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Nova principiologia do direito de família

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26/09/2024 às 18:40
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8. Princípio do melhor interesse da criança e adolescente

O princípio do melhor interesse significa que a criança – incluído o adolescente, segundo a Convenção Internacional dos Direitos da Criança – deve ter seus interesses tratados com prioridade, pelo Estado, pela sociedade e pela família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade. Em verdade ocorreu uma completa inversão de prioridades, nas relações entre pais e filhos, seja na convivência familiar, seja nos casos de situações de conflitos, como nas separações de casais. O pátrio poder existia em função do pai; já o poder familiar existe em função e no interesse do filho. Nas separações dos pais o interesse do filho era secundário ou irrelevante; hoje, qualquer decisão deve ser tomada considerando seu melhor interesse.

Valerio Pocar e Paola Ronfani16 utilizam interessante figura de imagem para ilustrar a transformação do papel do filho na família: em lugar da construção piramidal e hierárquica, na qual o menor ocupava a escala mais baixa, tem-se a imagem de círculo, em cujo centro foi colocado o filho, e cuja circunferência é desenhada pelas recíprocas relações com seus genitores, que giram em torno daquele centro. Nos anos mais recentes, parece que uma outra configuração de família relacional está se delineando, em forma estelar, que tem ao centro o menor, sobre o qual convergem relações tanto de tipo biológico quanto de tipo social, com os seus dois genitores em conjunto ou separadamente, inclusive nas crises e separações conjugais.

O princípio é um reflexo do caráter integral da doutrina dos direitos da criança e da estreita relação com a doutrina dos direitos humanos em geral. Assim, segundo a natureza dos princípios, não há supremacia de um sobre outro ou outros, devendo a eventual colisão resolver-se pelo balanceamento dos interesses, no caso concreto. Nesse sentido, diz Miguel Cillero Brruñol que sendo as crianças partes da humanidade, “seus direitos não se exerçam separada ou contrariamente ao de outras pessoas, o princípio não está formulado em termos absolutos, mas que o interesse superior da criança é considerado como uma ‘consideração primordial’. O princípio é de prioridade e não de exclusão de outros direitos ou interesses”. De outro ângulo, além de servir de regra de interpretação e de resolução de conflitos entre direitos, deve-se ressaltar que “nem o interesse dos pais, nem o do Estado pode se considerado o único interesse relevante para a satisfação dos direitos da criança”17.

No direito brasileiro, o princípio encontra fundamento essencial no art. 227. que estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente “com absoluta prioridade” os direitos que enuncia. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, com força de lei no Brasil desde 1990, estabelece em seu art. 3.1. que todas as ações relativas aos menores devem considerar, primordialmente, “o interesse maior da criança”. Por determinação da Convenção, deve ser garantida uma ampla proteção ao menor, constituindo a conclusão de esforços, em escala mundial, no sentido de fortalecimento de sua situação jurídica, eliminando as diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos (art. 18) e atribuindo aos pais, conjuntamente, a tarefa de cuidar da educação e do desenvolvimento. O princípio também está consagrado nos arts. 4° e 6° da Lei n. 8.069, de 1990 (ECA).

O princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado. A aplicação da lei deve sempre realizar o princípio, consagrado, segundo Luiz Edson Fachin como “critério significativo na decisão e na aplicação da lei”, tutelando-se os filhos como seres prioritários18. O desafio é converter a população infanto-juvenil em sujeitos de direito, “deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como os adultos, titular de direitos juridicamente protegidos”19.


Notas

  1. ...

  2. A doutrina qualifica a Constituição como uma ordem concreta de valores. O princípio seria o valor positivado. HABERMAS, Jürgen (Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. 1, p. 316) critica essa orientação doutrinária, amplamente utilizada pela jurisprudência constitucional alemã e brasileira, pois levaria ao arbítrio dos julgadores, o que contrariaria a ordem jurídica democrática e a segurança jurídica. As normas (e princípios) seriam válidas ou não, enquanto os valores determinariam relações de preferência.

  3. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 49-51.

  4. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 52.

  5. Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1990.

  6. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 719.

  7. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 259.

  8. GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1993, p. 205.

  9. LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. São Paulo: Edusp, 1976, p. 72.

  10. FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 306.

  11. TEPEDINO, Gustavo, A disciplina civil-constitucional das relações familiares. A nova família: problemas e perspectivas. Vicente Barreto (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 56.

  12. PEREIRA, Rodrigo, Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 142.

  13. WELTER, Belmiro Pedro, Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 205.

  14. MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito personalíssimo à filiação e a recusa dão exame de DNA: uma hipótese de colisão de direitos fundamentais. Grandes temas da atualidade: DNA como meio de prova de filiação. Eduardo de Oliveira Leite (Org.). Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 224.

  15. LÔBO, Paulo Luiz Netto, Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária, Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, n. 19, p. 133-156, ago./set. 2003. p. 133.

  16. POCAR, Valerio; RONFANI, Paola. La famiglia e il diritto. Roma: Laterza, 2001, p. 207.

  17. BRUÑOL, Miguel Cillero. Infância, autonomía y derechos: una cuestión de principios. Infancia: Boletin del Instituto Interamericano del Niño – OEA, n. 234, p. 1-13, oct. 1997, p.8.

  18. FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.125.

  19. PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do “melhor interesse da criança”: da teoria à prática. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: n. 6, p. 31-49, jul/set. 2000, p.36.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Nova principiologia do direito de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7757, 26 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105910. Acesso em: 4 nov. 2024.

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