OUTRA ALETARAÇÃO DA LEI 8.072/90

A Lei n.º 9.695, de 20 de agosto de 1998, alterou a Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir, dentre os delitos hediondos, o crime de "falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais", previsto no art. 273 do Código Penal, sujeitando os infratores, por conseqüência, às penas de 10 a 15 anos de reclusão e multa. Essa mesma lei (art. 273, § 1º-B) sujeita às penas citadas quem expõe a venda, tem depósito para vender, ou de qualquer forma distribui ou entrega ao consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado em qualquer das seguintes condições: I – sem registro quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente; II – em desacordo com a fórmula constante do inciso anterior; III – sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; IV – com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; V – de procedência ignorada; VI – adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.

Além dos produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais, houve por bem o legislador fazer incluir no § 1º-A, do art. 273, mencionado, além dos medicamentos as matérias primas os insumos farmacêuticos e os cosméticos. Há quem se insurja contra a inclusão, nesse tipo penal, dos cosméticos e saneantes alegando ferir o princípio da proporcionalidade (v. Delmanto, Código Penal comentado, pág. 496). Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado ed. Revista dos Tribunais, 2002), com isso não concorda. Exagero houve foi na fixação da elevadíssima pena, que varia de 10 a 15 anos de reclusão. No mais, é preciso verificar que o cosmético, pela possibilidade que tem de entrar em contato direto com o organismo humano, tanto quanto o medicamento, pode possibilitar danos à saúde de igual monta, caso sejam adulterados ou falsificados. O mesmo se pode dizer dos saneantes que servem à higienização de muitos locais, tais como hospitais, clínicas e consultórios ligando-se diretamente à questão da saúde.


5.EM QUE CONSISTE O TRATAMENTO PENAL MAIS SEVERO CONFERIDO AOS CRIMES HEDIONDOS E AOS DELITOS A ELES EQUIPARADOS?

O próprio inciso XLIII do art. 5º da Constituição da República já se incumbiu de considerar os crimes hediondos, a prática da tortura, do tráfico de drogas e do terrorismo insuscetíveis de graça ou anistia. Sob o mesmo enfoque e fundamentos já apresentados, a Lei 8.072/90, em sua redação original, tratou de proibir, em seu art. 2º, a concessão de graça, anistia (aqui repetindo a norma constitucional), indulto, fiança, liberdade provisória e determinou que o condenado pelos crimes epigrafados cumprisse pena em regime integralmente fechado, ou seja, vedou o direito à progressão de regime.

Consiste a anistia na declaração, pelo Poder Público (através de lei editada pelo Congresso Nacional), de que determinados fatos se tornam impuníveis por motivo de utilidade social. Esta lei penal possui efeito retroativo, que retira as conseqüências de alguns crimes já praticados, promovendo o seu esquecimento jurídico [12]. O instituto da anistia volta-se a fatos e não a pessoas (Exemplo: Lei 6.683/79).

A graça é a clemência destinada a uma pessoa determinada, não dizendo respeito a fatos criminosos. Trata-se de um perdão concedido pelo Presidente da República dentro de sua avaliação discricionária [13].

Por sua vez, o indulto caracteriza-se por perdão que se concede ao condenado, seja para que se lhe diminua a pena ou para que se isente, totalmente, dela. O indulto pode ser parcial ou total, segundo o condenado se livra ou se isenta do cumprimento da pena imposta, por sua totalidade ou somente em parte. É a dispensa do castigo, é o perdão, simplesmente, que vem libertar o condenado do cumprimento parcial ou total da pena, que lhe havia sido imposta [14].

A fiança, consoante o art. 330, caput, do Código de Processo Penal, é a garantia efetiva, consistente em depósito de dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar, prestada pelo acusado ou terceiro em seu prol, objetivando defender-se em liberdade, nas hipóteses legais.

