5. Distinção entre contrato de adesão e condições gerais dos contratos
Como temos salientado, a relação existente entre condições gerais e contrato de adesão é, respectivamente, de conteúdo e continente, de matéria e instrumento de eficácia. O contrato de adesão é instrumento que concretiza os efeitos das condições gerais. Por ser o contrato de adesão o instrumento de eficácia das condições gerais, tende-se a reduzir as duas categorias a uma expressão fenomênica indefinida de escassa utilidade para a construção de um regime próprio.
O contrato de adesão não contém apenas condições gerais. Pode haver cláusulas negociadas ponto por ponto e outras partes que componham a declaração comum dos contratantes. As partes preenchidas em contrato impresso e padronizado são particulares, em princípio, e preferem às condições gerais. No contrato de adesão há um espaço, por menor que escapa à predisposição, ficando sob regime comum do negócio jurídico. Os elementos de existência, os requisitos de validade, os fatores de eficácia do contrato de adesão são os mesmos do negócio jurídico13. Por conseguinte, fica um espaço mais ou menos estreito, no qual cabem tratativas entre os contraentes, se bem que frequentemente se destine somente à determinação de dados pessoais, identificação do objeto, preço e situações particulares. Na dúvida quanto à efetiva e paritária negociação, contudo, prevalece a interperetação contra stipulatorem.
Necessário se torna que precisemos o significado de adesão em se tratando de condições gerais. É comum falar-se em contratante aderente, para significar a parte que não predispõe as condições gerais. Adesão, em nosso léxico, significa assentimento, aprovação, concordância. Em direito indica quase sempre forma anômala de aceitação. Aderir a um contrato ou a uma convenção implica a preexistência do ato ou negócio jurídico. Mas o contrato de adesão só passa a existir com a declaração comum das partes contratantes. Antes da conclusão (oferta mais aceitação) não há contrato; há, tão-somente, condições gerais dos contratos.
Não se pode, por conseqüência, falar em adesão ao juridicamente inexistente (contrato). Não se pode falar em adesão de contratante a condições gerais porque elas se aplicam independentemente de consentimento. O que adere – liga, une, cola – às condições gerais é o contrato individual quando se conclui (dito contrato de adesão). É o contrato que adere e não o contratante, pois sua adesão é irrelevante. O contrato de adesão não é geral, mas particular. Gerais são as condições predispostas às quais adere necessariamente.
O Código Civil italiano (art. 1.332) distingue o que denomina adesão a contrato (adesione de altri parti al contratto), relativamente à adesão de terceiro a contrato já concluído, das condições gerais dos contratos (art. 1.341), que são predispostas por um contraente antes da conclusão dos contratos. Apenas na primeira hipótese cogita-se rigorosamente de aderente. Só por antonomásia e rendição ao uso lingüístico admitimos qualificar de aderente o contratante não predisponente.
No atual estágio da ciência jurídica, o contrato de adesão pode ser assim concebido: o contrato que, ao ser concluído, adere a condições gerais predispostas por uma das partes, que passam a produzir efeitos independentemente de aceitação da outra. Ou simplesmente: o contrato que adere a condições gerais.
O Código de Defesa do Consumidor incorre no mesmo erro ao confundir contrato de adesão com as condições gerais. O art. 54. estabelece que o contrato de adesão é aquele cujas cláusulas “tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”. O que pode ser objeto de aprovação prévia da autoridade ou de predisposição unilateral são as condições gerais, jamais as cláusulas, porque algumas são negociadas, constituindo declaração comum das partes. O conceito é mais apropriado para as condições gerais.
