Sumário: 1. Princípios jurídicos e o direito de família. 2. Princípio da dignidade da pessoa humana na família. 3. Princípio da solidariedade familiar. 4. Princípio da igualdade familiar. 5. Princípio da liberdade familiar (e da responsabilidade). 6. Princípio da afetividade familiar. 7. Princípio da convivência familiar. 8. Princípio do melhor interesse da criança.
1. Princípios jurídicos e o Direito de Família
Perfilhamos o entendimento de que as normas constitucionais, incluindo os princípios explícitos e implícitos, têm força normativa própria, conformando a interpretação e aplicação das normas infraconstitucionais.
O princípio indica suporte fático hipotético necessariamente indeterminado e aberto, dependendo a incidência dele da mediação concretizadora do intérprete, por sua vez orientado pela regra instrumental da equidade, entendida segunda formulação grega clássica, sempre atual, de justiça do caso concreto. Tome-se o exemplo do princípio da dignidade da pessoa humana, referido expressamente no § 7º do art. 226. da Constituição: o casal é livre para escolher seu planejamento familiar, mas deve fazê-lo em obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana, cuja observância confirmará o intérprete apenas em cada situação concreta, de acordo com a equidade, que leva em conta a proporcionalidade com a situação fática.
No exemplo citado, um princípio constitucional (a dignidade) está a limitar e a conformar outro princípio constitucional (a liberdade de escolha). Todavia, quase sempre os princípios são dotados de mesma força normativa, sem qualquer hierarquia entre eles. Quando um entra em colisão com outro (e.g: dignidade de uma pessoa versus integridade física de outra), para que um seja prevalecente, resolvendo-se a aparente antinomia, o caso concreto é que indicará a solução, mediante a utilização pelo intérprete do instrumento hermenêutico da proporcionalidade2.
Os princípios não oferecem solução única (tudo ou nada). Sua força radica nessa aparente fragilidade, pois, sem mudança ou revogação de normas jurídicas, permitem adaptação do direito à evolução dos valores da sociedade. Com efeito, o mesmo princípio, observando-se o catálogo das decisões nos casos concretos, em cada momento histórico, vai tendo seu conteúdo amoldado, em permanente processo de adaptação e transformação. A estabilidade jurídica não sai comprometida, uma vez que esse processo de adaptação contínua evita a obsolescência tão frequente das demais normas jurídicas, ante o advento de novos valores sociais.
Os princípios constitucionais são expressos ou implícitos. Estes últimos podem derivar da interpretação do sistema constitucional adotado ou podem brotar da interpretação harmonizadora de normas constitucionais específicas (por exemplo, o princípio da afetividade). No Capítulo VII do Título VIII da Constituição há ambas as espécies, particularmente pela especificação dos princípios mais gerais às peculiaridades das relações de família.
O tradicional princípio da monogamia, de origem canônica e que vicejou no mundo ocidental, perdeu a qualidade de princípio geral ou comum, em virtude do fim da exclusividade da família matrimonial. Persiste como princípio específico, aplicável à entidade familiar constituída pelo casamento.
Em virtude das transformações ocorridas e que estão a ocorrer no direito de família, alguns princípios emergem do sistema jurídico brasileiro e que poderiam desfrutar de autonomia, como o princípio do pluralismo de entidades familiares, adotado pela Constituição de 1988, pois elas são titulares de mesma proteção legal. O pluralismo das entidades familiares qualifica-se como diretriz constitucional (ou metanorma), que se concretiza em princípios constitucionais gerais aplicáveis ao direito de família, a saber, o princípio da igualdade e o princípio da liberdade, pois as entidades são juridicamente iguais, ainda que diferentes, e as pessoas são livres para constituí-las.
O planejamento familiar (CF/1988, art. 226, § 7º) diz respeito à liberdade de compor a filiação biológica ou não biológica, podendo a pessoa ou o casal determinar ou estimar o número de filhos, ou decidir não ter filhos, sem interferência da sociedade ou do Estado, diferentemente do que ocorreu nalguns países, preocupados com a explosão demográfica. É, portanto, princípio derivado do princípio geral da liberdade nas relações de família, ou subprincípio deste.
Outra diretriz constitucional é a da intervenção estatal mínima nas relações familiares, em face do prevalecimento da autodeterminação das pessoas nessas relações, que parte da doutrina considera princípio jurídico específico. Sua natureza, todavia, é de postulado, diretriz, metanorma ou critério de interpretação e aplicação dos princípios jurídicos e de outras normas jurídicas, não se confundindo com estes.
Para efeito didático, os princípios jurídicos aplicáveis ao direito de família e a todas as entidades familiares podem ser assim agrupados: I – princípio da dignidade da pessoa humana na família; II – princípio da solidariedade familiar; III – princípio da igualdade familiar; IV – princípio da liberdade familiar (que pressupõe a responsabilidade familiar); V – princípio da afetividade; familiar; VI - convivência familiar; VII – princípio do melhor interesse da criança.