Vale acrescentar, no entanto, com Francisco de Assis Toledo, a ociosidade da previsão da não concessão de fiança a quem acusado por crime hediondo ou a ele equiparado. "É que, quase na totalidade, os delitos mencionados no art. 1º da Lei 8.072/90 possuem pena mínima superior a dois anos de reclusão ou são crimes que se cometem com emprego de violência ou grave ameaça à pessoa. Isso quer dizer que, no tocante a esses crimes, a prestação de fiança já estava expressamente vedada pelo Código de Processo Penal no art. 323, incisos I e V. A nova lei, nesse aspecto, choveu no molhado, o que revela uma injustificada desatenção do legislador para com a legislação vigente" ("Crimes Hediondos" em Fascículos de Ciências Penais, 5.º/66, n. 2) [15].

Em sua redação original, a Lei 8.072/90 vedava expressamente a concessão de liberdade provisória a quem fosse processado pela prática de terrorismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins e crime hediondo. Durante muito tempo assim se manifestou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [16]. Entendia-se que a simples vedação legal se constituía em óbice à concessão de tal benefício ao acusado por crime hediondo ou a ele equiparado.

Entretanto, embora dessa forma se manifestasse a jurisprudência do STF e do STJ, a doutrina já se posicionava no sentido da possibilidade da concessão de liberdade provisória a quem processado pela prática de crime hediondo. É nesse diapasão a correta lição do jurista Alberto Silva Franco. Segundo ele, a Constituição Federal de 1988 não se mostrou indiferente à questão da liberdade provisória. Ao contrário, interessou-se por ela, de modo particular. Antes de tudo, erigiu-a à condição de um dos direitos fundamentais da pessoa humana na medida em que estabeleceu, no inciso LVI do art. 5º da Magna Carta, que "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança" [17].

Sob esse prisma, o direito fundamental à liberdade provisória não pode, no entanto, ser analisado de modo isolado, fora de um contexto menos amplo, que se busca numa unidade de sentido que deve existir entre todos os direitos e garantias fundamentais, ou fora de um contexto menos amplo representado pela articulação de outros direitos fundamentais que integram numa estreita conexão (o princípio do devido processo legal e o princípio da presunção de inocência). Além disso, nenhuma interpretação, em nível constitucional, terá validade se não se levar em conta a regra do § 1º do art. 5º da CF, no sentido de que "as normas definidoras dos direitos fundamentais têm aplicação imediata".

Há, sem dúvida, uma unidade de significado a permear os direitos fundamentais incluídos na Constituição Federal. Um Estado Democrático de Direito define-se, substancialmente, pelo reconhecimento e pelo acatamento de certos valores básicos, dos quais se destaca, como sendo o mais fundamental, o da "dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III, da CR/88). Com inteiro acerto, Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais, 1983, p. 101) destacou que o princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, "está na base do estatuto jurídico dos indivíduos e confere unidade de sentido ao conjunto dos preceitos relativos aos direitos fundamentais. É evidente, assim, que a dignidade da pessoa humana funciona como suporte de todos os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República. Como, portanto, entender que a privação não necessária da liberdade individual não signifique uma pena precipitada e, por isso, uma ofensa à dignidade da pessoa humana atingida e a de todos aqueles que sofram o risco de serem também, indistinta e imotivadamente, alcançados pelo arbítrio? Quem ousaria negar que a proibição da liberdade provisória, a partir de determinados tipos, não constitua o rompimento da ordem que está subjacente e dá sentido ao conglomerado dos direitos fundamentais? Vedar-se o direito fundamental à liberdade provisória, quando a prisão é totalmente desnecessária, é, portanto, afronta flagrante ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A proibição em voga, de modo global ou em relação a determinados tipos de crime, mediante lei ordinária, traduz-se também numa lesão ao princípio do "due process of law" consagrado no inciso LIV do art. 5º da CF: "ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". A impossibilidade de concessão da liberdade provisória "equivale à privação de liberdade obrigatória infligida como pena antecipada, sem prévio e regular processo e julgamento. É uma espécie de bill of attainder (reconhecido como abusivo pela jurisprudência norte-americana), ou seja, um ato legislativo que implica considerar alguém culpado diretamente e destinado a infringir-lhe uma sanção sem processo ou decisão judicial. Os meios de coerção pessoal, supressivos da liberdade individual, estão estribados no princípio da necessidade e não podem, de modo algum, perder a sua conotação cautelar. As medidas de cautela não devem ser ordenadas ou mantidas, a não ser quando forem estritamente necessárias. Bem por isso, não pode o legislador substituir-se àquilo que tão-só pode incumbir ao juiz em face do caso concreto: a averiguação da necessidade ou desnecessidade da prisão.