6. O contrato de adesão no ambiente da américa latina
Sob evidente influência do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, as condições gerais dos contratos restaram subsumidas no conceito de contrato de adesão, nas legislações da América Latina, voltadas ao direito do consumidor. A lei argentina de defesa do consumidor, de 1993, em seu art. 38, refere a contrato de adesão “ou similar”, além de “cláusulas uniformes, gerais ou estandardizadas dos contratos feitos em formulários”, além de o art. 39. referir a “contrato tipo”, quando em todas as hipóteses quer tratar de condições gerais dos contratos. A lei da Venezuela de proteção ao consumidor e ao usuário, de 1995, reproduz fielmente o art. 54. do CDC brasileiro, ao conceituar o contrato de adesão. O mesmo ocorre com a lei do Paraguai de defesa do consumidor e do usuário, de 1998, art. 4º, e a lei de relações de consumo do Uruguai, de 1999, em seu art. 28.
A exceção é o Código Civil do Peru, de 1984. Este Código define o que sejam condições gerais, diferenciando-as do contrato de adesão. As condições aprovadas pela autoridade administrativa integram-se automaticamente aos contratos individuais, cabendo ao Poder Executivo definir os tipos de fornecimento de bens ou de serviços que ficam sujeitos a aprovação prévia. Porém, as partes podem convencionar expressamente que não se integrem ao contrato certas condições aprovadas pela autoridade. Não diz o Código como se deve dar a convenção em contrário. As condições gerais aprovadas pela autoridade obrigam o aderente que consumiu o bem ou utilizou o serviço, ainda quando não tenha formalizado o contrato ou seja incapaz, sendo irrelevante o consentimento. No caso de condições gerais não aprovadas, a eficácia depende de o aderente ter podido conhecê-las. A lei peruana de proteção consumidor, de 1991, com as modificações ulteriores, não trata de contrato de adesão, convivendo com as normas do Código Civil acerca das condições gerais.
7. As condições gerais nos planos do mundo do direito
Seguindo a lição de Pontes De Miranda14, dividimos o mundo do direito três planos: existência, validade e eficácia.
Nem todos os fatos jurídicos (isto é, os fatos ou conjunto de fatos cuja hipótese normativa se concretizou, recebendo a incidência da norma jurídica que a previu) necessitam percorrer os três planos para que possam produzir efeitos jurídicos (eficácia jurídica distinta da eficácia da norma jurídica). Apenas os atos jurídicos (fatos jurídicos voluntários) têm de ser válidos (não-nulos, não-anuláveis).
O ato de predispor condições gerais é ato jurídico em sentido amplo: o predisponente edita-as voluntária e unilateralmente. Não pode ser considerado ato destituído de juridicidade, como pareceu aos primeiros tratadistas da matéria. Quando o predisponente divulga entre seus agentes e destes para os possíveis interessados as condições gerais, estas passam a existir juridicamente, podendo inclusive ser objeto de controle preventivo judicial, principalmente mediante ação civil pública.
Válidas são as condições gerais que não forem consideradas nulas, por implicarem renúncia a direito, ou por violarem a função social do contrato ou a boa-fé, segundo o sistema do Código Civil (no âmbito do direito do consumidor, abusivas).
A eficácia jurídica das condições gerais dá-se concretamente com sua integração ao contrato individual (dito contrato de adesão), quando este é concluído. A eficácia se consuma pela adesão necessária e automática do contrato individual às condições gerais, que sejam consideradas válidas. As condições gerais podem existir, ser válidas e nunca produzir efeitos se qualquer contrato de adesão vier a ser concluído. A eficácia jurídica é, também, dependente da plena realização do dever de informar imputável ao predisponente. Cumpre-se o dever de informar quando a informação recebida pelo aderente preenche os requisitos de adequação, suficiência e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles importa descumprimento do dever de informar.
8.Conclusão: as condições gerais devem ser regidas pelo Código Civil?
Nas três décadas que antecederam o Código Civil de 2002, correspondentes à sua lenta tramitação legislativa, as legislações relativas às condições gerais dos contratos tenderam a ser especiais, exclusivamente ou por inserção nas leis de proteção ao consumidor, passando ao largo das codificações civis. Assim ocorreu com a lei americana das garantias para os consumidores (Warranty Act), de 1972, com a lei alemã das condições gerais, de 1976 (AGB-Gesetz), com a lei inglesa das cláusulas contratuais abusivas (unfair), de 1977, com a legislação francesa sobre cláusulas abusivas, de 1978, com a lei israelita sobre contratos padronizados (standard contracts), de 1982, com a lei portuguesa sobre condições gerais dos contratos (cláusulas gerais contratuais), de 1985, com o código do consumidor brasileiro, de 1990, e, como vimos, as ulteriores legislações latino-americanas de defesa do consumidor.