2. Princípio da dignidade da pessoa humana na família
A dignidade da pessoa humana é o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade, inclusive no ambiente familiar. Assim, viola o princípio da dignidade da pessoa humana todo ato, conduta ou atitude que coisifique a pessoa, ou seja, que a equipare a uma coisa disponível, ou a um objeto.
Seguimos Habermas, para quem deve ser feita distinção entre a dignidade da vida humana e a dignidade da pessoa humana, esta garantida juridicamente a toda pessoa. As manipulações genéticas impulsionaram essa distinção, pois o embrião não é pessoa, mas goza da dignidade da vida humana. “Somente a partir do momento em que a simbiose com a mãe é rompida é que a criança entra num mundo de pessoas, que vão ao seu encontro, que lhe dirigem a palavra e podem conversar com ela”3.
A doutrina destaca o caráter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana, sublinhando a existência de um dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos4. Nessa dimensão, encontra-se a família, como o espaço comunitário por excelência para realização de uma existência digna e da vida em comunhão com as outras pessoas.
Na família patriarcal, a cidadania plena concentrava-as na pessoa do chefe, dotado de direitos que eram negados aos demais membros, a mulher e os filhos, cuja dignidade humana não podia ser a mesma. O espaço privado familiar estava vedado à intervenção pública, tolerando-se a subjugação e os abusos contra os mais fracos. No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público é matrizado exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar, ainda tão duramente violada na realidade social, máxime com relação às crianças. Concretizar esse princípio é um desafio imenso, ante a cultura secular e resistente. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa viragem, configurando seu específico bill of rigths, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”, além de colocá-la “à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. É uma espetacular mudança de paradigmas.
Na perspectiva tradicional, a família era concebida como totalidade na qual se dissolviam as pessoas que a integravam, especialmente os desiguais, como a mulher e os filhos. Desde a colonização portuguesa, a família brasileira, estruturada sob o modelo de submissão ao poder marital e ao poder paterno de seu chefe, não era o âmbito adequado de concretização da dignidade das pessoas. Somente nas últimas décadas do século XX, nomeadamente com o advento do Estatuto da Mulher Casada de 1962, da Lei do Divórcio de 1977 e da Constituição de 1988, houve um giro substancial, no sentido de emancipação e revelação dos valores pessoais. Atualmente, a família converteu-se em locus de realização existencial de cada um de seus membros e de espaço preferencial de afirmação de suas dignidades. Dessa forma, os valores coletivos da família e os pessoais de cada membro devem buscar permanentemente o equilíbrio, “em clima de felicidade, amor e compreensão”5. Consumaram-se na ordem jurídica as condições e possibilidades para que as pessoas, no âmbito das relações familiares, realizem e respeitem reciprocamente suas dignidades como pais, filhos, cônjuges, companheiros, parentes, crianças, idosos, ainda que a dura realidade da vida nem sempre corresponda a esse desiderato.
A Constituição proclama como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito e da ordem jurídica “a dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III). No Capítulo destinado à família, o princípio fundamenta as normas que cristalizaram a emancipação de seus membros, ficando explicitados em algumas (art. 226, § 7º; art. 227, caput; art. 230). A família, tutelada pela Constituição, está funcionalizada ao desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que a integram. A entidade familiar não é tutelada para si, senão como instrumento de realização existencial de seus membros.
A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990 declara que a criança deve ser preparada individualmente para uma vida individual em sociedade, respeitada sua dignidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 tem por fim assegurar “todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” dessas pessoas em desenvolvimento (art. 3º) e a absoluta prioridade dos direitos referentes às suas dignidades (arts. 4º, 15 e 18). O Código Civil de 2002, cuja redação originária antecedeu a Constituição, não faz qualquer alusão expressa ao princípio; todavia, por força da primazia constitucional, este como os demais princípios determinam o sentido fundamental das normas infraconstitucionais. No sistema jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana está indissoluvelmente ligado ao princípio da solidariedade.
3. Princípio da solidariedade familiar
O pathos da sociedade de hoje, comprovado em geral por uma análise mais detida das tendências dominantes da legislação e da aplicação do direito, é o da solidariedade; ou seja, da responsabilidade, não apenas dos poderes públicos, mas também da sociedade e de cada um dos seus membros individuais, pela existência social de cada um dos outros membros da sociedade6.