Observa-se que tal entendimento preconizado inicialmente pela doutrina ganhou corpo na jurisprudência pátria [18], passando-se, então, a possibilitar a concessão da liberdade provisória a acusados por crimes hediondos caso a liberdade dos processados não pusesse em risco a ordem pública ou econômica, não viesse a atrapalhar a instrução criminal ou frustrar a aplicação da lei penal, elementos previstos no art. 312 do CPP. Fica, destarte, evidenciado que a simples vedação legal à possibilidade de concessão de liberdade provisória implicaria aplicação de pena precipitada, instituto incompatível com o sistema acusatório adotado por nossa Constituição da República de 1988.

Por fim, estabeleceu a Lei dos Crimes Hediondos, quando publicada em 25 de julho de 1990, em seu art. 2º, § 1º, que a pena por crime hediondo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo seria cumprida em regime integralmente fechado, ou seja, o réu condenado por qualquer um desses crimes iniciaria o cumprimento da pena em regime fechado e cumpriria essa pena neste regime do começo ao fim. Ele não teria direito á progressão de regime, do fechado para o semi-aberto e do semi-aberto para o aberto.

Entretanto, em 07 de abril de 1997, foi publicada a Lei 9.455, que estabeleceu os crimes de tortura. Esta lei, em seu art. 1º, § 7º, estranhamente, estabeleceu que o condenado por crime nela previsto iniciará o cumprimento de sua pena em regime fechado; ou seja, aquele condenado pela prática de tortura, um dos crimes mais graves inseridos no rol da lei 9.078/90, terá direito à progressão de regime, previsão que até então não existia àqueles condenados por tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e crime hediondo, como vimos.

Após a vigência da Lei 9.455/97, tendo em vista que resulta do texto constitucional que os delitos hediondos e os a eles equiparados devem merecer da legislação infraconstitucional tratamento isonômico, cogitou-se a hipótese de que a supracitada lei havia derrogado a Lei 8.072/90 no que tange à proibição da progressão de regime.

Tal entendimento foi exteriorizado pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em acórdão relatado pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, concedeu a progressão de regime ao condenado pela prática do tráfico ilícito de entorpecentes:

"A Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, específica para o crime de tortura, determina no art. 1º, § 7º: "O condenado por crime previsto nesta lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado".

A disciplina anterior (Lei nº 8.072/90) – pena cumprida integralmente em regime fechado – foi substituída: a sanção passou a ser resgatada "inicialmente" no regime fechado. Em outras palavras, ajustou-se ao sistema progressivo do Código Penal.

A lei mais recente, comparada com a Lei dos Crimes Hediondos, mostra-se mais favorável. A lei mais benéfica, por imperativo constitucional e do Código Penal, aplica-se incondicionalmente.

Insista-se: os crimes relacionados na Constituição e na Lei n.º 8.072/90 receberam o mesmo tratamento. Estatuíram os mencionados textos disciplina unitária. Insista-se por imperativo da Carta Política.

A lei alterando a matéria, embora literalmente restrita a uma parte, repercute no todo. Vale dizer, o disposto no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90 foi afetado por lei posterior, ensejando o cumprimento da pena, por etapas, ou seja, somente no início no regime fechado". (Rec. Esp. nº 140.617-GO, julgado em 12/09/1997).

No entanto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 69.657, aceitou a possibilidade de concessão de progressão de regime a condenado por crime hediondo ou a ele equiparado que não o da tortura [19].

Dada a polêmica e discrepância jurisprudencial, o STF editou a Súmula 698:

Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura.

Com a edição da súmula, a jurisprudência, com pequenos sobressaltos, quase que se estabilizou, não fosse a propositura da ADI junto ao Supremo Tribunal Federal com vistas a declarar, com efeito erga omnes, a inconstitucionalidade do § 1º, do art. 2º da Lei 8.072/90.