Alguns países optaram por leis próprias de condições gerais dos contratos, com destaque para as leis referidas de Alemanha e Portugal, distanciando-se tanto dos códigos civis quanto da legislação do consumidor, porque abordaram a dupla dimensão com que elas se revelam, a saber, as praticadas entre fornecedor e consumidor e as destinadas a aderentes não consumidores, notadamente empresas. Na segundo dimensão, considerando que as empresas são presumivelmente dotadas de mais informação que os consumidores, essas leis específicas atenuaram o grau de proteção, especialmente pela enunciação de listas distintas de cláusulas abusivas.
Até pareceu que a experiência inovadora do Código Civil italiano, de 1942, ao enfrentar expressamente a regulamentação básica das condições gerais dos contratos não tinha produzido frutos alhures. Dois principais fatores contribuíram para esse distanciamento da codificação civil: a) a convicção, largamente difundida nas últimas décadas do século XX, da superação da função prestante das grandes codificações, ante a força dinâmica dos microssistemas jurídicos, multidisciplinares por excelência, ao concentrarem não apenas a matéria civil mas as matérias conexas de direito processual, direito penal, direito administrativo, cujo exemplo frisante é a legislação do consumidor; b) a difícil compatibilidade do regime das condições gerais do contrato com o paradigma contratual adotado nos códigos civis, fundado na igualdade formal e no consentimento livre dos contratantes na oferta e na aceitação.
Nos últimos anos, todavia, observou-se inesperado retorno aos Códigos Civis, com atração de matérias que se tinham aninhado em microssistemas, inclusive as relativas às condições gerais dos contratos. O exemplo mais impressionante é o do Código Civil alemão, modificado pela lei de modernização do direito das obrigações, que entrou em vigor em lº de janeiro de 2002, considerada a mais profunda reforma do BGB desde seu advento em 1º de janeiro de 1900. O pretexto foi a necessidade de incorporação ao direito interno das diretivas européias tutelares dos contratantes vulneráveis, especialmente os contratantes consumidores, como se lê na redação atual e minuciosa dos arts. 305. a 310. A nova redação do art. 305. considera condições gerais dos contratos as que forem pré-estabelecidas para uma pluralidade de contratos que uma parte [predisponente] apresenta à outra parte para conclusão do contrato, sendo irrelevante que elas apareçam separadamente ou sejam introduzidas no instrumento contratual, com exceção das cláusulas que forem individualmente negociadas entre referidas partes. A integração ao contrato individual depende do efetivo cumprimento do dever de informar e de se ter assegurada a possibilidade de conhecimento de seu conteúdo ao aderente.
Respondendo às perguntas que introduzimos neste estudo, entendemos que as condições gerais dos contratos ultrapassam os amplos limites do direito do consumidor, porque nem todos os aderentes são consumidores. Veja-se, na hipótese de franchising, o que ocorre com a ampla rede de contratos submetidos a condições gerais predispostas pelo franqueador a todos seus franqueados (os aderentes). Nesta e em tantas outras hipóteses, o aderente dificilmente consegue enquadrar-se como consumidor, porque o direito brasileiro não inclui nesta tutela específica os consumidores intermediários, salvo se comprovarem que ficaram expostos a práticas comerciais abusivas (art. 29. do CDC). Por tal razão, se as condições gerais dos contratos não podem ser inteiramente regulamentadas pela legislação do consumidor, e, não sendo objeto conjuntamente de lei própria, necessitam que sejam disciplinadas, nos seus aspectos gerais de direito material, nomeadamente quanto aos elementos de existência, os requisitos de validade e os fatores de eficácia, no Código Civil. Para tanto, a exemplo do novo Código Civil alemão e do que já dispunha o Código Civil italiano15, exige-se que sejam referidas diretamente e não confundidas com o contrato de adesão, como faz, de modo inadequado e insuficiente, o Código Civil brasileiro.