O princípio jurídico da solidariedade resulta da superação do individualismo jurídico, que por sua vez é a superação do modo de pensar e viver a sociedade a partir do predomínio dos interesses individuais, que marcou os primeiros séculos da modernidade, com reflexos até a atualidade. Na evolução dos direitos humanos, aos direitos individuais vieram concorrer os direitos sociais, nos quais se enquadra o direito de família, e os direitos econômicos. No mundo antigo, o indivíduo era concebido apenas como parte do todo social; daí ser impensável a idéia de direito subjetivo. No mundo moderno liberal, o indivíduo era o centro de emanação e destinação do direito; daí ter o direito subjetivo assumido a centralidade jurídica. No mundo contemporâneo, busca-se o equilíbrio entre os espaços privados e públicos e a interação necessária entre os sujeitos, despontando a solidariedade como elemento conformador dos direitos subjetivos.
A regra matriz do princípio da solidariedade é o inciso I do art. 3º da Constituição. No Capítulo destinado à família, o princípio é revelado incisivamente no dever imposto à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro) de proteção ao grupo familiar (art. 226), à criança e ao adolescente (art. 227) e às pessoas idosas (art. 230). A solidariedade, no direito brasileiro, apenas após a Constituição de 1988 inscreveu-se como princípio jurídico; antes, era concebida como dever moral, ou expressão de piedade. Para Paulo Bonavides7, o princípio da solidariedade serve como oxigênio da Constituição – não apenas dela, dizemos, pois, a partir dela se espraia por todo ordenamento jurídico -, conferindo unidade de sentido e auferindo a valoração da ordem normativa constitucional.
Apenas havia, no direito privado, o conceito de solidariedade – vindo do Corpus Juris Civilis e inteiramente distinto do ora empregado - subsumido à espécie de obrigação, quando um dos credores pode receber do devedor a totalidade da dívida (solidariedade ativa), ou quando um dos devedores pode ser obrigado a pagar a dívida integralmente (solidariedade passiva), o que significa individualização do crédito ou do débito plurais.
A solidariedade do núcleo familiar deve entender-se como solidariedade recíproca dos cônjuges e companheiros, principalmente quanto à assistência moral e material, e reciprocamente entre pais e filhos. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança inclui a solidariedade entre os princípios a serem observados, o que se reproduz no ECA (art. 4º).
No Código Civil, podemos destacar algumas normas fortemente perpassadas pelo princípio da solidariedade familiar: o art. 1.513. do Código Civil tutela “a comunhão de vida instituída pela família”, somente possível na cooperação entre seus membros; a adoção (art. 1.618) brota não do dever, mas do sentimento de solidariedade; o poder familiar (art. 1.630) é menos “poder” dos pais e mais múnus ou serviço que deve ser exercido no interesse dos filhos; a colaboração dos cônjuges na direção da família (art. 1.567) e a mútua assistência moral e material entre eles (art. 1.566) e entre companheiros (art. 1.724) são deveres hauridos da solidariedade; os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos para o sustento da família (art. 1.568); o regime matrimonial de bens legal e o regime legal de bens da união estável é o da comunhão dos adquiridos após o início da união (comunhão parcial), sem necessidade de se provar a participação do outro cônjuge ou companheiro na aquisição (arts. 1.640. e 1.725); o dever de prestar alimentos (art. 1.694) a parentes, cônjuge ou companheiro, que pode ser transmitido aos herdeiros no limite dos bens que receberem (art. 1.700), e que protege até mesmo o culpado (§ 2° do art. 1.694. e art. 1.704), além de ser irrenunciável (art. 1.707) decorre da imposição de solidariedade entre pessoas ligadas por vínculo familiar.
Com fundamento explícito ou implícito no princípio da solidariedade, os tribunais brasileiros avançam no sentido de assegurar aos avós, aos tios, aos ex-companheiros homossexuais, aos padrastos e madrastas o direito de contato, ou de visita, ou de convivência com as crianças e adolescentes, uma vez que, no melhor interesse destas e da realização afetiva daqueles, os laços de parentesco ou os construídos na convivência familiar não devem ser rompidos ou dificultados.
4. Princípio da igualdade familiar
Nenhum princípio da Constituição provocou tão profunda transformação do direito de família quanto o da igualdade entre homem e mulher, entre filhos e entre entidades familiares. Todos os fundamentos jurídicos da família tradicional restaram destroçados, principalmente os da legitimidade, verdadeira summa divisio entre sujeitos e sub-sujeitos de direito, segundo os interesses patrimoniais subjacentes que protegiam, ainda que razões éticas e religiosas fossem as justificativas ostensivas. O princípio geral da igualdade de gêneros foi igualmente elevado ao status de direito fundamental oponível aos poderes políticos e privados (art. 5º, I, da Constituição).