Porém, o Pleno do STF, em 23 de fevereiro de 2006, sob a presidência do Ministro Nelson Jobim, por maioria, declarou incidenter tantum, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, através do julgamento do Habeas Corpus nº 82.959/SP [20], nos termos do voto do relator, Ministro Marco Aurélio, vencidos os ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Nelson Jobim.

A decisão plenária afastou o óbice à progressão de regime aos condenados por tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. O tribunal também explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade da referida norma não acarretaria conseqüências com relação às penas já extintas na data do julgamento do HC supracitado.

Na precisa lição dos constitucionalistas portugueses J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,

"a inconstitucionalidade consiste na violação do disposto na Constituição ou dos princípios nela consignados. Daqui se deduz que são geradores de inconstitucionalidade, não apenas a violação das normas-disposição (sejam imediatamente preceptivas, sejam programáticas), mas também a violação aos princípios constitucionais, sejam eles expressos (normas-princípio), sejam eles apenas implícitos (na medida em que sejam admissíveis). [21]"

Portanto, foi declarado inconstitucional o § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, porque, ao proibir que os condenados por crimes hediondos ou a eles equiparados progredissem de regime no cumprimento de suas penas, colidia tal dispositivo legal com vários princípios constitucionais, em especial o princípio da isonomia, da individualização da pena, inserto no inc. XLVI do art. 5º da Constituição e da dignidade da pessoa humana.

A pena, no contexto do Estado Democrático de Direito se propõe a três funções básicas e a ela inerentes, quais sejam, a repressão, a prevenção e a ressocialização. O legislador ao prever determinada sanção ao cometimento de uma infração penal pretende com isso punir o infrator, impor a ele um castigo pela transgressão da norma, haja vista que atentou, por via reflexa a toda segurança jurídica da coletividade. Com essa punição, visa-se inibir condutas outras quem venham lesar a referida norma, porque aquele que assim agiu sofrera um castigo. Por fim, é preciso, na imposição da pena, no curso do processo sancionador, fazer com que o infrator se regenere do erro cometido perante a sociedade e perante si mesmo.

Quando se fala nos fins, objetivos ou funções da pena, pensa-se nas interferências que o criminoso causará depois do crime. Há de ser considera a relação entre o criminoso, sua pena e a sociedade. Por isso, a missão do critério penal é defender a sociedade, ao proteger bens ou interesses jurídicos relevantes, garantindo a segurança jurídica, confirmando a validade das normas.

Nesse diapasão, segundo o Professor Nilo Batista, a pena apenas retribuirá (mediante a privação de bens jurídicos imposta ao criminoso, seja a liberdade, seja o financeiro etc.) o mal do crime com seu próprio mal, restaurando assim a justiça – função repressiva –, ou em intimidará a todos (pela ameaça de sua cominação e pela execução exemplar) para que não se cometam mais crimes – função preventiva –, ou tratará de conter e tratar o criminoso – função ressocializadora [22].

Com a promulgação da Constituição da República de 1988, há a necessidade de conferir-se relevância oportuna à função ressocializadora da pena. A jurisprudência e a doutrina são uníssonas em afirmar que o sentido de toda pena é a recuperação do condenado, de modo que, ao final, possa normalmente voltar à sociedade e a ela se reintegrar como cidadão capaz de cumprir deveres e usufruir direitos. Sob esse prisma, essa função seria mais eficaz no combate às transgressões normativas do que as próprias funções repressiva e preventiva, porque age na raiz do problema.

Logo, o cumprimento da pena deve ter um caráter dinâmico, tendo em vista os objetivos da execução penal. A vedação da progressão de regime esposada pela Lei 8.072/90 se fez muito bem em consonância às funções da repressão e prevenção do crime, entretanto, aniquilou o objetivo ressocializador.

Impedir a progressão, ou seja, que o condenado, por etapas, consoante requisitos objetivos e subjetivos, se aproxime da sociedade, onde voltará a conviver, contraria o comando do Texto Fundamental, vez que o princípio da individualização da pena determina que a execução deve atender às particularidades do crime e do condenado. Por isso, a existência de parâmetros abstratos para aferição de uma pena concreta (pena: de 12 a 30 anos de reclusa).