Muito o direito civil terá a ganhar, inclusive para aplicação concreta, se se obtiver a interlocução adequada da teoria geral do contrato com a teoria geral das condições gerais dos contratos, e sua compatibilidade normativa no mesmo espaço legal, além do fecundo diálogo com o microssistema do direito do consumidor, cujos avanços enriqueceram o sistema jurídico brasileiro das obrigações, nomeadamente quanto à tutela do contratante vulnerável16.
Notas
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H. HONDIUS (Il controllo sulle condizioni generali nel diritto olandese, in Le condizioni generali di contratto, Milano: Giuffrè, 1979, t. 1, passim) sustenta que a primeira lei a disciplinar as condições gerais dos contratos foi a lei polonesa sobre obrigações, de 1933, seguida do Código Civil italiano de 1942. No após guerra, algumas nações africanas adotaram Códigos Civis contendo disposições relativas a condições gerais: Egito, Etiópia, Líbia.
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Cf. LÔBO, Paulo, Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 24.
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Cf. SALEILLES, Raymond, De la declaration de volonté, Paris: F. Pchon-Successeur, 1901, p. 229.
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Cf. SCHWAB, Dieter, Validade e controle das “condições gerais dos negócios”, Ajuris, Porto Alegre, n. 41, nov. 1987, p. 8.
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GOMES, Orlando, Contrato de adesão: condições gerais dos contratos, São Paulo: Revista dos Tribunais: 1972.
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Para BARCELLONA, Pietro (Sui controlli della libertà contrattualli, Rivista di diritto civile, Padova, 1965 (parte seconda), p. 581), “é objetivo do Estado remover os obstáculos de ordem econômica e social que limitam ou reduzem de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos e, falando-se de liberdade contratual, não é possível prescindir-se da consideração da posição econômica das partes contratantes e da possível influência destas sobre o conteúdo da estipulação”.
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Cf. reale, Miguel, O projeto do Código Civil, São Paulo: Saraiva, 1986, 47.
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Cf. LÔBO, Paulo, Princípios contratuais, in A Teoria do contrato e o novo Código Civil, LÔBO, Paulo, et. al. (Coord.), Recife: Nossa Livraria, 2003, p. 9-24.
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Op. cit. p. 10.
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Para Menezes Cordeiro (Da boa-fé no direito civi l, Coimbra: Almedina, 1997, p. 1.234) a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela.
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Cf. MENGONI, Luigi, Spunti per una teoria delle clausule generali, in Il principio de buena fede, Milano: Giuffrè, 1987, p. 10.
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Essa engenhosa especificação (elementos, requisitos e fatores) abandona a clássica e corrente distinção entre elementos essenciais, naturais e acidentais dos negócios jurídicos. Deve-se a Antônio Junqueira AZEVEDO (Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, São Paulo: Saraiva, 1974) que as relaciona aos planos da existência, validade e eficácia.
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Tratado de direito privado, vol. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974.
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O Códice del Consumo italiano, de 2005, manteve a normativa sobre as condições gerais dos contratos no Código Civil, conforme redação que deu ao art. 1.469-Bis deste, as quais se aplicam aos contratos de consumo, no que sejam mais favoráveis ao consumidor.
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A difusão mundial do direito do consumidor, principalmente a partir da última década do Século XX, não tem repercutido na preferência pela codificação própria, optando-se por leis gerais e especiais. O Brasil foi o primeiro país a adotá-la, em 1991. Na Europa foram editados os Códigos da França de 1993 e o da Itália de 2005. Portugal deu a conhecer, em 2006, seu anteprojeto do Código do Consumidor. A Alemanha optou por incorporá-lo no Código Civil.