A legitimidade familiar constituiu a categoria jurídica essencial que definia os limites entre o lícito e o ilícito, além dos limites das titularidades de direito, nas relações familiares e de parentesco. Família legítima era exclusivamente a matrimonializada. Consequentemente, filhos legítimos eram os nascidos de família constituída pelo casamento, que determinavam por sua vez a legitimidade dos laços de parentesco descorrentes; os demais recebiam o sinete estigmatizante de filhos, irmãos e parentes ilegítimos. Após a Constituição de 1988, que igualou de modo total os cônjuges entre si, os companheiros entre si, os companheiros aos cônjuges, os filhos de qualquer origem familiar, além dos não biológicos aos biológicos, a legitimidade familiar desapareceu como categoria jurídica, pois apenas fazia sentido como critério de distinção e discriminação. Neste âmbito, o direito brasileiro alcançou muito mais o ideal de igualdade do que qualquer outro.
O princípio constitucional da igualdade (a fortiori normativo) dirige-se ao legislador, vedando-lhe que edite normas que o contrariem, à administração pública, para que implemente políticas públicas para superação das desigualdades reais existentes entre os gêneros, à administração da justiça, para o impedimento das desigualdades, cujos conflitos provocaram sua intervenção, e, enfim, às pessoas para que o observem em seu cotidiano. Sabe-se que costumes e tradições, transmitidos de geração a geração, sedimentaram condutas de opressão e submissão, no ambiente familiar, mas não podem ser obstáculos à plena realização do direito emancipador.
O princípio da igualdade está expressamente contido na Constituição, designadamente nos preceitos que tratam das três principais situações nas quais a desigualdade de direitos foi a constante histórica: os cônjuges, os filhos e as entidades familiares. O simples enunciado do § 5º do art. 226. traduz intensidade revolucionária em se tratando dos direitos e deveres dos cônjuges, significando o fim definitivo do poder marital: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e a mulher”. O sentido de sociedade conjugal é mais amplo, pois abrange a igualdade de direitos e deveres entre os companheiros da união estável. O § 6º do art. 227, por sua vez, introduziu a máxima igualdade entre os filhos, “havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção”, em todas as relações jurídicas, pondo cobro às descriminações e desigualdade de direitos, muito comuns na trajetória do direito de família brasileiro. O caput do art. 226. tutela e protege a família, sem restringi-la a qualquer espécie ou tipo, como fizeram as Constituições brasileiras anteriores em relação à exclusividade do casamento.
O princípio da igualdade, como os demais princípios, constitucionais ou gerais, não é de aplicabilidade absoluta, ou seja, admite limitações que não violem seu núcleo essencial. Assim, o filho havido por adoção é titular dos mesmos direitos dos filhos havidos da relação de casamento, mas está, ao contrário dos demais, impedido de casar-se com os parentes consangüíneos de cuja família foi oriundo, ainda que se tenha desligado dessa relação de parentesco (art. 1.626. do Código Civil). A regra de restrição ou de causa suspensiva a novo casamento, durante dez meses depois da viuvez ou da dissolução do casamento anterior (art. 1.523, II, do Código Civil), apenas diz respeito à mulher cujo casamento foi declarado nulo ou anulado, ou à viúva, para que não haja dúvida sobre a paternidade de filho cujo parto se der nesse período.
Inexistindo hierarquia entre o casamento e a união estável não se justifica que o Código Civil tenha atribuído deveres distintos para os cônjuges e para os companheiros. A Constituição não desnivelou a união estável ao estabelecer que a lei deva facilitar a conversão dela em casamento. Cuida-se aí de faculdade ou de poder potestativo; é como dissesse que os companheiros são livres para manter sua entidade familiar, com todos os direitos, ou convertê-la em outra, se assim desejarem, para o que o legislador deve remover os obstáculos jurídicos. Do mesmo modo, o caminho inverso é possível, convertendo-se os cônjuges, após o divórcio, em companheiros. O Código Civil, no entanto, não facilitou a conversão; dificultou-a, ao impor deveres aplicáveis apenas aos cônjuges e não aos companheiros (cf. arts. 1.566. e 1.724 do Código Civil).
A igualdade e seus consectários não podem apagar ou desconsiderar as diferenças naturais e culturais que há entre as pessoas e entidades. Homem e mulher são diferentes; pais e filhos são diferentes; criança e adulto ou idoso são diferentes; a família matrimonial, a união estável, a família monoparental e as demais entidades familiares são diferentes. Todavia, as diferenças não podem legitimar tratamento jurídico assimétrico ou desigual, no que concernir com a base comum dos direitos e deveres, ou com o núcleo intangível da dignidade de cada membro da família. Não há qualquer fundamentação jurídico-constitucional para distinção de direitos e deveres essenciais entre as entidades familiares, ou para sua hierarquização, mas são todas diferentes, não se podendo impor um modelo preferencial sobre as demais, nem exigir da união estável as mesmas características do casamento, dada a natureza de livre constituição da primeira. “Uma ordem democrática [incluindo a democratização da vida pessoal] não implica um processo genérico de ‘nivelar por baixo’, mas em vez disso promove a elaboração da individualidade”8.