O regime integralmente fechado, sem direito à progressão, configura castigo típico dos sistemas inquisitivos, inadmissível a qualquer Estado de Direito, além de ferir o princípio da individualização da pena, que por sua natureza constitucional, não pode ser afrontado por simples lei ordinária, ferindo também o princípio da hierarquia das normas.

Desta feita, individualizar a pena consiste em aplicar uma sanção em consonância com o fato e com a pessoa que o praticou. É personificar a pena, impô-la em função do indivíduo, da pessoa que comete o delito e dos resultados sociais por ele causados. Portanto, se há uma regra que estabelece o cumprimento de pena em regime integralmente fechado, não se considerando a pessoa do criminoso e nem as circunstâncias do delito, desaparece o sentido da individualização.

Nas palavras do eminente relator do HC 82.959, Ministro Marco Aurélio

"A progressividade do regime está umbilicalmente ligada à própria pena, no que, acenando ao condenado com dias melhores, incentiva-o à correção de rumo e, portanto, a empreender um comportamento penitenciário voltado á ordem, ao mérito e a uma futura inserção social. (...)

Diz-se que a pena é individualizada porque o Estado-Juiz, ao fixá-la, está compelido, por norma cogente, a observar as circunstâncias judiciais, ou seja, os fatos objetivos e subjetivos que se fizeram presentes à época do procedimento criminalmente condenável. Ela o é não em relação ao crime considerado abstratamente, ou seja, ao tipo definido em lei, mas por força das circunstâncias reinantes à época da prática. Daí cogitar o artigo 59 do Código Penal que o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, não só as penas aplicáveis dentre as cominadas (inciso I), como também o quantitativo (inciso II), o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade – e, portanto, provisório, já que passível de modificação até mesmo para adotar-se regime mais rigoroso (inciso III) – e a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível."

Embora dotada de extremada técnica, proferida com a esperada observância dos cânones constitucionais vigentes, a decisão do STF foi alvo de duras críticas. Afastada a vedação à concessão de progressão de regime, o dispositivo que passou a regular a execução da pena por condenados a crimes hediondos ou a eles equiparados foi o art. 112 da Lei de Execuções Penais [23]. Assim, cumpridos um sexto da pena interposta pela prática de crime hediondo, terrorismo, tortura ou tráfico de drogas, o condenado, preenchidos os requisitos subjetivos, tinha o direito a progredir de regime.

A partir do precedente do STF (HC 82.959), ainda que a priori tenha reconhecido a inconstitucionalidade da vedação da progressão de regime pelo controle difuso, com efeito, portanto, inter partes, STJ e Tribunais Estaduais passaram também a decidir pela possibilidade da progressão de regime, face à inconstitucionalidade da referida norma.

As decisões causaram polêmica por tratar de forma isonômica os condenados por crimes hediondos ou a eles equiparados a todos os demais. O necessário objetivo da Lei 8.072/90, de impor tratamento penal mais severo à prática desses crimes, foi mitigado. A observância do critério ressocializador da pena fez reduzir a incidência de suas funções repressiva e preventiva, fato, em tese, melhorado com o advento da Lei 11.464/07 que alterou a redação do art. 2º da Lei 8.072/90, sobretudo seus parágrafos, dispondo que "a pena por crime hediondo ou a ele equiparado será cumprida no regime inicialmente fechado e a progressão de regime, dar-se-á após o cumprimento de dois quintos da pena (se o apenado for primário) ou três quintos, se reincidente".

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Sobre o autor
Paulo Junio Pereira Vaz

Bacharel em Direito pela FADOM. Pós-graduado pela Universidade Gama Filho/RJ em Direito Público Material. Professor dos cursos de Direito e Sistemas de Informação da Faculdade Pitágoras Unidade Divinópolis/MG. Advogado Criminalista inscrito na OAB/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VAZ, Paulo Junio Pereira. Lei dos crimes hediondos e suas recentes alterações.: Aspectos polêmicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1585, 3 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10574. Acesso em: 19 abr. 2024.

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